Um estudo autobiográfico, Inibições, sintomas e ansiedade, A
questão da análise leiga
e outros trabalhos
VOLUME XX
(1925-1926)
Dr.
Sigmund Freud
UM ESTUDO AUTOBIOGRÁFICO (1925 [1924])
NOTA DO EDITOR INGLÊS
SELBSTDARSTELLUNG
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1925 Em Grote’s Die Dedizin der Gegenwart in
Selbstdarstellungen, 4, 1-52 (Leipzig: Meiner.)
1928 G.S., 11, 9-82.
1934
Sob a forma de livro, com o título Selbstarstellung. Leipzig, Viena e Zurique:
Internationaler Psychoanalytischer Verlag. 52 Pp.
1936
2ª ed. Viena: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. 107 Pp. Com novas
notas de rodapé e outro assunto adicional incluindo ‘Nachschrift 1935’, (ver adiante).
1946
Londres: Imago Publishing Co. Reimpressão da anterior com ilustrações
diferentes. 107 Pp.
1948
G.W., 14, 33-96, com as novas notas de rodapé da 2ª ed., mas sem o outro
assunto adicional. (Quanto a ‘Nachschrif 1935’, ver adiante.)
1935 ‘Nachschrift 1935’. Almanach 1936, 9-14.
1936
Em Selbstdarstelung, 2ª ed. (ver acima), 102-7.
1946 Na reimpressão de Londres da anterior.
1950 G.W., 16, 31-4.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
An
Autobiographical Study
1927 Em The Problem of Lay-Analyses. Nova Iorque: Brentano.
Pp. 189-316.(Trad. de James Strachey.)
1935 Londres: Hogarth Press and the Institute of
Psycho-Analysis, 137 Pp. Mesma
tradução, revista a partir da 2ª ed. alemã, com novas notas de rodapé e outro
assunto adicional, incluindo ‘Postscript (1935)’.
Autobiography
1935
Nova Iorque: Norton. 153 Pp. Como a anterior, mas com título diferente.
A presente tradução inglesa é uma versão
modificada da publicação em 1935.
Como Freud explica em seu Pós-Escrito,ver em
([1]), a tradução inglesa dessa obra, quando publicada pela primeira vez nos
Estados Unidos. em 1927, foi incluída no mesmo volume que seu exame da ‘análise
leiga’; mas o Estudo Autobiográfico não foi mencionado nem na página de rosto
nem na capa externa do livro. Quando, oito anos depois, um novo editor
norte-americano se encarregou da obra, sugeriu a Freud que ela devia ser
revista e atualizada. Assim o novo material apareceu em inglês antes de sua
publicação em alemão. O Volume XI dos Gesammelte Schriften, publicado em 1928,
naturalmente só traz o texto da primeira edição. O Volume XIV das Gesammelte
Werke, publicado em 1948, apresenta uma reprodução fotográfica daquela versão,
juntamente com as novas notas de rodapé que foram acrescentadas à segunda
edição. Infelizmente, contudo, desprezou-se o fato de que considerável número
de modificações e acréscimos tinham sido feitos no verdadeiro texto da obra.
Estes, conseqüentemente, não foram incluídos nas Gesammelte Werke, embora
naturalmente sejam encontrados nas edições do livro lançadas separadamente (1936
e 1946). Essas omissões são observadas na tradução inglesa que se segue.
Soubemos por Ernest Jones (1957, 123) que a obra principal foi escrita em
agosto e setembro de 1924, havendo na realidade surgido em fevereiro de 1925; o
Pós-Escrito foi concluído por volta de maio de 1935.
Esta obra é geralmente, e de maneira bastante
desorientadora, mencionada como ‘Autobiografia’ de Freud. O título da série
para a qual originalmente constitui contribuição - Die Medizin der Gegenwart in
selbstdarstellungen (que poderia ser traduzido por ‘Medicina Contemporânea em
Auto-Retratos’) - revela com bastante clareza que o objetivo de seus
organizadores ( foi publicada em quatro volumes, 1923-5, com colaborações de
cerca de vinte e sete autoridades médicas de renome ) era apresentar um relato
da história recente da ciência médica feito por aqueles que haviam desempenhado
um papel de destaque na sua elaboração. Assim o estudo de Freud é
essencialmente um relato de sua participação pessoal no desenvolvimento da
psicanálise. Como ele próprio ressalta no parágrafo inicial, ele estava
inevitavelmente revendo muito do que já tinha sido tratado em seu artigo ‘A
História do Movimento Psicanalítico’ (1914d), cerca de dez anos antes. Não
obstante, como um confronto entre as duas obras revelará, sua disposição de
ânimo então era bem diferente. As controvérsias que haviam impregnado de
exacerbação o artigo mais antigo tornaram-se agora insignificantes e ele pôde
apresentar um relato frio e inteiramente objetivo da evolução dos seus pontos
de vista científicos.
Aqueles que desejam a história de sua vida
pessoal devem, mais uma vez, ser encaminhados aos três volumes da biografia de
Ernest Jones.
UM ESTUDO AUTOBIOGRÁFICO
I
Vários dos colaboradores desta série de
‘Estudos Autobiográficos’ começaram expressando suas apreensões pelas
dificuldades inusitadas da tarefa que empreenderam. As dificuldades no meu caso
são, assim penso, ainda maiores pois mais de uma vez publiquei artigos nos
mesmos moldes que o presente, artigos que pela natureza do assunto têm tratado
mais de considerações pessoais do que é habitual ou do que de outra forma teria
sido necessário.
Apresentei meu primeiro relato do
desenvolvimento e do tema da psicanálise em cinco lições que pronunciei em 1909
na Clark University, em Worcester, Mass., para onde fora convidado a fim de
assistir às comemorações do vigésimo aniversário de fundação daquela entidade.
Só recentemente cedi à tentação de prestar uma contribuição de natureza
semelhante a uma publicação coletiva norte-americana que aborda os primeiros
anos do século XX, visto que seus editores haviam demonstrado seu
reconhecimento quanto à importância da psicanálise, dedicando-lhe um capítulo
especial. Entre essas duas datas surgiu um artigo, ‘A História do Movimento
Psicanalítico’ [1914d], que, de fato, encerra a essência de tudo que posso
dizer sobre a presente ocasião. Visto que não devo contradizer-me e como não
tenho nenhum desejo de repetir a mim mesmo exatamente, devo esforçar-me por
construir uma narrativa na qual atitudes subjetivas e objetivas, interesses
biográficos e históricos, se combinem em uma nova proporção.
Nasci a 6 de maio de 1856, em Freiberg, na
Morávia, pequena cidade situada onde agora é a Tchecoslováquia. Meus pais eram
judeus e eu próprio continuei judeu. Tenho razões para crer que a família de
meu pai residiu por muito tempo no Reno (em Colônia), que ela, como resultado
de uma perseguição aos judeus durante o século XIV ou XV, fugiu para o leste, e
que, no curso do século XIX, migrou de volta da Lituânia, passando pela
Galícia, até a Áustria alemã. Quando eu era uma criança de quatro anos fui para
Viena e ali recebi toda minha educação. No ‘Gymnasium’ [escola secundária] fui
o primeiro de minha turma durante sete anos e desfrutava ali de privilégios especiais,
e quase nunca tive de ser examinado em aula. Embora vivêssemos em
circunstâncias muito limitadas, meu pai insistiu que, na minha escolha de uma
profissão, devia seguir somente minhas próprias inclinações. Nem naquela época,
nem mesmo depois, senti qualquer predileção particular pela carreira de médico
Fui, antes, levado por uma espécie de curiosidade, que era, contudo, dirigida
mais para as preocupações humanas do que para os objetivos naturais; eu nem
tinha apreendido a importância da observação como um dos melhores meios de
gratificá-la. Meu profundo interesse pela história da Bíblia (quase logo depois
de ter aprendido a arte da leitura) teve, conforme reconheci muito mais tarde,
efeito duradouro sobre a orientação do meu interesse.Sob a influência de uma
amizade formada na escola com um menino mais velho que eu, e que veio a ser
conhecido político, desenvolvi, como ele, o desejo de estudar direito e de
dedicar-me a atividade sociais. Ao mesmo tempo, as teorias de Darwin, que eram
então de interesse atual, atraíram-me fortemente, pois ofereciam esperanças de
extraordinário progresso em nossa compreensão do mundo; e foi ouvindo o belo
ensaio de Goethe sobre a Natureza, lido em voz alta numa conferência popular
pelo professor Carl Brühlpouco antes de eu ter deixado a escola, que resolvi
tornar-me estudante de medicina.
Quando em 1873, ingressei na universidade,
experimentei desapontamentos consideráveis. Antes de tudo, verifiquei que se
esperava que eu me sentisse inferior e estranho porque era judeu. Recusei-me de
maneira absoluta a fazer a primeira dessas coisas. Jamais fui capaz de
compreender por que devo sentir-me envergonhado da minha ascendência ou, como
as pessoas começavam a dizer, da minha ‘raça’. Suportei, sem grande pesar,
minha não aceitação na comunidade, pois parecia-me que apesar dessa exclusão,
um dinâmico companheiro de trabalho não poderia deixar de encontrar algum
recanto no meio da humanidade. Essas primeiras impressões na universidade,
contudo, tiveram uma conseqüência que depois viria a ser importante, porquanto
numa idade prematura familiarizei-me com o destino de estar na Oposição e de
ser posto sob o anátema da ‘maioria compacta’.Estavam assim lançados os
fundamentos para um certo grau de independência de julgamento.
Fui compelido, além disso, durante meus
primeiros anos de universidade, a fazer a descoberta de que as peculiaridades e
limitações de meus dons me negavam todo sucesso em muitos dos campos da ciência
nos quais minha jovem ansiedade me fizera mergulhar. Assim aprendi a verdade da
advertência de Mefistófeles:
Vergebens, dass ihr ringsum wissenschaftlich
schweift,Ein jeder lernt nur, was er lernen kann.
Por fim, no laboratório de fisiologia de Ernst
Brücke encontrei tranqüilidade e satisfação plena - e também homens que pude
respeitar e tomar como meus modelos: o próprio grande Brücke e seus
assistentes, Sigmund Exner e Ernst Fleischl von Marxow. Com o segundo, um homem
brilhante, tive o privilégio de manter relações de amizade.Brücker confiou-me
um problema para solucionar na histologia do sistema nervoso; consegui
resolvê-lo para sua satisfação e levar o trabalho mais adiante por conta
própria. Trabalhei nesse instituto, com breves interrupções, de 1876 a 1882, e
geralmente se julgava que eu estava destinado a preencher a vaga de professor
assistente que viesse a ocorrer ali.Os vários ramos da medicina propriamente
dita, afora a psiquiatria, não exerciam qualquer atração sobre mim. Eu era
realmente negligente em meus estudos médicos e somente em 1881, um tanto
tardiamente, recebi o grau de doutor em medicina.
O momento decisivo ocorreu em 1882, quando meu
professor, por quem sentia a mais alta estima, corrigiu a imprevidência
generosa de meu paiaconselhando-me vivamente, em vista de minha precária
situação financeira, a abandonar minha carreira teórica. Segui seu conselho,
abandonei o laboratório de fisiologia e ingressei no Hospital Geral como
Aspirant [assistente clínico]. Logo depois fui promovido a Sekundararzt [médico
estagiário ou interno], e trabalhei em vários departamentos do hospital, entre
outros por mais de seis meses sob a orientação de Meynert,cujo trabalho e
personalidade muito me haviam impressionado quando eu ainda era estudante.
Num certo sentido, não obstante, permaneci fiel
à linha de trabalho na qual originalmente me iniciara. O assunto que Brücke
propusera para minhas pesquisas fora a medula espinhal de um dos peixes mais
inferiores (Ammocoetes Petromyzon) e prossegui então até o sistema nervoso
central. Justamente nessa época, as descobertas de Fleichsig sobre a
não-simultaneidade da formação das bainhas de mielina lançavam luz reveladora
sobre o curso intrincado de seus tratos. O fato de eu ter começado por escolher
as medulas oblongas como assunto único e exclusivo do meu trabalho foi outro
sinal da continuidade de meu desenvolvimento. Em completo contraste com o
caráter difuso de meus estudos durante os primeiros anos de universidade,
estava agora desenvolvendo uma inclinação para concentrar meus trabalhos
exclusivamente em um único assunto ou problema. Essa inclinação tem persistido
e desde então me levou a ser acusado de unilateralidade.
Tornei-me tão atuante no Instituto de Anatomia
Cerebral quanto o havia sido no de fisiologia. Alguns breves artigos sobre o
curso dos tratos e das origens nucleares na medula oblonga datam desses anos de
hospital, havendo Edinger tomado conhecimento de meus achados até certo ponto.
Um belo dia Meynert, que me dera acesso ao laboratório mesmo durante as
ocasiões em que eu na realidade não trabalhava sob sua orientação, propôs que
eu devia dedicar-me inteiramente à anatomia do cérebro e prometeu passar-me
suas atividades como conferencista, visto sentir-se velho demais para lidar com
os métodos mais novos. Declinei dessa oferta, alarmado com a magnitude da
tarefa; é possível também que eu já tivesse adivinhado que esse grande homem de
modo algum se encontrasse favoravelmente inclinado a meu respeito.Do ponto de
vista material, a anatomia do cérebro certamente não era melhor que a
fisiologia, e, tendo em vista considerações pecuniárias, comecei a estudar as
doenças nervosas. Havia naquela época, em Viena, poucos especialistas nesse
ramo de medicina, o material para seu estudo estava distribuído por grande
número de diferentes departamentos do hospital, não havia oportunidade satisfatória
para aprender a matéria, e se era forçado a ser professor de si mesmo. Até
mesmo Nothnagel que fora nomeado pouco tempo antes, por causa do seu livro
sobre localização cerebral, não isolou a neuropatologia das outras subdivisões
da medicina. A distância brilhava o grande nome de Charcot assim, formei um
plano de em primeiro lugar obter uma designação como conferencista
universitário [Dozent] sobre doenças nervosas, em Viena, e então dirigir-me a
Paris para continuar meus estudos.
No curso dos anos seguintes, enquanto
continuava a trabalhar como médico estagiário, publiquei grande número de
observações clínicas sobre doenças orgânicas do sistema nervoso. Gradativamente
familiarizei-me com o terreno; fui capaz de situar o local de uma lesão na medula
oblonga de maneira tão exata que o anatomista patológico não teve mais
informação alguma a acrescentar, fui a primeira pessoa em Viena a encaminhar um
caso para autópsia com um diagnóstico de polineurite aguda.
A fama de meus diagnósticos e de sua confirmação
post-mortem trouxe-me uma afluência de médicos norte-americanos, perante os
quais pronunciei conferências sobre os pacientes do meu departamento numa
espécie de pidgin-English.* Sobre as neuroses eu nada compreendia. Em certa
ocasião, apresentei ao meu auditório um neurótico que sofria de dor de cabeça
persistente como um caso de meningite crônica localizada; todos se levantaram
imediatamente, revoltados, e me abandonaram, e minhas atividades prematuras
como professor chegaram ao fim. À guisa de desculpas, posso acrescentar que
isso aconteceu numa época em que maiores autoridades do que eu, em Viena,
tinham o hábito de diagnosticar a neurastenia como tumor cerebral.
Na primavera de 1885, fui nomeado conferencista
[Dozent] de neuropatologia com base em minhas publicações histológicas e
clínicas. Logo depois, como resultado de caloroso testemunho de Brücke, foi-me
concedida umabolsa de estudos de considerável valor..No outono do mesmo ano
empreendi a viagem até Paris.
Tornei-me aluno [élève] na Salpêtrière, mas,
como um dos numerosos alunos estrangeiros, dispensavam-me inicialmente pouca
atenção. Certo dia, ouvi Charcot externar o pesar de que desde a guerra não
tinha tido mais notícias do tradutor alemão de suas conferências, prosseguiu
dizendo que ficaria satisfeito se alguém se encarregasse de verter o novo
volume de suas conferências para o alemão. Escrevi-lhe oferecendo meus
préstimos; ainda me recordo de uma frase da carta, no sentido de que eu sofria
apenas de ‘l’aphasie motrice‘ e não de ‘l’aphasie sensorielle du français‘.
Charcot aceitou a oferta, fui admitido no círculo de seus conhecidos pessoais,
e a partir dessa época tomei parte integral em tudo que se passava na clínica.
No momento em que escrevo estas linhas, grande
número de trabalhos e artigos de jornais me chegam da França, dando provas de
violenta objeção à aceitação da psicanálise e fazendo freqüentemente as
asserções mais inexatas no tocante a minhas relações com a escola francesa. Li,
por exemplo, que fiz uso de minha visita a Paris para familiarizar-me com as
teorias de Pierre Janet e então fugir com o tesouro. Gostaria, portanto, de
dizer explicitamente que durante toda a minha estada na Salpêtrière o nome de
Janet nem sequer foi mencionado.
O que mais me impressionou enquanto privei com
Charcot foram suas últimas investigações acerca da histeria, algumas delas
levadas a efeito sob meus próprios olhos. Ele provara, por exemplo, a
autenticidade das manifestações histéricas e de sua obediência a leis
(‘introite et hic dii sunt’) a ocorrência freqüente de histeria em homens, a
produção de paralisias e contraturas histéricas por sugestão hipnótica e o fato
de que tais produtos artificiais revelam, até em seus menores detalhes, as
mesmas características que os acessos espontâneos, que eram muitas vezes
provocados traumaticamente. Muitas das demonstrações de Charcot começaram por
provocar em mim e em outros visitantes um sentimento de assombro e uma
inclinação para o ceticismo, que tentávamos justificar recorrendo a uma das
teorias do dia. Ele se mostrava sempre amistoso e paciente ao lidar com tais
dúvidas, mas era também muito resoluto; foi numa dessas discussões que (falando
de teoria) ele observou: ‘Ça n’empêche pas d’exister‘ um mot que deixou
indelével marca em meu espírito.
Sem dúvida, nem tudo o que Charcot nos ensinou
naquela época é válido hoje: parte se tornou duvidoso, parte deixou
definitivamente de resistir ao teste do tempo. Mas sobrou muita coisa que
encontrou lugar permanente no acervo da ciência. Antes de partir de Paris, examinei
com o grande homem um plano para um estudo comparativo das paralisias
histéricas e orgânicas. Desejava estabelecer a tese de que na histeria as
paralisias e anestesias das várias partes do corpo se acham demarcadas de
acordo com a idéia popular dos seus limites e não em conformidade com fatos
anatômicos. Ele concordou com esse ponto de vista, mas foi fácil ver que na
realidade não teve qualquer interesse especial em penetrar mais profundamente
na psicologia das neuroses.Quando tudo já havia sido dito e feito, foi a partir
da anatomia patológica que seu trabalho havia começado.
Antes de retornar a Viena, passei algumas
semanas em Berlim, a fim de adquirir um pouco de conhecimentos sobre os
distúrbios gerais da infância. Kassowitz que estava à frente de um instituto
público de Viena para tratamento de doenças infantis, prometera encarregar-me
de um departamento para doenças nervosas de crianças. Em Berlim, recebi
assistência e uma amistosa recepção de Baginsky. No curso dos poucos anos
seguintes publiquei, do Instituto Kassowitz, várias monografias de considerável
vulto sobre paralisias cerebrais unilaterais e bilaterais em crianças. E por
esse motivo, numa data ulterior (em 1897), Nothnagel me fez responsável pelo
tratamento do mesmo assunto em seu grande Handbuch der allgemeninen und
speziellen Therapie.
No outono de 1886, fixei-me em Viena como
médico e casei-me com a moça que ficara à minha espera numa distante cidade há
mais de quatro anos. Posso agora retornar um pouco ao passado e explicar como
foi a culpa de minha fiancée por eu ainda não ser famoso naquela jovem idade.
Um interesse secundário, embora profundo, levara-me em 1884, a obter da Merck
uma pequena quantidade do então pouco conhecido alcalóide cocaína e estudar sua
ação fisiológica. Quando me achava no meio dessa tarefa, surgiu a oportunidade
de uma viagem a fim de visitar minha fiancée, de quem eu estava afastado há
dois anos. Rapidamente encerrei minha pesquisa da cocaína e contentei-me, em
minha monografia sobre o assunto [1884e], em profetizar que logo seriam
descobertos outros usos para ela. Sugeri, contudo, a meu amigo Königstein o
oftalmologista, que ele devia investigar a questão de saber até que ponto as
propriedades anestesiantes da cocaína eram aplicáveis em doenças dos olhos.
Quando voltei de minhas férias, verifiquei que não fora ele, mas outro dos meus
amigos, Carl Koller (então em Nova Iorque), com o qual eu também falara sobre a
cocaína, quem fizera os experimentos decisivos em olhos de animais e os
demonstrara no Congresso Oftalmológico de Heildelberg. Koller, portanto é,
considerado, com justiça, o descobridor da anestesia local pela cocaína, que se
tornou tão importante na cirurgia secundária; mas não guardo nenhum rancor de
minha fiancée pela interrupção.
Voltarei agora ao ano de 1886, época em que me
estabeleci em Viena como especialista em doenças nervosas. Cabia-me apresentar
um relatório perante a ‘Gesellschaft derAerzte’ [Sociedade de Medicina] sobre o
que vira e aprendera com Charcot. Tive, porém, má recepção. Pessoas de autoridade,
como o presidente (Bamberger, o médico), declararam que o que eu disse era
inacreditável. Meynert desafiou-me a encontrar alguns casos em Viena
semelhantes àqueles que eu descrevera e a apresentá-los perante a sociedade.
Tentei fazê-lo; mas os médicos mais antigos, em cujos departamentos encontrei
casos dessa natureza, recusaram-se a permitir-me observá-los ou a trabalhar
neles. Um deles, velho cirurgião, na realidade irrompeu com a exclamação: ‘Mas,
meu caro senhor, como pode dizer tal tolice? Hysteron (sic) significa o útero.
Assim como pode um homem ser histérico?’ Objetei em vão que o que desejava não
era ter meu diagnóstico aprovado, mas ter o caso posto à minha disposição. Por
fim, fora do hospital, deparei-me com umcaso de hemianestesia histérica
clássica em um homem, e demonstrei-o perante a ‘Gesellschaft der Aerzte’
[1886s]. Dessa vez fui aplaudido, mas não adquiriram mais interesse por mim. A
impressão de que as altas autoridades haviam rejeitado minhas inovações
permaneceu inabalável; e, com minha histeria em homem e minha produção de
paralisias histéricas por sugestão, vi-me forçado a ingressar na Oposição. Como
logo depois fui excluído do laboratório de anatomia cerebral e como durante
intermináveis trimestres não tive onde pronunciar minhas conferências,
afastei-me da vida acadêmica e deixei de freqüentar as sociedades eruditas. Faz
uma geração inteira desde que visitei a ‘Gesellschaft der Aerzte’.
Qualquer um que deseje ganhar para subsistência
com o tratamento de pacientes nervosos deve ser claramente capaz de fazer algo
para ajudá-los. Meu arsenal terapêutico continha apenas duas armas, a
eletroterapia e o hipnotismo; receitar uma visita a um estabelecimento
hidropático após uma única consulta era uma fonte insuficiente de renda. Meu
conhecimento de eletroterapia provinha do manual de W. Erb [1882], o qual
proporcionava instruções detalhadas para o tratamento de todos os sintomas de
doenças nervosas. Infelizmente, logo fui impelido a ver que seguir essas
instruções não era absolutamente de qualquer valia e que o que eu tomara por um
compêndio de observações exatas era meramente a construção de fantasia. Foi
penosa a compreensão de que a obra do maior nome da neuropatologia alemã não
tinha maior relação com a realidade do que um livro de sonhos ‘egípcio’ vendido
em livrarias baratas, mas ajudou-me a livrar-me de outro fragmento de inocente
fé na autoridade, da qual eu ainda não estava livre. Assim, pus de lado meu
aparelho elétrico, mesmo antes de Moebius haver salvo a situação, explicando
que os êxitos do tratamento elétrico em distúrbios nervosos (até onde havia
algum) eram o efeito de sugestão por parte do médico.
Com o hipnotismo o caso foi melhor. Enquanto
ainda estudante, assistira a uma exibição pública apresentada por Hansen o ‘magnetista’
e notara que um dos pacientes em quem se fizera a experiência se tornara
mortalmentepálido no início da rigidez cataléptica, e assim havia permanecido
enquanto aquela condição havia durado. Isso me convenceu firmemente da
autenticidade dos fenômenos da hipnose. Apoio científico foi logo depois dado a
esse ponto de vista por Heidenhain, mas não impediu os professores de
psiquiatria de declararem por muito tempo que o hipnotismo era não somente
fraudulento como também perigoso, e de considerarem os hipnotizadores com
desprezo. Em Paris vira o hipnotismo usado livremente como um método para
produzir sintomas em pacientes, então removendo-os novamente. E agora nos
chegava a notícia de que surgira uma escola em Nancy que fazia uso extenso e
marcantemente bem-sucedido da sugestão, com ou sem hipnotismo, para fins
terapêuticos. Ocorreu assim, como algo natural, que, nos primeiros anos de
minha atividade como médico, meu principal instrumento de trabalho, afora os
métodos psicoterapêuticos aleatórios e não sistemáticos, tenha sido a sugestão
hipnótica.
Isso implicou, naturalmente, em eu ter
abandonado o tratamento de doenças nervosas orgânicas; mas isso foi de pequena
importância, pois, por um lado, as perspectivas no tratamento de tais desordens
em nenhum caso jamais eram promissoras, enquanto que, por outro lado, na
clínica particular de um médico exercendo suas atividades numa grande cidade, a
quantidade de tais pacientes era nada em comparação com as multidões de
neuróticos, cujo número parecia ainda maior pelo modo como eles corriam, com
seus males não solucionados, de um médico a outro. E, independente disso, havia
algo de positivamente sedutor em trabalhar com o hipnotismo. Pela primeira vez
havia um sentimento de haver superado o próprio desamparo, e era altamente
lisonjeiro desfrutar da reputação de ser fazedor de milagres. Só depois é que
iria descobrir os processos do método. No momento havia apenas dois pontos
passíveis de queixa: em primeiro lugar, que eu não era capaz de hipnotizar
todos os pacientes, e, em segundo, que fui incapaz de pôr os pacientes
individuais num estado tão profundo de hipnose como teria desejado. Com a idéia
de aperfeiçoar minha técnica hipnótica, empreendi uma viagem a Nancy, no verão
de 1889, e passei ali várias semanas. Testemunhei o comovente espetáculo do
velho Liébeault trabalhando entre as mulheres e crianças pobres das classes
trabalhadoras. Eu era um espectador dos assombrosos experimentos de Bernheim em
seus pacientes do hospital, e tive a mais profunda impressão da possibilidade
de que poderia haver poderosos processos mentais que, não obstante, permaneciam
escondidos da consciência dos homens. Pensando que seria instrutivo, persuadi
uma de minhas pacientes a acompanhar-me até Nancy. Essa paciente era uma
histérica altamente dotada, uma mulher bem-nascida, que me fora confiadaporque
ninguém sabia o que fazer com ela. Pela influência hipnótica eu lhe tornara
possível levar uma existência tolerável, e sempre fui capaz de tirá-la da
miséria de sua condição. Mas ela sempre recaía após breve tempo, e em minha
ignorância eu atribuía isso ao fato de que sua hipnose jamais alcançara a fase
de sonambulismo com amnésia. Bernheim tentou então várias vezes provocar isso,
mas ele também fracassou. Admitiu-me que seus grandes êxitos terapêuticos por
meio da sugestão eram alcançados apenas em sua clínica hospitalar, e não com
seus pacientes particulares. Tive muitas conversas estimulantes com ele, e
comprometi-me a traduzir para o alemão umas duas obras sobre a sugestão e seus
efeitos terapêuticos.
Durante o período de 1886 a 1891, realizei
poucos trabalhos científicos e não publiquei quase nada. Estava ocupado em
estabelecer-me em minha nova profissão e em assegurar minha própria existência
material, bem como a de uma família que aumentava rapidamente. Em 1891 apareceu
o primeiro dos meus estudos sobre as paralisias cerebrais de crianças, escrito
em colaboração com meu amigo e assistente, o Dr. Oskar Rie [Freud, 1891a]. Um
convite que recebi no mesmo ano, para colaborar em uma enciclopédia de medicina
levou-me a investigar a teoria da afasia. Esta na época estava dominada pelos
pontos de vista de Wernicke e Lichtheim, que davam ênfase exclusivamente à
localização. O fruto dessa indagação foi um pequeno livro crítico e
especulativo, Zur Auffassung der Aphasien [1891b].
Agora, no entanto, devo revelar como aconteceu
o fato de a pesquisa científica mais uma vez ter-se tornado o principal
interesse de minha vida.
II
Devo complementar o que acabo de dizer,
explicando que bem desde o início fiz uso da hipnose de outra maneira,
independentemente da sugestão hipnótica. Empreguei-a para fazer perguntas ao
paciente sobre a origem de seus sintomas, que em seu estado de vigília ele
podia descrever só muito imperfeitamente, ou de modo algum. Não somente esse
método pareceu mais eficaz do que meras ordens ou proibições sugestivas, como
também satisfazia a curiosidade do médico, que, afinal de contas, tinha o
direito de aprender algo sobre a origem da manifestação que ele vinha lutando
para eliminar pelo processo monótono da sugestão.
A maneira pela qual cheguei a esse outro
processo ocorreu como se segue. Enquanto ainda trabalhava no laboratório de
Brücke, eu travara conhecimento com o Dr. Josef Breuer que era um dos médicos
de família mais respeitados de Viena, mas que também possuía um passado
científico, visto que produzira vários trabalhos de valor permanente sobre a
fisiologia da respiração e sobre o órgão do equilíbrio. Era um homem de notável
inteligência e quatorze anos mais velho que eu. Nossas relações logo se
tornaram mais estreitas e ele se tornou meu amigo, ajudando-me em minhas
difíceis circunstâncias. Adquirimos o hábito de partilhar todos os nossos
interesses científicos. Nessa relação só eu naturalmente tive a ganhar. O
desenvolvimento da psicanálise, depois, veio a custar-me sua amizade. Não me
foi fácil pagar tal preço, mas não pude fugir a isso.
Mesmo antes de dirigir-me a Paris, Breuer me
havia falado sobre um caso de histeria que, entre 1880 e 1882, ele havia
tratado de maneira peculiar, o qual lhe permitira penetrar profundamente na
acusação e no significado dos sintomas histéricos, isto, portanto, ocorreu numa
época em que os trabalhos de Janet ainda pertenciam ao futuro. Ele por várias
vezes me leu trechos da história clínica, e tive a impressão de que isto
contribuía mais no sentido de uma compreensão das neuroses do que qualquer
observação prévia. Tomei a determinação de informar Charcot a respeito dessas
descobertas quando cheguei a Paris, e na realidade o fiz. Mas o grande homem
não teve qualquer interesse pelo meu primeiro esboço do assunto, de modo que
nunca mais voltei ao mesmo e deixei que fugisse de minha mente
Quando do meu retorno a Viena, recorri mais uma
vez à observação de Breuer e fiz com que ele me contasse mais alguma coisa
sobre o caso. Apaciente tinha sido uma jovem de educação e dons incomuns, que
adoecera enquanto cuidava do pai, pelo qual era devotamente afeiçoada. Quando
Breuer se encarregou do caso, este apresentou um quadro variado de paralisias
com contraturas, inibições e estados de confusão mental. Uma observação
fortuita revelou ao médico da paciente que ela podia ser aliviada desses
estados nebulosos de consciência se fosse induzida a expressar em palavras a
fantasia emotiva pela qual se achava no momento dominada. A partir dessa
descoberta, Breuer chegou a um novo método de tratamento. Ele a levava a uma
hipnose profunda e fazia-a dizer-lhe, de cada vez, o que era lhe oprimia a
mente. Depois de os ataques de confusão depressiva terem sido separados dessa
forma, empregou o mesmo processo para eliminar suas inibições e distúrbios
físicos. Em seu estado de vigília a moça não podia descrever mais do que outros
pacientes como seus sintomas haviam surgido, assim como não podia descobrir
ligação alguma entre eles e quaisquer experiências de sua vida. Na hipnose ela
de pronto descobria a ligação que faltava. Aconteceu que todos os seus sintomas
voltavam a fatos comovedores que experimentara enquanto cuidava do pai; isto é,
seus sintomas tinham um significado e eram resíduos ou reminiscências daquelas
situações emocionais. Verificou-se na maioria dos casos que tinha havido algum
pensamento ou impulso que ela tivera de suprimir enquanto se encontrava à
cabeceira de enfermo, e que, em lugar dele, como substituto do mesmo, surgira
depois o sintoma. Mas em geral o sintoma não era o precipitado de uma única
cena ‘traumática’ dessa natureza, mas o resultado de uma soma de grande número
de situações semelhantes. Quando a paciente se recordava de uma situação dessa
espécie de forma alucinatória, sob a hipnose, e levava até sua conclusão, com
uma expressão livre de emoção, o ato mental que ela havia originalmente
suprimido, o sintoma era eliminado e não voltava. Por esse processo Breuer
conseguiu, após longos e penosos esforços, aliviar a paciente de seus sintomas.
A paciente se recuperara e continuara bem, e de
fato tornara-se capaz de executar trabalhos de importância. Mas na fase final
desse tratamento hipnótico permaneceu um véu de obscuridade, que Breuer jamais
levantou para mim, e não pude compreender por que mantivera por tanto tempo em
segredo o que me parecia uma descoberta inestimável, em vez de com ela tornar a
ciência mais rica. A questão imediata, contudo, é se era possível generalizar a
partir do que ele encontrara em um caso isolado. O estado de coisas que ele
descobrira pareceu-me ser de natureza tão fundamental que não pude crer que
pudesse deixar de estar presente em qualquer caso de histeria, caso se tivesse
provado ter ele ocorrido num caso isolado. Mas a dúvida só podia serresolvida
pela experiência. Comecei então a repetir as pesquisas de Breuer com meus
próprios pacientes e afinal, especialmente depois que minha visita a Bernheim,
em 1889, me havia ensinado as limitações da sugestão hipnótica, não trabalhei
em outra coisa. Após observar durante vários anos que seus achados eram
invariavelmente confirmados em cada caso de histeria acessível a tal
tratamento, e depois de haver acumulado considerável quantidade de material sob
a forma de observações análogas às dele, propus-lhe que devíamos lançar uma
publicação conjunta. De início ele objetou com vee- mência, mas por fim cedeu,
especialmente tendo em vista que, nesse meio tempo, as obras de Janet haviam
previsto alguns dos seus resultados, tais como o rastreamento de sintomas
histéricos em fatos da vida do paciente e sua eliminação por meio da reprodução
hipnótica in statu nascendi. Em 1893 lançamos uma comunicação preliminar,
‘Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos’, e em 1895 seguiu-se
nosso livro, Estudos sobre a Histeria.
Se o relato apresentado por mim até agora levou
o leitor a esperar que os Estudos sobre a Histeria devem, em todos os pontos
essenciais de seu conteúdo material, ser produto da mente de Breuer, é
precisamente isto que sempre tenho sustentado, e aqui tem sido meu objetivo
repetir isto. No tocante à teoria formulada no livro, fui em parte responsável,
mas em uma medida que hoje não é mais possível determinar. Essa teoria foi de
qualquer maneira despretensiosa e quase não ultrapassou a descrição direta das
observações. Não procurou estabelecer a natureza da histeria mas apenas lançar
luz sobre a origem de seus sintomas. Assim, dava ênfase à significação da vida
das emoções e à importância de estabelecer distinção entre os atos mentais
inconscientes e os conscientes (ou, antes, capazes de ser conscientes);
introduziu um fator dinâmico, supondo que um sintoma surge através do
represamento de um afeto, e um fator econômico, considerando aquele mesmo
sintoma como o produto da transformação de uma quantidade de energia que de
outra maneira teria sido empregada de alguma outra forma. (Esse segundo
processo foi descrito como conversão.) Breuer referiu-se ao nosso método como
catártico; explicou-se sua finalidade terapêutica como sendo a de proporcionar
que a cota de afeto utilizada para manter o sintoma, que se desencaminhara e
que, por assim dizer, se tinha tornado estrangulada ali, fosse dirigida para a
trilha normal ao longo da qual pudesse obter descarga(ou ab-reação). Os
resultados práticos do processo catártico foram excelentes. Seus defeitos, que
se tornaram evidentes depois, eram os de todas as formas de tratamento
hipnótico. Ainda existe grande número de psicoterapeutas que não foi além da
catarse como Breuer a compreendia e que ainda fala em seu favor. Seu valor como
método resumido foi revelado novamente por Simmel [1918] em seu tratamento das
neuroses de guerra no exército alemão, durante a primeira guerra mundial. A
teoria da catarse não tinha muito a dizer sobre o tema da sexualidade. Nos
casos clínicos com que contribuí para os Estudos, os papéis sexuais
desempenhavam certa função, mas quase não se prestou mais atenção a eles do que
a outras excitações emocionais. Breuer escreveu sobre a moça, que desde então
se tornou famosa como sua primeira paciente, que sua faceta sexual era
extraordinariamente não desenvolvida. Teria sido difícil adivinhar pelos
Estudos sobre a Histeria a importância que tem a sexualidade na etiologia das
neuroses.
A fase de desenvolvimento que então se seguiu,
a transição da catarse para a psicanálise propriamente dita, já foi descrita
por mim várias vezes com tantos pormenores que julgo difícil formular quaisquer
fatos novos. O evento que constituiu a abertura desse período foi o afastamento
de Breuer do nosso trabalho comum, de modo que me tornei o único administrador
do seu legado. Tinham-se verificado divergências de opiniões entre nós numa
fase bem inicial, mas não haviam constituído uma base para nosso afastamento.
Ao responder à pergunta sobre quando é que um processo mental se torna
patogênico - isto é, quando é que se torna impossível lidar com ele normalmente
- , Breuer preferiu o que poderia ser chamado de teoria fisiológica: julgava
ele que os processos que não podiam encontrar um resultado normal eram aqueles
que se haviam originado durante estados mentais ‘hipnóides’ inusitados. Isto
provocou a questão ulterior da origem desses estados hipnóides. Eu, por outro
lado, estava inclinado a suspeitar da existência de uma ação mútua de forças e
da atuação de intenções e propósitos como os que devem ser observados na vida
normal. Era assim um caso de ‘histeria hipnóide’ versus ‘neuroses de defesa’.
Mas divergências como essa quase não o teriam afastado do assunto, se não
tivesse havido outros fatores em ação. Um desses foi indubitavelmente que seu
trabalho como clínico e médico de família tomava grande parte de seu tempo, e
ele não podia, como eu, devotar todas as suas forças ao trabalho da catarse.
Além disso, viu-se atingido pela recepção que nosso livro obtivera tanto em
Viena como na Alemanha. Sua autoconfiança e poderes de resistência não estavam
desenvolvidos tão plenamente quanto o resto de sua organização mental. Quando,
por exemplo, os Estudos foram alvo do mau acolhimento por parte de Strümpell
fui capaz de rir pela falta de compreensão que sua crítica demonstrava, mas
Breuer sentiu-se magoado e tornou-se desencorajado. Mas o que contribuiu
principalmente para sua decisão foi que meu próprio trabalho ulterior conduzia
a uma direção com a qual ele achava impossível reconciliar-se.
A teoria que havíamos tentado construir nos
Estudos continuou, como já disse, muito incompleta; em particular, quase não
tínhamos tocado no problema da etiologia, na questão do terreno onde o processo
patogênico lança raízes. Aprendi então por experiência própria, a qual
aumentava rapidamente, que não era qualquer espécie de excitação emocional que
estava em ação por trás dos fenômenos da neurose, mas habitualmente uma
excitação de natureza sexual, quer fosse um conflito sexual comum, quer o
efeito de experiências sexuais anteriores. Eu não estava preparado para essa
conclusão e minhas expectativas não desempenharam papel algum nela, pois eu
havia começado minha investigação de neuróticos de maneira bem insuspeitável.
Enquanto escrevia minha ‘A História do Movimento Psicanalítico’ em 1914,
vinham-me à mente algumas observações que me tinham sido feitas por Breuer,
Charcot e Chrobak, as quais poderiam ter-me conduzido mais cedo a essa
descoberta. Mas na ocasião em que as ouvi não compreendi o que essas
autoridades queriam dizer; na realidade haviam-me dito mais do que elas
próprias sabiam ou estavam preparadas para defender. O que ouvi delas
permaneceu em estado latente e inativo dentro de mim, até que a oportunidade de
meus experimentos catárticos o trouxe à luz como uma descoberta aparentemente
original. Também não estava cônscio de que ao derivar a histeria da sexualidade
eu estava voltado aos próprios inícios da medicina e acompanhando um pensamento
de Platão. Só depois é que vim a saber disso por um ensaio de Havelock Ellis.
Sob a influência de minha surpreendente
descoberta, dei então um passo importante. Fui além do domínio da histeria e
comecei a investigar a vidasexual dos chamados neurastênicos, que costumavam
visitar-me em grande número durante minhas horas de consulta. Essa experiência
custou-me, é verdade, minha popularidade como médico, mas trouxe-me convicções
que hoje em dia, quase trinta anos depois, não perderam nada de sua força.
Havia muitos equívocos e mistérios a serem superados, mas, uma vez isto feito,
veio a ocorrer que em todos esses pacientes graves irregularidades da função
sexual se encontravam presentes. Considerando quão extremamente difundidas se
acham, por um lado, essas irregularidades e, por outro, a neurastenia, uma
freqüente coincidência entre as duas não teria comprovado grande coisa; mas
havia algo mais nela do que um único fato insignificante. Uma observação mais
detida sugeriu-me que era possível escolher, dentre a confusão dos quadros
clínicos encobertos pela designação de neurastenia, dois tipos fundamentalmente
diferentes, que podem surgir em qualquer grau de mistura mas que, não obstante,
iriam ser observados em suas formas puras. Em um dos tipos a manifestação
central era o ataque de ansiedade com seus equivalentes, formas rudimentares e
sintomas substitutivos crônicos; em conseqüência, dei-lhe a denominação de
neurose de angústia, limitando o termo neurastenia ao outro tipo. Agora era
fácil estabelecer o fato de que cada um desses tipos tinha uma anormalidade
diferente da vida sexual como seu fator etiológico correspondente: no primeiro,
coitus interruptus, a excitação não consumada e a abstinência sexual, e no
segundo, masturbação excessiva e emissões noturnas numerosas demais. Em alguns
casos especialmente instrutivos, que haviam revelado surpreendentes alterações
no quadro clínico de um tipo para o outro, pôde ser provado que se havia
verificado uma mudança correspondente no regime sexual subjacente. Se fosse
possível pôr termo à irregularidade e permitir que seu lugar fosse ocupado pela
atividade sexual normal, uma surpreendente melhoria da condição seria a
recompensa.
Fui, assim, levado a considerar as neuroses
como sendo, sem exceção, perturbações da função sexual, sendo as denominadas
‘neuroses atuais‘ a expressão tóxica direta de tais perturbações e as
psiconeuroses sua expressão mental. Minha consciência médica sentia-se
satisfeita por eu haver chegado a essa conclusão. Esperei ter preenchido uma
lacuna na ciência médica, a qual, ao lidar com uma função de tão grande
importância biológica, deixara de levar em conta quaisquer danos além daqueles
causados pela infecção ou por lesões anatômicas grosseiras. O aspecto médico do
assunto era, além disso, apoiado pelo fato de que a sexualidade não era algo
puramente mental. Possuía também uma faceta somática sendo também possível
atribuir-lheprocessos químicos especiais, e atribuir a excitação sexual à
presença de algumas substâncias específicas, embora desconhecidas no momento.
Deve também ter havido alguma boa razão pela qual as verdadeiras neuroses
espontâneas não se assemelhavam a nenhum grupo de doenças mais estreitamente do
que as manifestações de intoxicação e abstinência, que são produzidas pela
administração ou privação de certa substâncias tóxicas, ou do que o bócio
exoftálmico, que, conforme se sabe, depende do produto da glândula tireóide.
Desde aquela época não tive oportunidade de
voltar à pesquisa das ‘neuroses atuais’ nem essa parte do meu trabalho foi
continuada por outro. Se hoje lanço um olhar retrospectivo aos meus primeiros
achados , eles me surpreendem como sendo os primeiros delineamentos toscos
daquilo que é provavelmente um assunto muito mais complicado. Mas no todo ainda
me parecem válidos, Teria ficado muito satisfeito se tivesse sido capaz,
posteriormente, de proceder a um exame psicanalítico de mais alguns casos de
neurastenia juvenil, mas infelizmente não surgiu a ocasião. A fim de evitar
concepções errôneas, gostaria de esclarecer que estou longe de negar a
existência de conflitos mentais e de complexos neuróticos na neurastenia. Tudo
que estou afirmando é que os sintomas desses pacientes não são mentalmente
determinados ou removíveis pela análise, mas devem ser considerados como
conseqüências tóxicas diretas de processos químicos sexuais perturbados.
Durante os anos que se seguiram à publicação
dos Estudos, tendo chegado a essas conclusões sobre o papel desempenhado pela
sexualidade na etiologia das neuroses, li alguns artigos sobre o assunto
perante várias sociedades médicas, mas só me defrontei com incredulidade e
contradição. Breuer fez o que pôde, por mais algum tempo, para lançar na
balança o grande peso de sua influência pessoal a meu favor, mas nada
conseguiu, sendo fácil constatar que também ele se esquivou de reconhecer a
etiologia sexual das neuroses. Ele poderia ter-me esmagado ou pelo menos me
desconcertado, apontando sua própria primeira paciente, em cujo caso os fatores
sexuais ostensivamente não haviam de forma alguma desempenhado qualquer
papel.Mas nunca o fez, e não pude compreender por que agiu dessa forma, até que
vim a interpretar o caso corretamente e a reconstituir, a partir de algumas
observações que fizera, a conclusão de seu tratamento desse mesmo caso. Depois
que o trabalho de catarse parecia estar concluído, a moça subitamente
desenvolvera uma condição de ‘amor transferencial’ ele não havia feito a
ligação disso com sua doença e então se afastara desalentado. Evidentemente
foi-lhe penoso ser lembrado desse aparente contretemps. Sua atitude em relação
a mim oscilou por algum tempo entre admiração e crítica acerba; depois surgiram
dificuldades acidentais, como nunca deixam de surgir numa situação tensa, e nos
afastamos.
Outro resultado de eu haver empreendido o
estudo de perturbações nervosas em geral foi que alterei a técnica da catarse.
Abandonei o hipnotismo e procurei substituí-lo por algum outro método, porque
estava ansioso por não ficar ficar restringido ao tratamento de condições
histeriformes. Uma maior experiência também dera lugar a duas graves dúvidas em
minha mente quanto ao emprego do hipnotismo, mesmo como um meio para a catarse.
A primeira foi que até mesmo os resultados mais brilhantes estavam sujeitos a
ser de súbito eliminados, se minha relação pessoal com o paciente viesse a ser
perturbada. Era verdade que seriam restabelecidos se uma reconciliação pudesse
ser efetuada, mas tal ocorrência demonstrou que a relação emocional pessoal
entre médico e paciente era, afinal de contas, mais forte que todo o processo
catártico, e foi precisamente esse fator que escapava a todos os esforços de
controle. E certo dia tive a experiência que me indicou, sob a luz mais crua, o
que eu há muito tinha suspeitado. Essa experiência ocorreu com uma de minhas
pacientes mais dóceis, com a qual o hipnotismo me permitia obter os resultados
mais maravilhosos e com quem estava comprometido a minorar os sofrimentos,
fazendo remontar seus ataques de dor a suas origens. Certa ocasião, ao
despertar, lançou os braços em torno do meu pescoço. A entrada inesperada de um
empregado nos livrou de uma discussão penosa, mas a partir daquela ocasião
houve um entendimento tácito de que o tratamento hipnótico devia ser
interrompido. Fui bastante modesto em não atribuir o fato aos meus próprios
atrativos pessoais irresistíveis, e senti que então havia apreendido a natureza
do misterioso elemento que se achava em ação por trás do hipnotismo. A fim de
excluí-lo, ou de qualquer maneira isolá-lo, foi necessário abandonar o
hipnotismo.
Mas o hipnotismo fora de imensa ajuda no
tratamento catártico, ampliando o campo de consciência da paciente e pondo ao
seu alcance conhecimentos que não possuía em sua vida de vigília. Não pareceu
ser tarefa fácil encontrar um substituto para os mesmos. Enquanto me encontrava
nesse estado de perplexidade, veio em meu auxílio a lembrança de uma
experiência que muitas vezes testemunhei quando estava com Bernheim. Quando o
paciente despertava do seu estado de sonambulismo parecia haver perdido toda
recordação do que tinha acontecido enquanto se encontrava naquele estado. Mas
Bernheim afirmava que a lembrança se achava presente da mesma maneira; e se
insistia para que o paciente se recordasse, se afirmava que o paciente sabia de
tudo e que tinha apenas de falar, e se ao mesmo tempo punha a mão na testa do
paciente, então as lembranças esquecidas de fato voltavam, de início de forma
hesitante, mas finalmente numa torrente e com clareza completa. Determinei que
agiria da mesma forma . Meus pacientes, refleti, devem de fato ‘saber’ todas as
coisas que até então só tinham sido tornadas acessíveis a eles na hipnose; e
garantias e encorajamento da minha parte, auxiliados talvez pelo toque da minha
mão, teriam, pensei, o poder de forçar os fatos e ligações esquecidos na
consciência. Sem dúvida, isto parecia um processo mais laborioso do que levar
os pacientes à hipnose, mas poderia resultar como sendo altamente instrutivo.
Assim, abandonei o hipnotismo, conservando apenas meu hábito de exigir do
paciente que ficasse deitado num sofá enquanto eu ficava sentado ao lado dele,
vendo-o, mas sem que eu fosse visto.
III
Minhas expectativas foram correspondidas;
livrei-me do hipnotismo. Mas, justamente com a mudança de técnica, o trabalho
de catarse assumiu novo aspecto. A hipnose interceptara da visão uma ação
recíproca de forças que surgiam agora à vista e cuja compreensão proporcionava
um fundamento sólido à minha teoria.
Como ocorrera que os pacientes se haviam
esquecido de tantos dos fatos de suas vidas externas e internas mas podiam, não
obstante, recordá-los se uma técnica específica fosse aplicada? A observação
forneceu uma resposta exaustiva a essa pergunta. Tudo que tinha sido esquecido
de alguma forma ou de outra fora aflitivo; fora ou alarmante ou penoso ou
vergonhoso pelos padrões da personalidade do indivíduo. Foi impossível não
concluir que isto foi precisamente assim porque fora esquecido - isto é, porque
não tinha permanecido consciente. A fim de torná-lo consciente novamente apesar
disto, foi necessário superar algo que lutava contra alguma coisa no paciente,
foi necessário envidar esforços da parte do próprio paciente a fim de
compeli-lo a recordar-se. A dose de esforço do médico variava em diferentes
casos; aumentava em proporção direta com a dificuldade do que tinha de ser
lembrado. O dispêndio de força por parte do médico era evidentemente a medida
de uma resistência por parte do paciente. Bastou traduzir em palavras o que eu
próprio havia observado e fiquei de posse da teoria da repressão.
Então foi fácil reconstituir o processo
patogênico. Fiquemos em um exemplo simples no qual um impulso específico
surgira na mente do indivíduo mas se defrontava com a oposição de outros
impulsos poderosos. Devíamos ter esperado o conflito mental que então apareceu
para obedecer ao seguinte curso. As duas dinâmicas - para nossa finalidade
atuais denominemo-las ‘o instinto’ e ‘a resistência’ - lutavam uma com a outra
à plena luz da consciência, até que o instinto era repudiado e a catexia de
energia era retirada de sua impulsão. Isto teria sido a solução normal. Em uma
neurose, contudo (por motivos que eram ainda desconhecidos), o conflito
encontrou um resultado diferente. O ego recuou, por assim dizer, na sua
primeira colisão com o impulso instintual objetável; impediu o impulso de ter
acesso à consciência e à descarga motora direta, mas ao mesmo tempo o impulso
reteve sua catexia integral de energia. Denominei esse processo de repressão;
era uma novidade e nada semelhante a ele jamais fora reconhecido na vida
mental. Era obviamente um mecanismo primário de defesa, comparável a uma
tentativa de fuga, e era apenas um percurso do julgamento de condenação normal
desenvolvido depois. O primeiro ato de repressão envolvia outras conseqüências.
Em primeiro lugar, o ego era obrigado a proteger-se contra a constante ameaça
de uma renovada investida por parte do impulso reprimido, fazendo um dispêndio
permanente de energia, uma anticatexia, e assim se empobrecia. Por outro lado,
o impulso reprimido, que era agora inconsciente, era capaz de encontrar meios
de descarga e de satisfação substituída por caminhos indiretos e de assim levar
toda a finalidade de repressão a nada. No caso da histeria de conversão, o
caminho indireto levava à inervação somática; o impulso reprimido irrompia em
um ponto ou outro e produzia sintomas. Os sintomas eram assim resultado de uma
conciliação, pois embora fossem satisfações substitutivas eram distorcidos e
desviados de sua finalidade devido à resistência do ego.
A teoria da repressão tornou-se a pedra angular
da nossa compreensão das neuroses. Um ponto de vista diferente teve então de
ser adotado no tocante à tarefa da terapia. Seu objetivo não era mais
‘ab-reagir’ um afeto que se desencaminhara, mas revelar repressões e
substituí-las por atos de julgamento que podiam resultar quer na aceitação,
quer na condenação do que fora anteriormente repudiado. Demonstrei meu
reconhecimento da nova situação não denominando mais meu método de pesquisa e
de tratamento de catarse, mas de psicanálise.
É possível considerar a repressão como um
centro e reunir todos os elementos da teoria psicanalítica em relação a ele.
Mas antes de proceder dessa forma tenho outro comentário a tecer, de natureza
polêmica. De acordo com o ponto de vista de Janet, uma mulher histérica era uma
criatura infeliz que, por causa de uma fraqueza de constituição, era incapaz de
manter reunidos seus atos mentais e por esse motivo ela foi vítima de uma
divisão (splitting) da mente e de uma restrição do campo de sua consciência. O
resultado de pesquisas psicanalíticas, por outro lado, revelou que essas
manifestações eram a decorrência de fatores dinâmicos - de conflito mental e de
repressão. Essa distinção parece-me bastante exagerada para pôr termo à
cansativa repetição do ponto de vista de que qualquer coisa de valor na
psicanálise é simplesmente tomada de empréstimo às idéias de Janet. O leitor
terá aprendido pelo meu relato que historicamente e psicanálise é de todo
independente das descobertas de Janet, do mesmo modo que em seu conteúdo
diverge delas e vai muito além da mesmas. As obras de Janet jamais teriam tido
as implicações que tornaram a psicanálise de tal importância para as ciências
mentais e que fizeram com que ela atraísse tal interesse universal. Sempre
tratei o próprio Janet com respeito, visto que suas descobertascoincidiram em
considerável medida com as de Breuer, que foram feitas antes, mas que vieram a
lume depois das dele. Quando, porém, no curso do tempo a psicanálise se tornou
objeto de debates na França, Janet portou-se mal, mostrou ignorância dos fatos
e utilizou feios argumentos. E finalmente revelou-se aos meus olhos, e destruiu
o valor de seu próprio trabalho, declarando que quando falara de atos mentais
‘inconscientes’ nada quisera dizer com essa frase - não havia passado de uma
façon de parler.
Mas o estudo das repressões patogênicas e de
outras manifestações que ainda têm de ser mencionadas compeliu a psicanálise a
adotar o conceito do ‘inconsciente’ de maneira séria. A psicanálise considerava
tudo de ordem mental como sendo, em primeiro lugar, inconsciente; a qualidade
ulterior de ‘consciência’ também pode estar presente ou ainda pode estar
ausente. Isto naturalmente provocou uma negação por parte dos filósofos, para
os quais ‘consciente’ e ‘mental’ eram idênticos, e que protestaram que não
podiam conceber um absurdo como o ‘mental inconsciente’. Isto, contudo, não
pôde ser evitado, e essa idiossincrasia dos filósofos não merece outra coisa
senão ser posta de lado com um dar de ombros. A experiência (adquirida de
material patológico, que os filósofos ignoravam) da freqüência e do poder de
impulsos dos quais nada se sabia diretamente, e cuja existência teve de ser
inferida como algum fato do mundo externo, não deixou qualquer alternativa em
aberto. Pode-se frisar, incidentalmente, que isso era o mesmo que alguém tratar
de sua vida mental como sempre se tratara de outras pessoas. Não se hesitou em
atribuir processos mentais a outras pessoas, embora não se tivesse qualquer
consciência imediata dos mesmos e somente se pudesse inferi-los de suas
palavras e ações. Mas o que permanecia válido para outros indivíduos devia ser
aplicável a si próprio. Qualquer um que tentasse levar o argumento mais para
frente e concluir do mesmo que os próprios conceitos ocultos de alguém
pertenciam realmente a uma segunda consciência, defrontar-se-ia com o conceito de
uma ‘consciência inconsciente’ - e isso dificilmente seria preferível à
suposição de um ‘mental inconsciente’. Se, por outro lado, alguém declarasse,
como alguns outros filósofos, que se estava preparando para levar em conta as
manifestações patológicas, mas que os processos subjacentes aos mesmos não
devem ser descritos como mentais mas como ‘psicóides’, a diferença de opinião
degeneraria numa disputa estéril quanto a palavras, embora mesmo assim a
conveniência decidisse favoravelmente por manter a expressão ‘mental
inconsciente’. A outra questão quanto ànatureza final desse inconsciente não é
mais sensível ou lucrativa do que a mais antiga quanto à natureza do
consciente.
Seria mais difícil explicar concisamente como
veio a acontecer que a psicanálise fizesse outra distinção no inconsciente e o
separasse em um pré-consciente e em um inconsciente propriamente ditos. Basta
dizer que pareceu ser um caminho natural complementar da experiência com
hipóteses que estavam destinadas a facilitar o manuseio do material, e que
estavam relacionadas com assuntos que poderiam não ser objeto de observação
imediata. O mesmíssimo método é adotado pelas ciências mais antigas. A
subdivisão do inconsciente faz parte de uma tentativa de retratar o aparelho da
mente como sendo constituído de grande número de instâncias ou sistemas, cujas
relações mútuas são expressas em termos espaciais, sem contudo implicarem
qualquer ligação com a verdadeira anatomia do cérebro. (Descrevia esse ponto
como o método topográfico de abordagem.) Idéias como estas fazem parte de uma
superestrutura especulativa da psicanálise, podendo qualquer parcela da mesma
ser abandonada ou modificada, sem perda ou pesar, momento em que a sua
insuficiência tenha sido provada. Mas resta ainda muita coisa a ser descrita
que está mais perto da verdadeira experiência.
Já mencionei que minha investigação das causas
precipitantes e subjacentes das neuroses levou-me cada vez com maior freqüência
a conflitos entre os impulsos sexuais do indivíduo e suas resistências à sexualidade.
Em minha busca das situações patogênicas, nas quais as repressões de
sexualidade se haviam estabelecido e nas quais os sintomas, como substitutos do
que foi reprimido, tinham tido sua origem, fui levado cada vez mais de volta à
vida do paciente e terminei chegando aos primeiros anos de sua infância. O que
os poetas e os estudiosos da natureza humana sempre haviam assegurado veio a
ser verdade: as impressões daquele período inicial de vida, embora estivessem
na sua maior parte enterradas na amnésia, deixaram vestígios indeléveis no
crescimento do indivíduo e, em particular, fundamentaram a disposição para
qualquer distúrbio nervoso que viesse a sobrevir. Mas visto que essas
experiências da infância sempre se preocuparam com as excitações sexuais e a
reação contra elas, encontrei-me diante do fato da sexualidade infantil - mais
uma vez uma novidade e uma contradição de um dos mais acentuados preconceitos
humanos. A infância era encarada como ‘inocente’ e isenta dos intensos desejos
do sexo, e não se pensava que a luta contra o domínio da ‘sexualidade’
começasse antes da agitada idade da puberdade. Tais atividades sexuais
ocasionais, conforme tinha sido impossível desprezar nas crianças, eram postas
de lado como indícios de degenerescência ou de depravação prematura, ou como
curiosa aberração da natureza. Poucos dos achados da psicanálise tiveram tanta
contestação universal ou despertaram tamanha explosão de indignação como a
afirmativa de que a função sexual se inicia no começo da vida e revela sua presença
por importantes indícios mesmo na infância. E contudo nenhum outro achado da
análise pode ser demonstrado de maneira tão fácil e completa.
Antes de avançar ainda mais na questão da
sexualidade infantil, devo mencionar um erro no qual incidi por algum tempo e
que bem poderia ter tido conseqüências fatais para todo o meu trabalho. Sob a
influência do método técnico que empreguei naquela época, a maioria dos meus
pacientes reproduzia de sua infância cenas nas quais eram sexualmente seduzidos
por algum adulto. Com pacientes do sexo feminino o papel do sedutor era quase
sempre atribuído ao pai delas. Eu acreditava nessas histórias e, em
conseqüência, supunha que havia descoberto as raízes da neurose subseqüente
nessas experiências de sedução sexual na infância. Minha confiança foi
fortalecida por alguns casos nos quais as relações dessa natureza com um pai,
tio ou irmão haviam continuado até uma idade em que se devia confiar na
lembrança. Se o leitor sentir-se inclinado a balançar a cabeça pela minha
credulidade, não poderei de todo censurá-lo, embora possa alegar que isto
ocorreu numa época em que intencionalmente conservava minha faculdade crítica
em suspenso, a fim de preservar uma atitude não tendenciosa e receptiva em
relação às muitas novidades que despertavam minha atenção diariamente. Quando,
contudo, fui finalmente obrigado a reconhecer que essas cenas de sedução jamais
tinham ocorrido e que eram apenas fantasias que minhas pacientes haviam
inventado ou que eu próprio talvez houvesse forçado nelas, fiquei por algum
tempo inteiramente perplexo. De igual modo, minha confiança em minha técnica e
nos seus resultados sofreu rude golpe; não se podia discutir que eu havia
chegado a essas cenas por um método técnico que eu considerava correto, e seu
tema estava indubitavelmente relacionado com os sintomas dos quais partira
minha pesquisa.Quando me havia refeito, fui capaz de tirar as conclusões certas
da minha descoberta: a saber, que os sintomas neuróticos não estavam
diretamente relacionados com fatos reais, mas com fantasias impregnadas de
desejos, e que, no tocante à neurose, a realidade psíquica era de maior
importância que a realidade material. Mesmo agora não creio que forcei as
fantasias de sedução aos meus pacientes, que as ‘sugeri’. Eu tinha de fato tropeçado
pela primeira vez no complexo de Édipo, que depois iria assumir importância tão
esmagadora, mas que eu ainda não reconhecia sob seu disfarce de fantasia. Além
disso, a sedução durante a infância retinha certa parcela, embora mais humilde,
na etiologia das neuroses. Mas os sedutores vieram a ser, em geral, crianças
mais velhas.
Ver-se-á, então, que meu erro foi o mesmo que
seria cometido por alguém que acreditasse que a história lendária dos primeiros
reis de Roma (segundo narrada por Lívio) era uma verdade histórica em vez
daquilo que de fato ela é - uma reação contra a lembrança de tempos e
circunstâncias que foram insignificantes e ocasionalmente, talvez, inglórias.
Quando o erro foi esclarecido, o caminho para o estudo da vida sexual das
crianças estava desvendado. Tornou-se assim possível aplicar a psicanálise a
outro campo da ciência e utilizar seus dados como meio de descobrir um novo
conhecimento biológico.
A função sexual, conforme verifiquei,
encontra-se em existência desde o próprio início da vida do indivíduo, embora
no começo esteja ligada a outras funções vitais e não se torne independente
delas senão depois; ela tem de passar por um longo e complicado processo de
desenvolvimento antes de tornar-se aquilo com que estamos familiarizados como
sendo a vida sexual normal do adulto. Começa por manifestar-se na atividade de
todo um grande número de instintos componentes. Estes estão na dependência de
zonas erógenas do corpo; alguns deles surgem em pares de impulsos opostos (como
o sadismo e o masoquismo ou os impulsos de olhar e de ser olhado); atuam
independentemente uns dos outros numa busca de prazer e encontram seu objetivo,
na maior parte, no corpo do próprio indivíduo. Assim, de início a função sexual
é não centralizada e predominantemente auto-erótica. Depois, começam a surgir
sínteses nela; uma primeira fase de organização é alcançada sob o domínio dos
componentes orais, e segue-se uma fase anal-sádica, e só depois de a terceira
fase ter sido finalmente alcançada é que a função sexual começa a servir aos
fins de reprodução. No curso desse processo de desenvolvimento, grande número
de elementos dos vários instintos componentes vêm a ser inúteis para essa
última finalidade e são, portanto, deixados de lado ou utilizados para outros
fins, enquanto outros são desviados de seus objetivos e levados para a
organização genital. Dei o nome de libido à energia dos instintos sexuais e
somente a essa forma de energia. Fui depois impelido a supor que a libido nem
sempre passa pelo seu recomendado curso de desenvolvimento de maneira suave.
Como resultado quer da excessiva força de certos componentes, quer de
experiências que implicam uma satisfação prematura, fixações da libido podem
ocorrer em vários pontos no curso de seu desenvolvimento. Se subseqüentemente
verificar-se uma repressão, a libido reflui a esses pontos (um processo
descrito como regressão), sendo a partir deles que a energia irrompe sob a
forma de um sintoma. Depois tornou-se ainda claro que a localização do ponto de
fixação é que determina a escolha da neurose, isto é, a forma pela qual a
doença subseqüente vem a surgir.
O processo de chegar a um objeto, que
desempenha papel tão importante na vida mental, ocorre juntamente com a
organização da libido. Após a fase do auto-erotismo, o primeiro objeto de amor
no caso de ambos os sexos é a mãe, afigurando-se provável que, de início, uma
criança não distingue o órgão de nutrição da mãe do seu próprio corpo. Depois,
mas ainda nos primeiros anos da infância, a relação conhecida como complexo de Édipo
se torna estabelecida: os meninos concentram seus desejos sexuais na mãe e
desenvolvem impulsos hostis contra o pai, como sendo rival, enquanto adotam
atitude análoga. Todas as diferentes variações e conseqüências do complexo de
Édipo são importantes, e a constituição inatamente bissexual dos seres humanos
faz-se sentir e aumenta o número de tendências simultaneamente ativas. Para as
crianças não ficam claras durante muito tempo as diferenças entre os sexos, e
durante esse período de pesquisas sexuais produzem teorias sexuais típicas que,
estando circunscritas pelo fato de não estar completo o próprio desenvolvimento
físico de seus autores, constituem uma mescla de verdade e erro, e deixam de
solucionar os problemas da vida sexual (o enigma da Esfinge - isto é, a questão
de onde vêm os bebês). Vemos, então, que a primeira escolha de objeto de uma
criança é incestuosa. Todo o curso do desenvolvimento que descrevi é percorrido
rapidamente, porquanto a feição mais notável da vida sexual do homem é seu desencadeamento
bifásico, seu desencadeamento em duas ondas, com um intervalo entre elas, que
atinge um primeiro clímax no quarto ou quinto ano da vida de uma criança. Mas a
partir daí essa eflorescência prematura da sexualidade desaparece; os impulsos
sexuais que mostraram tanta vivacidade são superados pela repressão, e segue-se
um período de latência, que dura até a puberdade e durante o qual as formações
reativas de moralidade vergonha e repulsa são estruturadas. De todas as
criaturas vivas somente o homem parece revelar esse desencadeamento bifásico do
crescimento sexual, e talvez seja ele o determinante biológico de uma
predisposição a neuroses. Na puberdade, os impulsos e as relações de objeto dos
primeiros anos de uma criança se tornam reanimados e entre eles os laços
emocionais do seu complexo de Édipo. Na vida sexual da puberdade, verifica-se
uma luta entre os anseios dos primeiros anos e as inibições do período de
latência. Antes de seu desenvolvimento sexual infantil, estabelece-se certa
organização genital, mas somente os órgãos genitais do indivíduo masculino
desempenham nela seu papel, permanecendo os órgãos sexuais femininos não
revelados. (Descrevi isso como o período de primazia fálica.) Nessa fase o
contraste entre os sexos não se inicia em termos de ‘macho’ ou ‘fêmea’, mas de
possuir um ‘pênis’ ou de ser ‘castrado’. O complexo de castração que surge
nesse sentido é da mais profunda importância na formação tanto do caráter
quanto das neuroses.
A fim de tornar mais inteligível esse relato
resumido de minhas descobertas sobre a vida sexual do homem, enfeixei
conclusões às quais cheguei em datas diferentes e que incorporei, à guisa de
suplemento ou correção, nas sucessivas edições de minha obra Três Ensaios sobre
a Teoria da Sexualidade (1905d). Espero que tenha sido fácil apreender a
natureza de minha ampliação (à qual se atribuiu tanta ênfase e que provocou
tanta oposição) do conceito da sexualidade. Essa extensão é de natureza
dúplice. Em primeiro lugar, a sexualidade está divorciada da sua ligação por
demais estreita com os órgãos genitais, sendo considerada como uma função
corpórea mais abrangente, tendo o prazer como a sua meta e só secundariamente
vindo a servir às finalidades de reprodução. Em segundo lugar, os impulsos
sexuais são considerados como incluindo todos aqueles impulsos meramente
afetuosos e amistosos aos quais o uso aplica a palavra extremamente ambígua de
‘amor’. Não considero, contudo, que essas extensões sejam inovações, mas antes
restaurações: significam a eliminação de limitações inoportunas do conceito ao
qual nos permitimos ser conduzidos.
O destacar a sexualidade dos órgãos genitais
apresenta a vantagem de nos permitir levar as atividades sexuais da crianças e
dos pervertidos para o mesmo âmbito que o dos adultos normais. As atividades
sexuais das crianças até agora foram inteiramente desprezadas e, embora as dos
pervertidos tenham sido reconhecidas, foram-no com indignação moral e sem
compreensão. Encaradas do ponto de vista psicanalítico, mesmo as perversões
mais excêntricas e repelentes são explicáveis como manifestações da primazia
dos órgãos genitais e que se acham agora em busca do prazer por sua própria
conta, como nos primeiros dias do desenvolvimento da libido. A mais importante
dessas perversões, a homossexualidade, quase não merece esse nome. Ela pode ser
remetida à bissexualidade constitucional de todos os seres humanos e aos
efeitos secundários da primazia fálica. A psicanálise permite-nos apontar para
um vestígio ou outro de uma escolha homossexual em todos os indivíduos. Se eu
descrevi as crianças como ‘polimorficamente perversas’ estava apenas empregando
uma terminologia que era geralmente corrente; não estava implícito qualquer
julgamento moral. A psicanálise não se preocupa em absoluto com tais
julgamentos de valor.
A segunda da minhas alegadas extensões do
conceito de sexualidade encontra sua justificativa no fato revelado pela
pesquisa psicanalítica de que todos esses impulsos afetuosos foram
originalmente de natureza sexual, mas se tornaram inibidos em sua finalidade ou
sublimados. A maneira como os instintos sexuais podem assim ser influenciados e
desviados lhes permite ser empregados para atividades culturais de toda
espécie, para as quais, realmente, prestam as mais importantes contribuições.
Minhas surpreendentes descobertas quanto à
sexualidade das crianças foram efetuadas, no primeiro exemplo, mediante a
análise de adultos. Mas depois (mais ou menos a partir de 1908) tornou-se
possível confirmá-las plenamente e em todos os detalhes por observações diretas
em crianças. Na realidade, é tão fácil alguém se convencer das atividades
sexuais regulares, que não se pode deixar de perguntar, atônito, como a raça
humana pode ter conseguido desprezar os fatos e manter por tanto tempo a lenda
impregnada de desejo da assexualidade da infância. Essa surpreendente
circunstância deve estar ligada à amnésia que, na maioria dos adultos, oculta
sua própria infância.
IV
As teorias da resistência e da repressão, do
inconsciente, da significância etiológica da vida sexual e da importância das
experiências infantis - tudo isto forma os principais constituintes da
estrutura teórica da psicanálise. Nestas páginas, infelizmente, pude apenas
descrever os elementos separados e não suas interligações e sua relação uns com
os outros. Mas sou obrigado agora a voltar às alterações que gradativamente se
verificam na técnica do método analítico.
Os meios que primeiramente adotei para superar
a resistência do paciente, pela insistência e pelo estímulo, tiveram de ser
indispensáveis para a finalidade de proporcionar-me um primeiro apanhado geral
que era de se esperar. Mas em última análise veio a ser um esforço demasiado de
ambos os lados, e além disso parecia aberto a certas críticas evidentes. Deu,
portanto, lugar a outro que era, em certo sentido, seu oposto. Em vez de
incitar o paciente a dizer algo sobre algum assunto específico, pedi-lhe então
que se entregasse a um processo de associação livre - isto é, que dissesse o
que lhe viesse à cabeça, enquanto deixasse de dar qualquer orientação consciente
a seus pensamentos. Era essencial, contudo, que ele se obrigasse a informar
literalmente tudo que ocorresse à sua autopercepção, e não desse margem a
objeções críticas que procurassem pôr certas associações de lado, com base no
fundamento de que não eram irrelevantes ou inteiramente destituídas de sentido.
Não houve necessidade de repetir explicitamente a exigência de franqueza por
parte do paciente ao relatar seus pensamentos, pois era precondição do
tratamento analítico inteiro.
Poderá parecer surpreendente que esse método de
associação livre, levado a cabo sob a observação da regra fundamental da
psicanálise, deva ter alcançado o que dele se esperava, a saber, o levar até a
consciência o material reprimido que era retido por resistências. Devemos,
contudo, ter em mente que a associação livre não é realmente livre. O paciente
permanece sob a influência da situação analítica, muito embora não esteja
dirigindo suas atividades mentais para um assunto específico. Seremos
justificados ao presumir que nada lhe ocorrerá que não tenha alguma referência
com essa situação. Sua resistência contra a reprodução do material reprimido
será agora expressa de duas maneiras. Em primeiro lugar, será revelada por
objeções críticas; e foi para lidar com tais objeções que a regra fundamental
da psicanálise foi inventada. Mas se o paciente observar essa regra e assim
superar suas reservas, a resistência encontrará outro meio de expressão. Tal
regra a disporá de tal forma que o próprio material reprimido jamais ocorrerá ao
paciente, mas somente algo que se aproxima dele de maneira alusiva;e quanto
maior a resistência, mais remota da idéia real, da qual o analista se acha à
procura, estará a associação substitutiva que o paciente tem de informar. O
analista, que escuta serenamente, mas sem qualquer esforço constrangido, à
torrente de associações e que, pela sua experiência, possui uma idéia geral do
que esperar, pode fazer uso do material trazido à luz pelo paciente de acordo
com duas possibilidades. Se a resistência for leve, ele será capaz, pelas
alusões do paciente, de inferir o próprio material inconsciente; se a
resistência for mais forte, ele será capaz de reconhecer seu caráter a partir
das associações, quando parecerem tornar-se mais remotas do tópico em mão, e o
explicará ao paciente. A descoberta da resistência, contudo constitui o
primeiro passo no sentido de superá-la. Assim, o trabalho de análise implica
uma arte de interpretação, cujo manuseio bem-sucedido pode exigir tato e
prática, mas que não é difícil de adquirir. Mas não é apenas na poupança de
trabalho que o método de associação livre possui vantagem sobre o anterior. Ele
expõe o paciente à menor dose possível de compulsão, jamais permitindo que se
perca contato com a situação corrente real, e garante em grande medida que
nenhum fator da estrutura da neurose seja desprezado e que nada seja
introduzido nela pelas expectativas do analista. Deixa-se ao paciente, em todos
os pontos essenciais, que determine o curso da análise e o arranjo do material;
qualquer manuseio sistemático de sintomas ou complexos específicos torna-se
desse modo impossível. Em completo contraste com o que aconteceu com o
hipnotismo e com o método de inicitação, o material inter-relacionado aparece
em diferentes tempos e em pontos diferentes no tratamento. Portanto, para um
espectador - embora de fato não deva haver nenhum - um tratamento analítico
pareceria inteiramente obscuro.
Outra vantagem do método é que jamais precisa
ser decomposto. Deve, teoricamente, sempre ser possível ter uma associação,
contanto que não se estabeleçam quaisquer condições quanto ao seu caráter.
Contudo, há um único caso no qual de fato ocorre essa divisão com absoluta
regularidade; por sua própria natureza sui generis, contudo, esse caso também
pode ser interpretado.
Chego agora à descrição de um fator que
acrescenta uma feição essencial ao meu quadro de análise, e que pode
reivindicar, tanto técnica quanto teoricamente, ser considerado como de
importância primacial. Em todo tratamento analítico surge, sem interferência do
médico, uma intensa relação emocional entre o paciente e o analista, que não
deve ser explicada pela situação real. Pode ser de caráter positivo ou
negativo, e pode variar entre os extremos de um amor apaixonado, inteiramente
sensual, e a expressão infrene de desafio e ódio exacerbados. Essa
transferência - para designá-la pelo seu nome abreviado - logo substitui na
mente do paciente o desejo de ser curado, e, enquanto for afeiçoada e moderada,
torna-se o agente da influência do médico e nem mais nem menos do que a mola
mestra do trabalho conjunto de análise. Posteriormente, quando se tiver tornado
arrebatada ou tiver sido convertida em hostilidade, torna-se o principal
instrumento da resistência. Poderá então acontecer que paralise os poderes de
associação do paciente e ponha em perigo o êxito do tratamento. Contudo, seria
insensato fugir à mesma, pois uma análise sem transferência é uma
impossibilidade. Não se deve supor, todavia, que a transferência seja criada
pela análise e não ocorra independente dela. A transferência é meramente
descoberta e isolada pela análise. Ela é um fenômeno universal da mente humana,
decide o êxito de toda influência médica, e de fato domina o todo das relações
de cada pessoa com seu ambiente humano. Podemos facilmente reconhecê-la como o
mesmo fator dinâmico que os hipnotistas donominaram de ‘sugestionabilidade’,
que é o agente do rapport hipnótico e cujo comportamento imprevisível levou
também a dificuldades com o método catártico. Quando não existe nenhuma
inclinação para uma transferência de emoção tal como esta, ou quando se torna
completamente negativa, como acontece na demência precoce ou na paranóia, então
também não há qualquer possibilidade de influenciar o paciente por meios
psicológicos.
É perfeitamente verdade que a psicanálise, como
outros métodos psicoterapêuticos, emprega o instrumento da sugestão (ou
transferência). Mas a diferença é esta: na análise não é permitido desempenhar
o papel decisivo na determinação dos resultados terapêuticos. Utiliza-se, ao
contrário, induzir o paciente a realizar um trabalho psíquico - a superação de
suas resistências à transferência - que implica uma alteração permanente em sua
economia mental. A transferência é tornada consciente para o paciente pelo
analista, e é resolvida convencendo-o de que em sua atitude de transferência
ele está reexperimentando relações emocionais que tiveram sua origem em suas
primeiras ligações de objeto, durante o período reprimido de sua infância.
Dessa forma, a transferência é transformada de arma mais forte da resistência
em melhor instrumento do tratamento analítico. Não obstante, seu manuseio
continua sendo o mais difícil, bem como a parte mais importante da técnica de
análise.
Com a ajuda do método de associação livre e da
arte correlata de interpretação, a psicanálise conseguiu alcançar uma coisa que
parecia não ser de importância prática alguma, mas que de fato conduziu
necessariamente a uma atitude totalmente nova e a uma nova escala de valores no
pensamento científico. Tornou-se possível provar que os sonhos têm um
significado, e descobri-lo. Na Antigüidade clássica dava-se grande importância
aos sonhos, como forma de prever o futuro; mas a ciência moderna nada quis com
eles, passando-os à superstição, declarando-os processos puramente somáticos -
uma espécie de crispação de uma mente que de outra forma está adormecida.
Afigurava-se inteiramente inconcebível que qualquer um que houvesse realizado
um trabalho científico sério pudesse aparecer como um ‘intérprete de sonhos’.
Mas desprezando a excomunhão lançada contra os sonhos, tratando-os como
sintomas neuróticos inexplicados, como idéias delirantes ou obsessivas,
descurando de seu conteúdo aparente, e fazendo de suas imagens componentes
isoladas temas para associação livre, a psicanálise chegou a uma conclusão
diferente. As numerosas associações produzidas por aquele que sonhava levaram à
descoberta de uma estrutura de pensamentos que não pode mais ser descrita como
absurda ou confusa, que se classificava como um produto psíquico inteiramente
válido, e do qual o sonho manifesto não passava de uma tradução distorcida,
abreviada e mal compreendida, e na sua maior parte uma tradução em imagens.
Esses pensamentos oníricos latentes encerravam o significado do sonho, enquanto
seu conteúdo manifesto era simplesmente um simulacro, uma fachada, que poderia
servir como ponto de partida para as associações, mas não para a interpretação.
Surgiu uma série de perguntas a serem
respondidas, sendo a mais importante delas sobre se a formação de sonhos tinha
um motivo, em que condições se verificava, por quais métodos os pensamentos
oníricos (que são invariavelmente plenos de sentido) se tornavam convertidos no
sonho (que amiúde é destituído de sentido), e outras além disto. Tentei
solucionar todos esses problemas em A Interpretação de Sonhos, que publiquei no
ano de 1900. Só posso encontrar espaço aqui para o resumo mais breve de minha
pesquisa. Quando os pensamentos oníricos latentes que são revelados pela
análise de um sonho são examinados, verifica-se que um deles se destaca dentre
os demais que são inteligíveis e bem conhecidos daquele que sonha. Esses
últimos pensamentos são resíduos da vida de vigília (os resíduos diurnos, como
são intitulados tecnicamente); mas verifica-se que o pensamento isolado é um
impulso de desejo, muitas vezes de natureza repelente, que é estranho à vida de
vigília daquele que sonha, sendo, em conseqüência, repudiado por ele com
surpresa ou indignação. Esse impulso é o construtor real do sonho: proporciona
a energia para sua produção e faz uso dos resíduos diurnos como material. O
sonho que assim se origina representa uma situação para o impulso, é a
realização do seu desejo. Não seria possível a esse processo verificar-se sem
ser favorecido pela presença de algo da natureza de um estado de sono. A
precondição mental necessária de sono é a concentração do ego sobre o desejo de
dormir e a retirada da energia psíquica de todos os interesses da vida. Visto
que ao mesmo tempo todas as trilhas de aproximação à mortalidade se acham
bloqueadas, o ego é também capaz de reduzir o dispêndio [de energia] pelo qual
em outras ocasiões mantém as repressões. O impulso inconsciente faz uso desse
relaxamento noturno da repressão a fim de abrir seu caminho até a consciência
com o sonho. A resistência repressiva do ego, contudo, não é abolida no sono,
mas apenas reduzida. Parte dela permanece sob a forma de uma censura de sonhos
e proíbe o impulso inconsciente de expressar-se nas formas que apropriadamente
assumiria. Em conseqüência da severidade da censura de sonhos, os pensamentos
oníricos latentes são obrigados a se submeter a serem alterados e amaciados a
fim de tornarem o significado proibido do sonho irreconhecível. Esta é a
explicação da distorção do sonho, que dá conta das características mais
surpreendentes do sonho manifesto. Estamos, portanto, justificados em afirmar
que um sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (reprimido). Ver-se-á
agora que os sonhos são interpretados como um sintoma neurótico: são
conciliações entre as exigências de um impulso reprimido e a resistência de uma
força censora no ego. Visto terem uma origem semelhante, são igualmente
ininteligíveis e têm igual necessidade de interpretação.
Não há qualquer dificuldade para descobrir a
função geral do sonhar. Ela serve à finalidade de desviar, por uma espécie de
ação calmante, os estímulos externos ou internos que tenderiam a despertar
aquele que sonha, e assim de assegurar o sono contra interrupções. Os estímulos
externos são desviados, recebendo uma nova interpretação e sendo entretecidos
em alguma situação inócua; os estímulos internos, causados por exigências
instintuais, recebem liberdade de atuação por aquele que dorme, sendo-lhes
permitido encontrar satisfação na formação de sonhos, enquanto os pensamentos
oníricos latentes submetem-se ao controle da censura. Mas se ameaçam irromper
em liberdade e se o significado do sonho se torna por demais claro, o que sonha
interrompe o sonho e desperta assustado. (Os sonhos dessa natureza são
conhecidos como sonhos de ansiedade.) Uma falha semelhante na função do sonhar
ocorre se um estímulo externo tornar-se demasiado forte para ser desviado.
(Esta é a classe dos sonhos do despertar.) Dei a designação de elaboração
onírica ao processo que, com a cooperação da censura, transforma os pensamentos
latentes no conteúdo manifesto do sonho. Ele consiste em uma maneira peculiar
de tratar o material pré-consciente do pensamento, de modo que suas partes
componentes se tornam condensadas, sua ênfase psíquica torna-se deslocada, e o
seu todo é traduzido em imagens visuais ou dramatizadas, e completado por uma
elaboração secundária. A elaboração onírica constitui excelente exemplo dos
processos que ocorrem nas camadas mais profundas e inconscientes da mente, que
diferem consideravelmente dos processos normais familiares do pensamento. Exibe
também grande número de características arcaicas, tais como o uso de um
simbolismo (nesse caso de natureza predominantemente sexual), o qual desde
então tem sido possível descobrir em outras esferas da atividade mental.
Explicamos que o impulso instintual
inconsciente do sonho liga-se a um resíduo diurno, com certo interesse da vida
de vigília que não foi eliminado; ele dá assim ao sonho que constrói duplo
valor para o trabalho de análise, pois por um lado um sonho que foi analisado
revela-se como a realização de um desejo reprimido, mas por outro pode ser a
continuação de alguma atividade pré-consciente do dia anterior, e poderá conter
todas as espécies de assuntos e dar expressão a uma intenção, a uma
advertência, a uma reflexão, ou mais uma vez à realização de um desejo. A
análise explora o sonho em ambas as direções, como meio de obter conhecimento
tanto do consciente do paciente quanto de seus processos inconscientes. Ela
também se beneficia do fato de que os sonhos têm acesso ao material esquecido
da infância e assim acontece que a amnésia infantil é, na sua maior parte,
superada em relação com a interpretação de sonhos. Nesse sentido, os sonhos
realizam uma parte do que era anteriormente tarefa do hipnotismo. Por outro
lado, jamais sustentei a afirmação, tantas vezes a mim atribuída, de que a
interpretação de sonhos revela que todos os sonhos têm um conteúdo sexual ou
provêm de forças motoras sexuais. É fácil ver que a fome, a sede ou a
necessidade de excretar podem produzir sonhos de satisfação tão bem quanto
qualquer impulso sexual ou egoísta reprimido. O caso de criancinhas nos
proporciona um teste convincente da validade da nossa teoria dos sonhos. Nelas
os vários sistemas psíquicos ainda não se acham acentuadamente divididos e as
repressões ainda não se tornaram profundas, de modo que amiúde nos deparamos
com sonhos que nada mais são do que realizações indisfarçadas de impulsos
impregnados de desejos que sobraram da vida de vigília. Sob a influência de
necessidades imperativas, os adultos podem também produzir sonhos desse tipo
infantil.Da mesma forma que a psicanálise faz uso da interpretação de sonhos,
também se beneficia do estudo de numerosos pequenos deslizes e erros que as
pessoas cometem - ações sintomáticas, como são denominadas. Pesquisei esse
assunto em uma série de artigos que foram publicados pela primeira vez sob a
forma de livro com o título de The Psychopathology of Every Day Life [Freud,
1901b]. Nessa obra amplamente difundida, ressaltei que esses fênomenos não são
acidentais, que exigem mais do que explanações fisiológicas, que têm um
significado e podem ser interpretados, e que há justificativas para inferir-se
deles a presença de impulsos e intenções refreados ou reprimidos. Mas o que
constitui a enorme importância da interpretação de sonhos, bem como desse
segundo estudo, não é a assistência que dão ao trabalho de análise, mas um
outro de seus atributos. Previamente, a psicanálise se interessara apenas em
solucionar manifestações patológicas e, a fim de explicá-las, tinha muitas
vezes sido impelida a fazer suposições cujo caráter abrangente era inteiramente
desproporcional para a importância do material real em consideração. Quando, no
entanto, se tratava de sonhos, não estava mais lidando com sintoma patológico,
mas com uma manifestação da vida mental normal que poderia ocorrer em qualquer
pessoa sã. Se os sonhos viessem a ser interpretados como sintomas, se sua
explanação exigisse as mesmas suposições - a repressão de impulsos, formação
substitutiva, formação de conciliação, a divisão do consciente e do
inconsciente em vários sistemas psíquicos - , então a psicanálise não seria
mais uma ciência auxiliar no campo da psicopatologia, mas antes o ponto de
partida de uma ciência nova e mais profunda da mente, que seria igualmente
indispensável para a compreensão do normal. Seus postulados e achados poderiam
ser levados a outras regiões da ocorrência mental; estava aberto para ela um
caminho que conduzia muito longe, até as esferas do interesse universal.
V
Devo interromper meu relato do crescimento
interno da psicanálise e voltar-me para sua história externa. O que descrevi
até agora sobre suas descobertas relacionou-se em sua maior parte com os
resultados de meu próprio trabalho, mas também preenchi minha história com
material proveniente de datas ulteriores e não estabeleci distinção entre
minhas próprias contribuições e as de meus alunos e seguidores.
Por mais de dez anos após meu afastamento de
Breuer, não tive seguidores. Fiquei completamente isolado. Em Viena, fui
evitado; no exterior, ninguém me deu atenção. Minha Interpretação de Sonhos,
vinda a lume em 1900, mal foi objeto de críticas nas publicações técnicas. Em
meu artigo ‘A História do Movimento Psicanalítico’ [1914d], mencionei como
exemplo da atitude adotada por círculos psiquiátricos de Viena uma conversa com
um assistente na clínica [na qual eu fazia palestras], que escrevera um livro
sobre minhas teorias, mas que nunca havia lido minha Interpretação de Sonhos.
Haviam-lhe dito na clínica que não valia a pena. O homem em questão, que depois
veio a ser professor, chegou ao ponto de repudiar meu relato da conversa e de
lançar dúvidas em geral sobre a exatidão de minha memória. Só posso dizer que
sustento todas as palavras do relato que então fiz.
Logo que percebi a natureza inevitável daquilo
com que me defrontara, minha sensibilidade diminuiu grandemente. Além disso,
meu isolamento gradativamente chegou ao fim. Para começar, um pequeno círculo
de alunos reuniu-se em torno de mim em Viena; e então, depois de 1906, chegou a
notícia de que os psiquiatras de Zurique, E. Bleuler seu assistente C. G. Jung
e outros, estavam adquirindo vivo interesse pela psicanálise. Entramos em
contato pessoal, e na Páscoa de 1908 os amigos da nascente ciência reuniram-se
em Salzburg, concordaram com a realização regular de outros congressos
informais semelhantes e adotaram providências para a publicação de um órgão que
foi organizado por Jung e que recebeu o título de Jahrbuch für
psychoanalytische und psychopathologische Forschungen [Anuário de Pesquisas
Psicanalíticas e Psicopatológicas]. Veio a lume sob a minha direção e a de
Bleuler, deixando de ser publicado no início da [primeira] guerra mundial. Ao
mesmo tempo que os psiquiatras suíços ingressavam no movimento, o interesse
pela psicanálise começou também a ser despertado em toda a Alemanha,
tornando-se tema de grande número de comentários escritos e de vivos debates em
congressos científicos. Mas sua acolhida em parte alguma foi amistosa ou mesmo
benevolentemente neutra. Após travar o mais leve conhecimento com a
psicanálise, a ciência alemã estava coesa para rejeitá-la.
Mesmo hoje, é-me naturalmente impossível prever
o julgamento final da posteridade sobre o valor da psicanálise para a
psiquiatria, a psicologia e as ciências mentais em geral. Mas imagino que,
quando a história da fase em que vivemos vier a ser escrita, a ciência alemã
não terá motivo para orgulhar-se daqueles que a representaram. Não estou
pensando no fato de que rejeitaram a psicanálise ou na forma incisiva como o
fizeram; ambas essas coisas eram facilmente inteligíveis, eram de se esperar e,
de qualquer maneira, não lançaram descrédito algum sobre o caráter dos
adversários da análise. Mas pelo grau de arrogância que demonstraram, pelo seu
desprezo sem consciência da lógica e pela aspereza e falta de gosto dos seus
ataques, não poderia haver desculpa alguma. Poder-se-á dizer que é
infantilidade de minha parte dar livre curso a tais sentimentos, depois de
transcorridos quinze anos, nem o faria, a menos que tivesse algo mais a
acrescentar. Anos depois, durante a grande guerra, quando uma coorte de
inimigos fazia contra a nação alemã a acusação de barbarismo, acusação que
resume tudo o que escrevi acima, ela não obstante feriu profundamente, de modo
a sentir que minha própria experiência não me permitiria contradizê-la.
Um dos meus antagonistas vangloriava-se de
silenciar seus pacientes logo que começavam a falar sobre qualquer coisa de
natureza sexual, e evidentemente pensava que essa técnica lhe dava o direito de
julgar o papel desempenhado pela sexualidade na etiologia das neuroses. Fora as
resistências emocionais, tão facilmente explicáveis pela teoria psicanalítica
que era impossível ter sido conduzido erroneamente por elas, parecia-me que o
principal obstáculo estava no fato de que meus adversários consideravam a
psicanálise como um produto da minha imaginação especulativa, e não estavam
dispostos a crer no trabalho longo, paciente e imparcial que fora dedicado à
sua elaboração. Visto que na opinião deles a análise nada tinha a ver com a
observação ou a experiência, acreditavam que eles próprios estavam justificados
em rejeitarem-na sem experiência. Outros ainda, que não se sentiam tão
fortemente convencidos disso, repetiam em sua resistência a manobra clássica de
não olhar pelo microscópio a fim de evitar ver o que haviam negado. É notável,
realmente, quão incorretamente as pessoas agem quando são obrigadas a formar um
julgamento próprio sobre algum novo assunto. Durante anos foi-me dito por
críticos ‘benevolentes’ - e ainda hoje ouço a mesma coisa - que a psicanálise
está certa até tal e tal ponto, mas que aí ela começa a exagerar e a
generalizar sem justificativa. E sei que, embora nada seja mais difícil do que
decidir onde tal ponto se encontra, esses críticos, algumas semanas ou alguns
dias antes, ignoravam inteiramente o assunto.
O resultado da anátema oficial contra a
psicanálise foi que os analistas começaram a ficar mais coesos. No segundo
congresso, realizado em Nuremberg em 1910, constituíram-se, por proposta de
Ferenczi, em uma ‘Associação Psicanalítica Internacional’, dividida em grande
número de sociedades locais, mas com um presidente comum. A associação
sobreviveu à primeira guerra mundial e ainda existe, consistindo hoje em
sociedades ramificadas na Áustria, Alemanha, Hungria, Suíça, Grã-Bretanha,
Holanda, Rússia e Índia, bem como duas nos Estados Unidos. Providenciei no
sentido de que C. G. Jung fosse nomeado primeiro presidente, o que depois veio
a ser uma medida muito infeliz. Ao mesmo tempo, foi iniciado um segundo
periódico dedicado à psicanálise, o Zentralblatt für Psychoanalyse [Periódico
Central de Psicanálise], organizado por Adler e Stekel, e pouco depois um
terceiro, Imago, organizado por dois analistas não médicos, H. Sachs e O. Rank,
e destinado a tratar da aplicação da psicanálise às ciências mentais. Logo
depois Bleuler [1910]publicou um artigo em defesa da psicanálise. Embora fosse
um alívio encontrar dessa vez honestidade e lógica direta tomando parte na
pendência, não pude sentir-me inteiramente satisfeito com o ensaio de Bleuler.
Ele procurava com demasiada ansiedade uma aparência de imparcialidade; nem
constitui uma questão de acaso ser a ele que nossa ciência deve o valioso
conceito de ambivalência. Em artigos ulteriores, Bleuler adotou tal atitude
crítica em relação à estrutura teórica da análise e rejeitou ou lançou dúvidas
sobre tais pontos essenciais dela, que eu não podia deixar de perguntar a mim
próprio com assombro o que poderia restar para ele admirar. Contudo, não somente
externou ele subseqüentemente os fortes apelos em favor da (‘psicologia
profunda’, como baseou nela seu estudo abrangente de esquizofrenia [Bleuler,
1911]. Não obstante, Bleuler não continuou por muito tempo membro da Associação
Psicanalítica Internacional, exonerando-se da mesma como resultado de
desentendimento com Jung, e perdeu-se o Burghölzli para a análise.
A desaprovação oficial não pôde prejudicar a
divulgação da psicanálise nem na Alemanha nem em outros países. Em outra parte
[1914d] acompanhei as fases de seu crescimento e dei os nomes daqueles que
foram seus primeiros representantes. Em 1909, G. Stanley Hall convidou Jung e a
mim para irmos aos Estados Unidos visitar a Clark University, Worcester, Mass.,
da qual era ele presidente, e passar uma semana pronunciando conferências (em
alemão) nas comemorações do vigésimo aniversário de fundação daquela entidade.
Hall era, com justiça, estimado como psicólogo e educador, e introduzira a
psicanálise em seus cursos vários anos antes; havia um certo quê de ‘fazedor de
reis’ em relação a ele, um prazer em erigir autoridades e depois depô-las.
Conhecemos também ali James J. Putnam o neurologista de Harvard, que apesar de
sua idade era partidário entusiasta da psicanálise e que lançou todo o peso de uma
personalidade que era universalmente respeitada em defesa do valor cultural da
análise e da pureza de suas finalidades. Era um homem estimável, no qual, como
reação contra uma predisposição à neurose obsessiva, predominava uma
tendenciosidade ética, e a única coisa inquietante nele era sua inclinação para
vincular a psicanálise a um sistema filosófico particular a para fazer dela
serva de objetivos morais. Outro fato dessa época que me causou impressão
duradoura foi um encontro com William James, o filósofo. Jamais me esquecerei
de uma pequena cena que ocorreu quando passeávamos juntos. Ele parou de
repente, entregou-me uma bolsa que carregava e pediu-me que continuasse a
caminhar, dizendo que me alcançaria logo que se recuperasse de um acesso de
angina do peito que estava justamente surgindo. Morreu dessa doença um ano
depois, e sempre desejei que me mostrasse tão destemido quanto ele em face da
morte que se aproximava.
Naquela época eu contava apenas cinqüenta e
três anos de idade. Sentia-me jovem e saudável, e minha curta visita ao novo
mundo encorajava meu auto-respeito em todos os sentidos. Na Europa eu me sentia
como um proscrito, mas ali me via acolhido pelos melhores como um igual. Quando
subi ao estrado em Worcester para pronunciar minhas Cinco Lições de Psicanálise
[1910a], isto pareceu a concretização de um incrível devaneio: a psicanálise
não era mais um produto de delírio, tornara-se uma parte valiosa da realidade.
Ela não perdeu terreno nos Estados Unidos desde a nossa visita, é extremamente
popular entre o público leigo e reconhecida por grande número de psiquiatras
oficiais como importante elemento nos estudos médicos. Infelizmente, contudo,
muito sofreu por ter sido diluída. Além disso, muitos desmandos que não têm
relação alguma com ela encontram guarida sob seu nome, havendo poucas
oportunidades de qualquer formação completa na técnica ou na teoria. Também nos
Estados Unidos ela entrou em conflito com o behaviorismo, uma teoria que é
suficientemente ingênua para vangloriar-se de haver tornado todo o problema da
psicologia inteiramente improcedente.
Na Europa, durante os anos de 1911-13,
ocorreram dois movimentos secessionistas da psicanálise, conduzidos por homens
que haviam previamente desempenhado considerável papel na nova ciência, Alfred
Adler e C. G. Jung. Ambos os movimentos pareceram altamente ameaçadores e
rapidamente obtiveram grande número de adeptos, contudo, sua força estava não
em seu próprio conteúdo, mas na atenção que ofereciam de estar libertados do
que se julgava como os achados repelentes da psicanálise, muito embora seu
material real não fosse mais rejeitado. Jung tentou dar aos fatos da análise
uma nova interpretação de natureza abstrata, impessoal e não histórica, e assim
esperava escapar da necessidade de reconhecer a importância da sexualidade
infantil e do complexo edipiano bem como da necessidade de qualquer análise da
infância. Adler parecia afastar-se ainda mais da psicanálise; repudiou
inteiramente a importância da sexualidade, remeteu a formação tanto do caráter
quanto das neuroses unicamente ao desejo dos homens pelo poder e à necessidade
de compensarem suas inferioridades constitucionais, lançou todas as descobertas
psicológicas aos ventos. Mas o que ele rejeitara forçou sua volta ao seu
sistema fechado sob outras designações; o ‘protesto masculino’ dele não passa
da repressão injustificavelmente sexualizada. A crítica com que os dois
heréticos se defrontaram foi branda; eu apenas insisti que tanto Adler como
Jung deixassem de descrever suas teorias como ‘psicanálise’. Após um espaço de
dez anos pode-se afirmar que ambas as tentativas contra a psicanálise foram
desfeitas sem provocar qualquer dano.
Se uma comunidade basear-se no consenso sobre
alguns pontos cardeais, é evidente que as pessoas que abandonaram esse terreno
comum deixarão de pertencer ao mesmo. Contudo, a secessão de antigos discípulos
muitas vezes tem sido trazida à baila contra mim como sinal de minha
intolerância, ou tem sido considerada como prova de certa fatalidade especial
que paira sobre mim. Constitui resposta suficiente ressaltar que em contraste
com aqueles que me abandonaram, como Jung, Adler, Stekel e alguns outros,
existe grande número de pessoas, como Abraham, Eitingon, Ferenczi, Rank, Jones,
Brill, Sachs, Pfister, Van Emden, Reik e outros, que trabalham comigo há uns
quinze anos em leal colaboração e, em sua maior parte, numa amizade sem
desfalecimentos. Mencionei apenas os mais antigos dos meus discípulos, que já
se projetaram por si mesmos na literatura da psicanálise; se omiti outros, isto
não deve ser considerado como um descuido, e na realidade entre aqueles que são
jovens e que se associaram a mim ultimamente encontram-se talentos nos quais se
podem depositar grandes esperanças. Mas penso que posso afirmar em minha defesa
que um homem intolerante, dominado por uma crença arrogante em sua própria
infalibilidade, jamais teria sido capaz de conservar seu domínio sobre um
número tão vasto de pessoas intelectualmente eminentes, mormente se tivesse a
seu dispor tão poucas atrações práticas quanto eu possuía.
A guerra mundial, que dissolveu tantas outras
organizações, nada pôde fazer contra a nossa ‘Internacional’. A primeira
reunião após o conflito realizou-se em 1920, em Haia, em terreno neutro. Era
comovedor ver quão hospitaleiramente os holandeses davam as boas-vindas aos
súditos famintos e empobrecidos dos Estados europeus; e creio que esta foi a
primeira ocasião, em um mundo arruinado, que ingleses e alemães se sentaram à
mesma mesa para o debate amigável de interesses científicos. Tanto na Alemanha
como nos países da Europa ocidental a guerra havia, na realidade, provocado
interesse pela psicanálise. A observação das neuroses de guerra havia
finalmente aberto os olhos da profissão médica para a importância da
psicogênese em perturbações neuróticas, e algumas das nossas perturbações
psicológicas, tais como o ‘ganho proveniente da doença’ e a ‘fuga para a
doença’, rapidamente se tornaram populares. O último congresso antes do colapso
alemão, realizado em Budapeste em 1918, contou com representantes oficiais dos
governos aliados das potências européias centrais, havendo concordado com a
criação de centros psicanalíticos para o tratamento de neuroses de guerra. Mas
esse ponto jamais foi alcançado. De maneira semelhante, também os planos
abrangentes elaborados por um dos nossos principais membros, o Dr. Anton Von
Freund para o estabelecimento, em Budapeste, de um centro para estudo analítico
e tratamento malograram, como resultado das convulsões políticas que se
seguiram logo depois, e da morte prematura do seu autor insubstituível. Em data
ulterior algumas de suas idéias foram postas em execução por Max Eitingon, que
em 1920 fundou uma clínica psicanalítica em Berlim. Durante o breve período do
domínio bolchevique na Hungria,Ferenczi ainda foi capaz de levar a cabo um
curso bem-sucedido de estudos como representante oficial da psicanálise na
Universidade de Budapeste. Após a guerra nossos adversários tiveram o prazer de
anunciar que os fatos haviam produzido um argumento conclusivo contra a
validade das teses de análise. As neuroses de guerra, disseram eles, haviam
provado que os fatores sexuais eram desnecessários à etiologia de distúrbios
neuróticos. Mas seu triunfo foi frívolo e prematuro, pois, por um lado, ninguém
tinha sido capaz de efetuar uma análise completa de um caso de neurose de
guerra, de modo que, de fato, não se conhecia ao certo absolutamente nada
quanto à motivação deles e nenhuma conclusão podia ser inferida dessa
incerteza: ao passo que, por outro lado, a psicanálise de há muito havia
chegado ao conceito do narcisismo e das neuroses narcísicas, nas quais a libido
do paciente está vinculada ao seu próprio ego, em vez de vinculada a um objeto.
Portanto, embora em outras ocasiões se tivesse feito a acusação contra a
psicanálise de haver ela efetuado uma ampliação injustificável do conceito de
sexualidade, esse crime, quando se tornou conveniente para fins controvertidos,
foi esquecido e ficamos mais uma vez presos ao significado mais estreito do
termo.
Se se deixar de lado o período catártico
preliminar, a história da psicanálise enquadra-se, do meu ponto de vista, em
duas fases. Na primeira dessas fiquei sozinho e tive de fazer eu mesmo todo
trabalho: isso ocorreu de 1895-6 até 1906 ou 1907. Na segunda fase, que durou
desde então até o presente momento, quando uma grave doença me adverte do fim
que se aproxima, posso pensar com espírito tranqüilo na cessação de meus
próprios labores.Por esse mesmo motivo, contudo, é-me impossível neste Estudo
Autobiográfico tratar tão plenamente do progresso da psicanálise durante a
segunda fase como o fiz com sua gradativa ascensão durante a primeira, que
dizia respeito apenas à minha própria atividade. Julgo que devo apenas ter a
justificativa de mencionar aqui essas novas descobertas nas quais ainda
desempenhei um papel proeminente, em particular, portanto, aquelas feitas na
esfera do narcisismo, da teoria dos instintos, e da aplicação da psicanálise às
psicoses.
Devo começar dizendo que a crescente experiência
revelava cada vez mais claramente que o complexo edipiano era o núcleo da
neurose. Era ao mesmo tempo o clímax da vida sexual infantil e o ponto de
junção do qual todos os seus desenvolvimentos ulteriores provieram. Mas em caso
afirmativo, não era mais possível esperar que a análise descobrisse um fator
que era específico na etiologia das neuroses. Deve ser verdade, como Jung
expressou tão bem nos primeiros dias em que ainda era analista, que as neuroses
não possuem conteúdo peculiar algum que pertença exclusivamente a elas, mas que
os neuróticos sucumbem às mesmas dificuldades que são superadas com êxito por
pessoas normais. Essa descoberta estava muito longe de ser um desapontamento.
Estava em completa harmonia com outra: que a psicologia profunda revelada pela
psicanálise era de fato a psicologia da mente normal. Nosso caminho tinha sido
como o da química: as grandes diferenças qualitativas entre substâncias eram
remetidas a variações quantitativas nas proporções em que os mesmos elementos
eram combinados.
No complexo edipiano viu-se que a libido estava
ligada à imagem das figuras dos pais. Antes, porém, houve um período no qual
não havia tais objetos. Seguiu-se a partir desse fato o conceito (de
fundamental importância para a teoria da libido) de um estado no qual a libido
do indivíduo preenchia seu próprio ego e tinha este por seu objeto. Esse estado
poderia ser denominado de narcisismo ou amor próprio. A reflexão de um momento
demonstrava que esse estado nunca cessa completamente. Durante toda a vida do
objeto seu ego permanece como o grande reservatório de sua libido, do qual as
catexias objetais são transmitidas e no qual a libido pode refluir novamente a
partir dos objetos. Assim, a libido narcísica está sendo constantemente
transformada em libido objetal, e vice-versa. Um excelente exemplo da extensão
até a qual essa transformação pode ir é proporcionado pelo estado de estar
apaixonado, quer de uma maneira sexual, quer sublimada, que vai ao ponto de
envolver um sacrifício do eu (self). Ao passo que até agora, ao considerar-se o
processo de repressão, somente se dispensou atenção ao que foi reprimido, essas
idéias tornaram possível formar uma estimativa correta das forças de repressão
também. Fora dito que a repressão era posta em ação pelos instintos de
autopreservação que atuam no ego (os ‘instintos do ego’) e que fazia com que
ela se relacionasse com os instintos libidinais. Mas visto que os instintos de
autopreservação foram então reconhecidos como também sendo de natureza
libidinal, como sendo libido narcísica, o processo de repressão foi encarado
como um processo que ocorre dentro da própria libido; a libido narcísica
opunha-se à libido objetal, o interesse da autopredefendia-se contra as
exigências do amor objetal, e portanto contra as exigências da sexualidade no
sentido mais estreito também.
Não há necessidade mais premente na psicologia
do que de uma teoria dos instintos firmemente alicerçada, sobre a qual talvez
então fosse possível formular outros pontos. Contudo, nada disto existe, e a psicanálise
é impelida a envidar esforços especulativos no sentido de tal teoria. Ela
começou por traçar um contraste entre os instintos do ego (os instintos da
autopreservação, a fome) e os instintos libidinais (o amor), mas depois o
substituiu por um novo contraste entre a libido narcísica e a libido objetal.
Isto claramente não foi a última palavra sobre o assunto; pareceu que
considerações biológicas tornaram impossível continuar-se satisfeito com a
existência de apenas uma única classe de instintos.
Nas obras de meus anos mais recentes (Além do
Princípio do Prazer [1910g], Psicologia de Grupo e a Análise do Ego [1921c] e O
Ego e o Id [1923b]), dei livre rédea à inclinação, que reprimi por tanto tempo,
para a especulação, e também considerei uma nova solução do problema dos
instintos. Combinei os instintos para a autopreservação e para a preservação da
espécie sob o conceito de Eros e contrastei com ele um instinto de morte ou
destruição que atua em silêncio. O instinto, em geral, é considerado como uma espécie
de elasticidade das coisas vivas, um impulso no sentido da restauração que
outrora existiu, mas que foi conduzida a um fim por alguma perturbação externa.
Esse caráter essencialmente conservador dos instintos é exemplificado pelos
fenômenos da compulsão de repetição. O quadro que a vida nos apresenta é o
resultado da ação simultânea e mutuamente oposta de Eros e do instinto de
morte.
Resta ver se essa interpretação virá a ser
útil. Embora surgisse do desejo de fixar algumas idéias teóricas mais importantes
da psicanálise, vai muito além da psicanálise. Já ouvi dizer várias vezes em
tom de desprezo que é impossível aceitar seriamente uma ciência cujos conceitos
mais gerais se ressentem de exatidão, como os da libido e do instinto na
psicanálise. Mas essa censura repousa numa concepção totalmente errônea dos
fatos. Conceitos básicos claros e definições vivamente traçadas somente são
possíveis nas ciências mentais até o ponto em que as segundas procuram ajustar
uma região de fatos no arcabouço de um sistema lógico. Nas ciências naturais,
das quais a psicologia é uma delas, tais conceitos gerais nítidos são
supérfluos e realidade impossíveis. A zoologia e a botânica não partiram de
definições corretas e suficientes de um animal e de uma planta; até hoje a biologia
foi incapaz de dar qualquer significado certo ao conceito da vida. A própria
física, realmente, jamais teria feito qualquer progresso se tivesse tido de
esperar até que os seus conceitos de matéria, força, gravitação, e assim por
diante, houvessem alcançado o grau conveniente de clareza e precisão. As idéias
básicas ou os conceitos mais gerais em qualquer das disciplinas da ciência
sempre ficam determinados no início e somente são explicados, para começar,
mediante referência ao domínio dos fenômenos de que se originaram; é somente
por meio de uma análise progressiva do material de observação que podem ser
tornados claros e podem encontrar um significado significativo e consistente.
Sempre julguei grave injustiça que as pessoas se tenham recusado a tratar a
psicanálise como qualquer outra ciência. Essa recusa encontrou expressão no
levantamento das mais obstinadas objeções. A psicanálise era constantemente
censurada pela sua falta de completamento e insuficiência; embora seja claro
que uma ciência baseada na observação não tem nenhuma outra alternativa senão
elaborar seus achados de forma fragmentária e solucionar seus problemas passo a
passo. Além disso, quando me esforcei por obter para a função sexual o
reconhecimento que por tanto tempo fora negado a ela, a teoria psicanalítica
foi tachada de ‘pansexualismo’. E quando dei ênfase à importância, até então
desprezada, do papel desempenhado pelas impressões acidentais dos primeiros
anos da juventude, foi-me dito que a psicanálise negava os fatores constitucionais
e hereditários - coisa que jamais sonhei em fazer. Era um caso de contradição a
qualquer preço e por quaisquer métodos.
Eu já fizera tentativas, em fases mais antigas
do meu trabalho, para chegar a alguns pontos de vista mais gerais com base na observação
psicanalítica. Em um curto ensaio, ‘Formulações sobre os Dois Princípios do
Funcionamento Mental’[1911b], chamei a atenção (e não havia, naturalmente, nada
de original nisso) para o domínio do princípio de prazer-desprazer na vida
mental e para o seu deslocamento pelo que é denominado de princípio de
realidade. Posteriormente [em 1915] fiz uma tentativa para produzir uma
‘Metapsicologia’. Com isso eu queria dizer um método de abordagem de acordo com
o qual todo processo mental é considerado em relação com três coordenadas, as
quais eu descrevi como dinâmica, topográfica e econômica, respectivamente; e
isso me pareceu representar a maior meta que a psicologia poderia alcançar. A
tentativa não passou de uma obra incompleta; após escrever dois ou três artigos
- ‘Os Instintos e suas Vicissitudes’ [1915c], ‘Repressão’ [1915d], ‘O
Inconsciente’ [1915e], ‘Luto e Melancolia’ [1917e] etc. - fiz uma interrupção,
talvez acertadamente, visto que o tempo para afirmações dessa espécie ainda não
havia chegado. Em meus mais recentes trabalhos especulativos entreguei-me à
tarefa de dissecar nosso aparelho mental, com base no ponto de vista analítico
dos fatos patológicos, e o dividi em um ego, um id e um superego. O superego é
o herdeiro do complexo edipiano e representa os padrões éticos da humanidade.
Não gostaria de dar a impressão de que durante
esse último período de meu trabalho voltei as costas à observação de pacientes
e me entreguei inteiramente à especulação. Ao contrário, sempre fiquei no mais
íntimo contato com o material analítico e jamais deixei de trabalhar em pontos
detalhados de importância clínica ou técnica. Mesmo quando me afastei da
observação, evitei cuidadosamente qualquer contato com a filosofia propriamente
dita. Essa evitação foi grandemente facilitada pela incapacidade
constitucional. Sempre me mostrei receptivo às idéias de G. T. Fechner e segui
esse pensador em muitos pontos importantes. O alto grau em que a psicanálise
coincide com a filosofia de Schopenhauer - ele não somente afirma o domínio das
emoções e a suprema importância da sexualidade, mas também estava até mesmo
cônscio do mecanismo da repressão - não deve ser remetida à minha familiaridade
com seus ensinamentos. Li Schopenhauer muito tarde em minha vida. Nietzsche,
outro filósofo cujas conjecturas e intuições amiúde concordam, da forma mais
surpreendente, com os laboriosos achados da psicanálise, por muito tempo foi
evitado por mim, justamente por isso mesmo; eu estava menos preocupado com a
questão da prioridade do que em manter minha mente desimpedida.
As neuroses foram o primeiro tema de análise e
por muito tempo constituíram o único ponto. Nenhum analista podia duvidar que a
clínica estava errada por isolar esses distúrbios das psicoses e por
vinculá-los às doenças orgânicas nervosas. A teoria das neuroses pertence à
psiquiatria, sendo necessária uma introdução a ela. Parecia, contudo, que o
estudo analítico das psicoses é impraticável devido à sua falta de resultados
terapêuticos. Os pacientes mentais, em geral, não têm a capacidade de formar um
transferência positiva, de modo que o principal instrumento da técnica
analítica é inaplicável aos mesmos. A transferência amiúde não se acha tão
inteiramente ausente, mas pode ser utilizada até certo ponto, havendo a análise
alcançado inegáveis êxitos com depressões cíclicas, ligeiras modificações
paranóides e esquizofrenias parciais. Pelo menos tem constituído benefício para
a ciência o fato de que em muitos casos o diagnóstico possa oscilar por tempo
bastante longo entre o assumir a presença de uma psiconeurose ou de uma
demência precoce, pois as tentativas terapêuticas iniciadas em tais casos
resultaram em valiosas descobertas antes que tivessem de ser interrompidas. Mas
a principal consideração nesse sentido é que muitas coisas que nas neuroses
tiveram de ser buscadas nas profundidades são encontradas nas psicoses da
superfície, visíveis a todos. Por esse motivo, os melhores temas para a
demonstração de muitas asserções da análise são proporcionados pela clínica
psiquiátrica. Assim, estava destinado a acontecer, dentro de pouco tempo, que a
análise encontrasse seu caminho até os objetos da observação psiquiátrica.
Muito cedo fui capaz (1896) de estabelecer em um caso de demência paranóide a
presença dos mesmos fatores etiológicos e dos mesmos complexos emocionais que
nas neuroses. Jung [1907] explicou alguns dos estereótipos mais enigmáticos em
dementes pondo-os em relação com históricos das vidas de pacientes; Bleuer
[1906] demonstrou a existência em várias psicoses de mecanismos como aqueles
que a análise havia descoberto em neuróticos. Desde então os analistas jamais
reduziam seus esforços no sentido de chegarem a uma compreensão das psicoses.
Especialmente desde que se tornou possível trabalhar com o conceito de
narcisismo, conseguiram, ora aqui, ora ali, ter uma visão além da barreira. O
máximo, sem dúvida, foi alcançado por Abraham [1912] em sua elucidação das
melancolias. É verdade que nesse campo todos os nossos conhecimentos ainda não
se transformaram em poder terapêutico, mas a simples vitória teórica não deve
ser desprezada, e podemos concentrar-nos em esperar pela sua aplicação prática.
Em última análise, mesmo os psiquiatras não podem resistir à força convincente
de seu próprio material clínico. No momento, a psiquiatria alemã vem passando
por uma espécie de ‘penetração pacífica’ por pontos de vista analíticos. Embora
declarem continuamente que jamais serão psicanalistas, que não pertencem à
escola ‘ortodoxa’ nem concordam com seus exageros,e em particular que não crêem
no predomínio do fator sexual, a maioria dos estudiosos mais jovens lança mão
de uma peça ou outra da teoria analítica e a aplica a seu próprio modo ao
material. Todos os indícios apontam para a proximidade de posteriores
desenvolvimentos na mesma direção.
VI
Agora contemplo a distância as reações
sintomáticas que estão acompanhando a introdução da psicanálise na França, que
por tanto tempo se mostrou refratária. Assemelha-se à reprodução de algo que já
vivi antes, e contudo tem peculiaridades próprias. Objeções de incrível
simplicidade são levantadas, como a de que a sensibilidade francesa é ofendida
pelo pedantismo e crueza da terminologia psicanalítica. (Não se pode deixar de
recordar o imortal Chevalier Riccaut de la Marlinière de Lessing.) Um outro
comentário tem ressonância mais séria (um professor de psicologia da Sorbonne
não a julgava abaixo dele): toda a forma de pensamento da psicanálise, assim
declarou ele, é incompatível com o génie latin. Aqui os aliados anglo-saxões da
França, que contam como partidários da análise, são explicitamente abandonados.
Qualquer um, ouvindo a observação, suporia que a psicanálise tinha sido a filha
predileta do génie teutonique e havia ficado apegada ao seu seio desde o
momento do nascimento.
Na França o interesse pela psicanálise começou
entre os homens de letras. A fim de compreender isso, deve-se ter em mente que,
desde a época em que foi escrita A Interpretação de Sonhos a psicanálise deixou
de ser um assunto puramente médico. Entre seu surgimento na Alemanha e na
França está a história de suas numerosas aplicações a departamentos de
literatura e estética, à história das religiões e à pré-história, à mitologia,
ao folclore, à educação, e assim por diante. Nenhuma dessas coisas tem muito a
ver com a medicina; de fato, é somente através da psicanálise que estão ligadas
a ela. Não me cabe, portanto, entrar em grandes detalhes quanto a elas nestas
páginas. Não posso, contudo, silenciar inteiramente sobre elas, pois, por um
lado, são essenciais a uma apreciação correta da natureza e do valor da
psicanálise, e, por outro, comprometi-me, afinal de contas, a fazer um relato
da obra principal da minha vida. Os primórdios da maioria dessas aplicações da
psicanálise serão encontrados em minhas obras. Aqui e ali segui um pouco a
trilha a fim de gratificar meus interesses não médicos. Posteriormente,outros
(não somente médicos, mas também especialistas nos vários campos) seguiram as
minhas pegadas e penetraram a fundo nos diferentes temas. Mas visto que meu
programa me limita a mencionar minha própria parcela nessas aplicações da
psicanálise, posso apenas apresentar um quadro bem inadequado de sua extensão e
importância.
Grande número de sugestões me ocorreu a partir
do complexo de Édipo, cuja ubiqüidade gradativamente comecei a compreender. A
escolha do poeta, ou sua invenção, de um assunto tão terrível parecia
enigmática, assim como o efeito esmagador de seu tratamento dramático, e a
natureza geral de tais tragédias do destino. Mas tudo isso se tornou
inteligível quando se compreendeu que uma lei universal da vida mental havia
sido captada aqui em todo seu significado emocional. O destino e o oráculo nada
mais eram do que materializações de uma necessidade interna; e o fato de o
herói pecar sem seu conhecimento e contra suas intenções era evidentemente uma
depressão certa da natureza inconsciente de suas tendências criminosas. A
partir da compreensão dessa tragédia do destino só restava um passo para
compreender uma tregédia de caráter - Hamlet, objeto de admiração por trezentos
anos, sem que seu significado tivesse sido descoberto ou os motivos de seu
autor adivinhados. Mal poderia haver a possibilidade de que essa criação
neurótica do poeta viesse a malograr, como seus inúmeros companheiros da vida
real, sobre o complexo de Édipo, pois Hamlet viu-se defrontado com a tarefa de
tirar vingança de outro pelos dois feitos que são o tema dos desejos de Édipo;
e diante daquela tarefa seu braço ficou paralisado pelo seu próprio obscuro
sentimento de culpa. Shakespeare escreveu Hamlet logo após a morte do pai. As
sugestões feitas por mim para a análise dessa tragédia foram plenamente
elaboradas depois por Ernest Jones [1910]. E o mesmo exemplo foi posteriormente
utilizado por Otto Rank como o ponto de partida para sua investigação da
escolha de material feita por dramaturgos. Em seu grande volume sobre o tema do
incesto (Rank, 1912) ele foi capaz de revelar como com tanta freqüência
escritores têm tomado por assunto os temas de situação de Édipo e traçado, nas
diferentes literaturas do mundo, a maneira pela qual o material tem sido
transformado, modificado e suavizado.
Era tentador prosseguir dali uma tentativa de
análise da criação poética e artística em geral. O domínio da imaginação logo
foi visto como uma ‘reserva’ feita durante a penosa transição do princípio de
prazer para o princípio de realidade a fim de proporcionar um substituto para
as satisfações instintuais que tinham de ser abandonadas na vida real. O
artista, como o neurótico, se afastara de uma realidade insatisfatória para
esse mundo da imaginação; mas, diferentemente do neurótico, sabia encontrar o
caminho de volta daquela e mais uma vez conseguir um firme apoio na realidade.
Suas criações, obras de arte, eram as satisfações imaginárias de desejos
inconscientes, da mesma forma que os sonhos; e, como estes, eram da natureza de
conciliações, visto que também eram forçados a evitar qualquer conflito aberto
com as forças de repressão. Mas diferiam dos produtos a-sociais, narcísicos do
sonhar, na medida em que eram calculados para despertar interesse compreensivo
em outras pessoas, e eram capazes de evocar e satisfazer aos mesmos impulsos
inconscientes repletos de desejos também nelas. Além disso, faziam uso do
prazer percentual da beleza formal como o que chamei de um ‘abono de
incentivo’. O que a psicanálise era capaz de fazer era tomar das inter-relações
entre as impressões da vida do artista, suas experiências fortuitas e suas
obras, e a partir delas interpretar a constituição [mental] dele e os impulsos
instintuais em ação nela - isto é, aquela parte dele que ele partilhava com
todos os homens. Com esse objetivo em vista, por exemplo, fiz de Leonardo da
Vinci o tema de um estudo [1910c], que sebaseia numa única lembrança da
infância relacionado por ele e que viso principalmente a explicar seu quadro de
‘Sant’Ana com a madona e o menino’. Desde então meus amigos e meus alunos têm
empreendido numerosas análises de artistas e suas obras. Não parece que a
fruição de uma obra de arte seja estragada pelo conhecimento auferido de tal
análise. O leigo talvez possa esperar demais da análise nesse sentido, pois
deve-se admitir que ela não lança luz alguma sobre os dois problemas que
provavelmente mais lhe interessam. Ela nada pode fazer quanto à elucidação da
natureza do dom artístico, nem pode explicar os meios pelos quais o artista
trabalha - a técnica artística.
Fui capaz de demonstrar por um conto de W.
Jensen intitulado Gradiva [1907a], o qual não possui qualquer mérito específico
por si mesmo, que os sonhos inventados podem ser interpretados da mesma forma
que os reais e que os mecanismos inconscientes familiares a nós na ‘elaboração
onírica’ são assim também atuantes nos processos dos escritos imaginativos. Meu
livro sobre Jokes and their Relation to the Unconscious [1905c] foi um tema
secundário proveniente diretamente de A Interpretação de Sonhos. O único amigo
meu interessado naquela época em meu trabalho observou-me que minhas
interpretações de sonhos muitas vezes o impressionavam como sendo chistes. A
fim de lançar alguma luz sobre essa impressão, comecei a pesquisar chistes e
verifiquei que sua essência estava nos métodos técnicos neles empregados, e que
esses eram os mesmos que os meios utilizados na ‘elaboração onírica’ - isto é,
condensação, deslocamento, a representação de uma coisa pelo seu oposto ou por
algo pequeno, e assim por diante. Isso conduziu a uma indagação econômica de
origem do alto grau de prazer obtido ao ouvir-se um chiste. E a isso a resposta
foi que tal se devia à suspensão momentânea do dispêndio de energia na
maturidade da repressão, devido à atração exercida pelo oferecimento de um
abono de prazer (prazer preliminar).
Eu próprio atribuí um valor mais elevado a
minhas contribuições à psicologia da religião, que começaram com o
estabelecimento de marcante similitude entre as práticas religiosas ou ritual
(1907b). Sem ainda compreender as ligações mais profundas, descrevi a neurose
obsessiva como uma religião particular distorcida e a religião como uma espécie
de neurose obsessiva universal. Posteriormente, em 1912, a indicação
convincente de Jung das analogias de amplas conseqüências entre os produtos
mentais dos neuróticos e dos povos primitivos levou-me a voltar minha atenção
paraaquele assunto. Em quatro ensaios, enfeixados num livro com o título de
Totem e tabu [1912-13], mostrei que o horror do incesto era ainda mais
acentuado entre as raças primitivas do que entre as civilizadas e dera lugar a
medidas muito especiais de defesa contra ele. Examinei as relações entre as
proibições tabus (a forma mais antiga na qual as restrições morais fazem seu
surgimento) e a ambivalência emocional, e descobri sob o esquema primitivo do
universo conhecido como ‘animismo’ o princípio da superestimativa da
importância da realidade psíquica - a crença ‘na onipotência dos pensamentos’ -
que está na raiz da magia também. Desenvolvi a comparação com a neurose
obsessiva em todos os pontos, e mostrei quantos dos postulados da vida mental
primitiva ainda estão em vigor nessa notável doença. Antes de tudo, todavia,
vi-me atraído pelo totemismo, o primeiro sistema de organização nas tribos
primitivas, um sistema no qual os inícios da ordem social estão unidos com uma
religião rudimentar e com o domínio implacável de um pequeno número de
proibições tabus. O ser reverenciado é, em última análise, sempre um animal, do
qual o clã também pode reivindicar ser descendente. Muito indícios apontavam
para a conclusão de que toda raça, mesmo a mais altamente desenvolvida, havia
outrora passado pela fase do totemismo.
As principais fontes literárias de meus estudos
nesse campo foram as conhecidas obras de J. G. Frazer (Totemism and Exogamy e
The Golden Bough), um filão de valiosos fatos e opiniões. Mas Frazer pouco
realizou no sentido de elucidar os problemas do totemismo: ele várias vezes
alterara fundamentalmente seus pontos de vista sobre o assunto, e os outros
etnólogos e pré-historiadores parecem estar em igual incerteza e discordância.
Meu ponto de partida foi a impressionante correspondência entre as duas
ordenações tabus do totemismo (não matar o totem e não ter relações sexuais com
qualquer mulher do mesmo clã do totem) e os dois elementos do complexo de Édipo
(livrar-se do pai e tomar a mãe como esposa). Vi-me, portanto, tentado a
equacionar o animal-totem com o pai; e, de fato, os próprios povos primitivos
fazem isso explicitamente honrando-o como o ancestral do clã. A seguir vieram
em meu auxílio dois fatos da psicanálise, uma feliz observação de uma criança
feita por Ferenczi [1929a], que me permitiu referir-me a um ‘retorno infantil
do totemismo’, e a análise de fobias animais iniciais nas crianças, que tantas
vezes revelaram que o animal era um substituto do pai, um substituto para o
qual o medo ao pai, oriundo do complexo de Édipo, foradeslocado. Não me faltava
muito para reconhecer o assassinato do pai como o núcleo do totemismo e o ponto
de partida na formação da religião.
Esse elemento que faltava foi suprido quando me
familiarizei com a obra de W. Robertson Smith, The Religion of the Semites. Seu
autor (um homem de suma capacidade intelectual que era tanto médico como perito
em pesquisas bíblicas) introduziu a chamada ‘refeição totem’ como parte
essencial da religião totêmica. Uma vez por ano o animal totem, que em outras
épocas era considerado como sagrado, era solenemente abatido na presença de todos
os membros do clã, devorado e então objeto de lamentações. O pesar era seguido
de um grande festival. Quando levei ainda mais em conta a conjectura de Darwin
de que os homens originalmente viviam em hordas, cada um sob o domínio de um
único macho poderoso, violento e ciumento, surgiu diante de mim, de todos esses
componentes, a seguinte hipótese ou, melhor dizendo, visão. O pai da horda
primitiva, visto que era um déspota absoluto, apoderara-se para si mesmo de
todas as mulheres; seus filhos, sendo-lhe perigosos como rivais, tinham sido
mortos ou afugentados. Um dia, contudo, os filhos se reuniram e se aliaram para
dominar, matar e devorar o pai, que fora seu inimigo mas também seu ideal. Após
o feito foram incapazes de assumir sua herança, visto que se atrapalhavam
mutuamente. Sob a influência do fracasso e do remorso aprenderam a chegar a um
acordo entre si; agruparam-se num clã de irmãos, mediante o auxílio dos ditames
do totemismo, que visavam impedir a repetição de tal feito, e em conjunto
passaram a abrir mão da posse das mulheres por cuja causa haviam matado o pai.
Foram então impelidos a encontrar mulheres estranhas, sendo esta a origem da
exogamia que se acha tão estreitamente vinculada ao totemismo. A refeição totem
era festival que comemorava o temível feito que decorria do sentimento de culpa
do homem (ou ‘pecado original’) e que foi começo, ao mesmo tempo, da
organização social, da religião e de restrições éticas.
Ora, se supusermos que tal possibilidade foi um
fato histórico ou não, ela traz a formação da religião para o círculo do
complexo do pai e a baseia na ambivalência que domina esse complexo. Depois que
o animal totem deixou de servir como substituto para ele, o pai primitivo, ao
mesmo tempo temido e odiado, reverenciado e invejado, tornou-se o protótipo do
próprio Deus. A rebeldia do filho e sua afeição pelo pai lutavam uma contra a
outra através de uma constante sucessão de conciliações, que procuravam, por um
lado, reparar o ato do parricídio e, por outro, consolidar as vantagens que ocasionara.
Esse ponto de vista da religião lança uma luz particularmente clara sobre a
base psicológica do cristianismo, no qual, como sabemos, a cerimônia da
refeição totem ainda sobrevive com apenas um pouco dedistorção, sob a forma de
comunhão. Gostaria explicitamente de mencionar que essa última observação não
foi feita por mim, mas se encontra nas obras de Robertson Smith e Frazer.
Theodor Reik e G. Róheim, o etnólogo, seguiram
a linha do raciocínio que desenvolvi em Totem e Tabu e, numa série de importantes
trabalhos, ampliaram-na, aprofundaram-na ou corrigiram-na. Eu próprio voltei a
ela mais de uma vez, no curso de minhas investigações do ‘sentimento de culpa
inconsciente’ (que também desempenha papel muito importante entre os motivos do
sofrimento neurótico) e em minhas tentativas para formar uma vinculação mais
estreita entre a psicologia social e a psicologia do indivíduo. Além disso, fiz
uso da idéia de uma herança arcaica proveniente da época da ‘horda primitiva’
do desenvolvimento da humanidade ao explicar a suscetibilidade à hipnose.
Tenho tomado pouca parte direta em outras
aplicações da psicanálise, embora sejam de interesse geral. É somente um passo
das fantasias dos neuróticos individuais para as criações imaginosas de grupos
e povos, como as encontramos em mitos, lendas e contos de fadas. A mitologia
tornou-se o domínio especial do Otto Rank; a interpretação dos mitos, sua
ligação com os complexos inconscientes familiares da primeira infância, a
substituição das explanações astrais por uma descoberta dos motivos humanos,
tudo isto em grande medida devido aos seus esforças analíticos. O tema do
simbolismo, também, encontrou muitos estudiosos entre meus seguidores. O
simbolismo trouxe para a psicanálise muitos inimigos; muitos indagadores com mentes
indevidamente prosaicas jamais foram capazes de perdoar a esta o reconhecimento
do simbolismo, que decorreu da interpretação dos sonhos. Mas a análise não tem
culpa da descoberta do simbolismo, pois de há muito fora conhecida em outros
domínios do pensamento ( tais como o folclore, lendas e mitos) e neles
desempenha papel ainda maior do que na ‘linguagem dos sonhos’.
Eu próprio em nada contribuí para a aplicação
da análise à educação. Era natural, entretanto, que as descobertas analíticas
devessem atrair atenção de educadores e fazê-los ver os problemas delas sob uma
nova luz. O Dr. Oskar Pfister pastor protestante de Zurique, desbravou o
caminho, como incansável pioneiro, seguindo essa trilha, e não achou que a
prática da análise era incompatível com o fato de ele conservar sua religião,
embora fosse verdadeque tal ocorresse de forma sublimada. Entre muitos outros
que trabalharam ao lado dele posso mencionar Frau Dr. Hug-Hellmuth e o Dr. S.
Bernfeld, ambos de Viena. A aplicação da análise à educação profilática de
crianças saudáveis e à correção daquelas que, embora na realidade não fossem
neuróticas, se desviaram do curso normal de desenvolvimento, levou a uma
conseqüência que é de importância prática. Não é mais possível restringir a
pratica da psicanálise a médicos e dela excluir os leigos. De fato, um médico
que não tenha passado por uma formação especial é, apesar do seu diploma, um
leigo em análise, e alguém que não seja médico mas que tenha sido adequadamente
formado pode, com referência ocasional a um médico, levar a efeito o tratamento
analítico não somente de crianças mas também de neuróticos.
Por um processo de desenvolvimento contra o
qual teria sido inútil lutar, o próprio termo ‘psicanálise’ tornou-se ambíguo.
Embora fosse originalmente o nome de um método terapêutico específico, agora
também se tornou a denominação de uma ciência - a ciência dos processos mentais
inconscientes. Por si só, essa ciência é poucas vezes capaz de lidar com um
problema de maneira completa, mas parece fadada a prestar valiosa ajuda nos
mais variados campos do conhecimento. A esfera de aplicação da psicanálise
estende-se até a da psicologia, com a qual forma um complemento do maior
significado.
Lançando um olhar retrospectivo, portanto, ao
mosaico que são labores da minha vida, posso dizer que comecei muitas vezes e
joguei fora muitas sugestões. Algo surgirá deles no futuro, embora eu mesmo não
possa dizer se será muito ou pouco. Posso, contudo, expressar a esperança de
que abri um caminho para importante progresso em nossos conhecimentos.
PÓS-ESCRITO (1935)
O organizador desta série de estudos
autobiográficos não considerou, que eu saiba, a possibilidade de que após certo
lapso de tempo uma continuação pudesse ser escrita a qualquer um deles, sendo
possível que isso tenha ocorrido somente no caso presente. Estou empreendendo a
tarefa visto que meu editor norte-americano deseja publicar o pequeno trabalho
numa nova edição. Ele veio a lume pela primeira vez nos Estados Unidos em 1927
(editado por Brenato), sob o título de Um Estudo Autobiográfico, mas foi
levianamente lançado no mesmo volume como outro ensaio meu que deu seu título,
O Problema de Análises Leigas, a todo o livro, obscurecendo assim o presente
trabalho.
Dois temas ocupam essas páginas: a história da
minha vida e a história da psicanálise. Elas se acham intimamente entrelaçadas.
Esse Estudo Autobiográfico mostra como a psicanálise veio a ser todo o conteúdo
de minha vida e com razão presume que minhas experiências pessoais não são de
qualquer interesse ao se traçar um paralelo de minhas relações com aquela
ciência.
Pouco antes de haver escrito esse estudo,
parecia que minha vida logo chegaria ao fim pelo retorno de uma doença maligna;
mas a perícia cirúrgica salvou-me em 1923 e fui capaz de continuar com minha
vida e meu trabalho, embora não ficasse mais imune à dor. No período de mais de
dez anos que então transcorreu, jamais abandonei meu trabalho analítico e meus
escritos - como se prova pela conclusão do décimo-segundo volume da edição
alemã de minhas obras completas. Mas eu próprio acho que se verificou
importante mudança. Fios que no curso do meu desenvolvimento se haviam enredado
começavam então a separar-se; interesses que eu adquirira num estádio mais
avançado da minha vida ficaram para trás, enquanto os mais antigos e originais
se tornaram proeminentes mais uma vez. É verdade que nessa última década levei
a cabo partes importantes de meu trabalho analítico, tais como a revisão do
problema da ansiedade em meu livro Inibições, Sintomas e Ansiedade (1926d) ou a
simples explicação do ‘fetichismo’ sexual que fui capaz de fazer um ano depois
(1927e). Não obstante, seria verdade dizer que, desde que formulei minha
hipótese de existência de duas classes de instintos (Eros e o instinto da
morte) e desde que propus uma divisão da personalidademental em um ego, um
superego e um id (1923b), não prestei outras contribuições decisivas à
psicanálise: o que tenho escrito sobre o assunto desde então tem sido ou
dispensável ou logo teria sido proporcionado por outrem. Essa circunstância
está ligada com uma alteração em mim mesmo, com o que poderia ser descrito como
uma fase de desenvolvimento regressivo. Meu interesse, após fazer um détour de
uma vida inteira pelas ciências naturais, pela medicina e pela psicoterapia,
voltou-se para os problemas culturais que há muito me haviam fascinado, quando
eu era um jovem quase sem idade suficiente para pensar. No próprio clímax do
meu trabalho psicanalítico, em 1912, já tentara, em Totem e Tabu, fazer uso dos
achados recém-descobertos da análise a fim de investigar as origens da religião
e da moralidade. Levei então esse trabalho mais um passo à frente em dois
ensaios ulteriores, O futuro de uma Ilusão (1927c) e O Mal-Estar na Civilização
(1930a).Percebi ainda mais claramente que os fatos da história, as interações
entre a natureza humana, o desenvolvimento cultural e os precipitados das
experiências primitivas (cujo exemplo mais proeminente é a religião) não passam
de um reflexo dos conflitos dinâmicos entre o ego, o id e o superego que a
psicanálise estuda no indivíduo - são os mesmíssimos processos repetidos numa
fase mais ampla. Em O Futuro de uma Ilusão exprimi uma avaliação essencialmente
negativa da religião. Depois, encontrei uma fórmula que lhe fazia melhor justiça:
embora admitindo que sua força reside na verdade que ela contém, mostrei que a
verdade não era uma verdade material mas histórica. [1939a, Ensaio III, Parte
II (G).]
Esses estudos, os quais, embora tendo origem na
psicanálise, se estendem muito além dela, talvez tenham despertado maior
simpatia por parte do público do que a própria psicanálise. Podem ter
desempenhado certo papel na criação da ilusão efêmera de que eu me encontrava
entre os escritores aos quais uma grande nação como a Alemanha estava pronta a
ouvir. Thomas Mann, um dos reconhecidos porta-vozes do povo alemão, encontrou
um lugar para mim na história do pensamento moderno. Pouco depois minha filha
Anna, atuando como minha procuradora, recebeu uma homenagem cívica na Rathaus
de Frankfurt-am-Main, ocasião em que me foi conferido o Prêmio Goethe de 1930.
Isso foi o clímax de minha vida como cidadão. Pouco depois as fronteiras do
nosso país se estreitaram e a nação não quis mais saber deE neste ponto seja-me
permitido interromper estas notas autobiográficas. O público não tem o direito
de saber mais sobre meus assuntos pessoais - minhas lutas, meus desapontamentos
e meus êxitos. Seja como for, tenho sido mais acessível e franco em alguns dos
meus escritos (tais como A Interpretação de Sonhos e The Psychopathology of
Everyday Life) do que as pessoas que descrevem suas vidas em geral o são para
seus contemporâneos ou para a posteridade. Poucos agradecimentos recebi nesse
sentido e não posso recomendar a ninguém que siga meu exemplo.
Devo acrescentar mais algumas palavras à
história da psicanálise durante a última década. Não pode haver mais dúvida
alguma de que ela continuará; comprovou sua capacidade de sobreviver e de
desenvolver-se tanto como um ramo do conhecimento quanto como um método
terapêutico. O número de seus partidários (organizadores na Associação
Psicanalítica Internacional) aumentou de maneira considerável. Além de grupos
locais mais antigos (em Viena, Berlim, Budapeste, Londres, Holanda, Suíça e
Rússia) a partir de então se constituíram sociedades em Paris e Calcutá, duas
no Japão, várias nos Estados Unidos e, em data bem recente, uma em Jerusalém,
outra na África do Sul e duas na Escandinávia. Com seus próprios recursos essas
sociedades locais apóiam (ou estão em vias de formar) institutos de formação,
nos quais se ministra instrução na prática da psicanálise de conformidade com
um plano uniforme, e clínicas para pacientes externos, nas quais experimentados
analistas, bem como alunos, dão tratamento gratuito a pacientes de recursos
limitados. De dois em dois anos os membros da Associação Psicanalítica
Internacional realizam um congresso no qual se apresentam trabalhos científicos
e se solucionam questões de administração. O décimo-terceiro desses congressos
(aos quais não posso mais comparecer) foi realizado em Lucerna, em 1934. De um
núcleo de interesses comuns a todos os membros da Associação, seus trabalhos se
irradiam em muitas direções diferentes. alguns dão grande ênfase ao
esclarecimento e aprofundamento dos nossos conhecimentos de psicologia, ao
passo que outros se interessam por manter-se em contato com a medicina e a
psiquiatria. Do ponto de vista prático, alguns analistas atribuíram-se a tarefa
de fazer com que a psicanálise seja reconhecida nas universidades e incluída no
currículo médico, ao passo que outros se contentam em permanecer fora dessas
instituições, não permitindo que a psicanálise seja menos importante no campo
da educação do que no da medicina. Ocorre de quando em quando que um
profissional da análiseverifique estar isolado em uma tentativa de enfatizar
algum ponto único dos achados ou pontos de vista da psicanálise, à custa de
todos os demais. Não obstante, a impressão total é satisfatória - de trabalho
científico sério executado em alto nível.
INIBIÇÕES, SINTOMAS E ANSIEDADE(1926 [1925])
INTRODUÇÃO DO EDITOR INGLÊS
HEMMUNG,
SYMPTON UND ANGST
(a)
EDIÇÕES ALEMÃS:
1926 Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler
Psychoanalytischer Verlag. 136 Pp.
1928
G.S., 11, 23-115.
1931
Neurosenlehre und Technik, 205-99.
1948 G.W., 14, 113-205.
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
Inhibition,
Symptom and Anxiety
1927 Stamford, Conn.: Instituto Psicanalítico. vi +
103 Pp. (Trad. supervisionada por L. Pierce Clark; pref. de S. Ferenczi.)
Inhibitions, Symptoms and Anxiety
1935-6 Psychoanal. Quart., 4 (4), 616-25; 5 (1), 1-28;
(2) 261-79; (3) 415-43. (Trad. de H. A. Bunker.)
The Problem of Anxiety
1936 Nova Iorque: Psychoanalytic Quartely Press and W.
W. Norton. vii + 165 Pp. (Reimpressão
da anterior sob a forma de volume.)
Inhibitions,
Symptoms and Anxiety
1936
Londres: Hogarth Press e Instituto de Psicanálise. 179
Pp. (Trad. de Alix Strachey.)
Um resumo do capítulo I do original apareceu na
Neue Freie Presse de Viena, a 21 de fevereiro de 1926. Parte da primeira
tradução norte-americana foi reimpressa nos Archives of Psychoanalysis, 1
(1927), 461-521. Todas as três traduções foram autorizadas por Freud e, como
ressalta Ernest Jones (1957, 139-40), os tradutores das duas últimas prepararam
seus trabalhos simultaneamente e ignorando inteiramente as atividades um do
outro.
A presente tradução é uma versão
consideravelmente modificada da publicada em Londres em 1936.Sabemos por Ernest
Jones que este livro foi escrito em julho de 1925 e revisto em dezembro do
mesmo ano, tendo vindo a lume na terceira semana de fevereiro do ano seguinte.
Os tópicos por ele tratados abrangem vasto
campo, havendo indícios de Freud ter encontrado inusitada dificuldade em
unificar o trabalho. Isto é revelado, por exemplo, na forma como o mesmo
assunto surge para exame em mais de um ponto em termos muito semelhantes, na
necessidade em que Freud se viu de ordenar grande número de questões isoladas
em seus ‘Adendos’, e mesmo no próprio título do livro. Não obstante, é verdade
que - apesar de tais importantes problemas secundários, como as diferentes
classes de resistência, a distinção entre repressão e defesa, e as relações
entre ansiedade, dor e luto - o problema da ansiedade constitui seu principal
tema. Um exame da relação apresentada no Apêndice B ([1]) será suficiente para
demonstrar como com tanta freqüência ele estava presente na mente de Freud do
começo ao fim de seus estudos psicológicos. Embora sobre certos aspectos do
assunto suas opiniões sofressem pequena modificação, sobre outros, conforme ele
nos relata nestas páginas, elas foram consideravelmente modificadas. Talvez
seja de interesse delinear, pelo menos toscamente, a história dessas alterações
em dois ou três dos mais importantes temas em jogo.
(a) A ANSIEDADE COMO LIBIDO
TRANSFORMADA
Foi no curso da investigação das neuroses
‘atuais’ que Freud pela primeira vez se defrontou com o problema da ansiedade,
sendo que suas primeiras apreciações sobre ela serão encontradas em seu
primeiro artigo sobre a neurose de angústia (1895b) e no memorando acerca do
assunto que enviou a Fliess pouco depois, provavelmente no verão de 1894
(Freud, 1950a, Rascunho E). Naquela época ele ainda se encontrava em grande
parte sob a influência de seus estudos neurológicos e imerso em sua tentativa
de expressar os dados da psicologia em termos fisiológicos. Em particular,
seguindo Fechner, aceitara como postulado fundamental o ‘princípio de
constância’, de acordo com o qual havia uma tendência inerente ao sistema
nervoso de reduzir, ou pelo menos de manter constante, o grau de excitação nele
presente. Quando, portanto, fez a descoberta clínica de que em casos de neurose
de angústia sempre era possível descobrir certa interferência com a descarga de
tensão sexual, foi-lhe natural concluir que a excitação acumuladaescapava sob a
forma transformada de ansiedade. Ele considerou isso como um processo puramente
físico sem quaisquer determinantes psicológicos.
Desde o início a ansiedade que ocorria em
fobias ou em neuroses obsessivas levantava uma complicação, pois aqui a
presença dos fatos psicológicos não podia ser excluída. Mas, no tocante ao
surgimento da ansiedade, a explicação continuava a mesma. Nesses casos - nas psiconeuroses
- a razão do acúmulo de excitação não descarregada era psicológica: repressão.
Mas o que se seguiu foi o mesmo que nas neuroses ‘atuais’: a excitação
acumulada (ou libido) foi transformada diretamente em ansiedade.
Algumas citações indicarão com que lealdade
Freud manteve esse ponto de vista. No ‘Rascunho E’ (c. 1894), mencionado acima,
escreveu ele: ‘A ansiedade surge por uma transformação da tensão acumulada’. Em
A Interpretação de Sonhos (1900a): ‘A ansiedade é um impulso libidinal que tem
sua origem no inconsciente e é inibido pelo pré-consciente’. (Edição Standard
Brasileira, Vol. IV, Pp. 358-60, IMAGO Editora, 1972.) Em Gradiva (1907a): ‘A
Ansiedade em sonhos de ansiedade, como a ansiedade neurótica em geral,...
decorre da libido pelo processo de repressão’. (Standard Ed., 9, 60-1.) No
artigo metapsicológico sobre ‘Repressão’ (1915d): Após a repressão ‘a parcela
quantitativa [do impulso instintual - isto é, sua energia] não desapareceu, mas
foi transformada em ansiedade’. (Edição Standard Brasileira, Vol. VIV, p. 179,
IMAGO Editora, 1974.) Finalmente, já em 1920, Freud acrescentou numa nota de
rodapé à quarta edição dos Três Ensaios: ‘Um dos resultados mais importantes da
pesquisa psicanalítica é essa descoberta de que a ansiedade neurótica se
origina da libido, que é produto de uma transformação desta e que, assim, se
relaciona com ela da mesma forma que o vinagre com o vinho’. (Edição Standard
Brasileira, Vol. VIII, p. 231, IMAGO Editora, 1972.) É curioso observar,
contudo, que numa fase bem inicial Freud parece haver sido assaltado por
dúvidas sobre o assunto. Numa carta a Fliess de 14 de novembro de 1897 (Freud,
1950a, carta 75), ele observa, sem qualquer conexão aparente com o restante do
que vem escrevendo: ‘Resolvi, então, de agora por diante considerar como
fatores separados o que causa a libido e o que causa ansiedade’. Não se
encontra em parte alguma qualquer outra prova dessa retratação isolada. Na obra
que temos diante de nós Freud desiste da teoria que sustentara por tanto tempo.
Ele não considerava mais a ansiedade como libido transformada, mas como uma
reação sobre um modelo específico a situações de perigo. Mas mesmo aqui ainda
sustentava [1] que era bem possível que no caso da neurose de angústia ‘o que
encontra descarga na geração da ansiedade é precisamente o excedente da libido
não utilizada’. Essa última relíquia da antiga teoria iria ser abadonada poucos
anos depois.Num trecho perto dofinal de seu exame sobre ansiedade, na
Conferência XXXII de suas New Introductory Lectures (1933a), escreveu que
também na neurose de angústia o surgimento de ansiedade era uma reação a uma
situação traumática: ‘não sustentaremos mais que é a própria libido que se
transformou em ansiedade em tais casos.’
(b) ANSIEDADE REALÍSTICA E
NEURÓTICA
Apesar de sua teoria de que a ansiedade
neurótica era simplesmente libido transformada, Freud desde o início se deu ao
trabalho de insistir na estreita relação entre a ansiedade devida a perigos
externos e a perigos instintuais. Em seu primeiro artigo sobre a neurose de
angústia (1895b) escreveu: ‘A psique é dominada pelo afeto de ansiedade se
sentir que é incapaz de lidar por meio de uma reação apropriada com uma tarefa
(um perigo) que se aproxima de fora. Nas neuroses é dominada pela ansiedade se
notar que é incapaz de atenuar uma excitação (sexual) que tenha surgido de
dentro. Assim se comporta, como se estivesse projetando essa excitação para
fora. O fato [ansiedade normal] e a neurose correspondente se acham em firme
relação um com a outra: o primeiro é a reação a uma excitação exógena e a
segunda a uma reação endógena análoga.’
Essa posição, especialmente em relação com
fobias, foi aprimorada depois dos escritos de Freud - por exemplo, nos artigos
metapsicológicos sobre ‘Repressão’ (1915d) e ‘O Inconsciente’ (1915e), Edição
Standard Brasileira, Vol. XIV, Pp. 178-81, 182-4 e 209-11, IMAGO Editora, 1974,
e na conferência XXV das Conferências Introdutórias. Mas foi difícil conservar
a uniformidade da ansiedade nos dois tipos de caso enquanto se insistia na derivação
direta da ansiedade a partir da libido quanto às neuroses ‘atuais’. Com o
abandono desse ponto de vista a nova distinção entre ansiedade automática e
ansiedade como um sinal toda a situação foi esclarecida e deixou de haver
qualquer motivo para se ver uma diferença genérica entre ansiedade neurótica e
realística.
(c) A SITUAÇÃO TRAUMÁTICA E AS
SITUAÇÕES DE PERIGO
As dificuldades deste livro aumentam quando se
observa que a distinção entre a ansiedade como um sinal do perigo de abordagem
desse trauma, embora já aflorada em vários pontos anteriores, só é confirmadano
último capítulo. (Um relato ulterior e mais breve, apresentado na Conferência
XXXII de New Introductory Lectures, talvez seja mais fácil de ser apreendido.)
O determinante fundamental da ansiedade
automática é a ocorrência de uma situação traumática; e a essência disto é uma
experiência de desamparo por parte do ego face de um acúmulo de excitação, quer
de origem externa quer interna, com que não se pode lidar ([1],[2]e [3]). A
ansiedade ‘como um sinal’ é a resposta do ego à ameaça da ocorrência de uma
situação traumática. Tal ameaça constitui uma situação de perigo. Os perigos
internos modificam-se com o período de vida,ver em ([1]e [2]), mas possuem uma
característica comum, a saber, envolver a separação ou perda de um objeto
amado, ou uma perda de seu amor,ver em ([1]) - uma perda ou separação que
poderá de várias maneiras conduzir a um acúmulo de desejos insatisfatórios e
dessa maneira a uma situação de desamparo. Embora Freud não houvesse reunido
antes todos esses fatores, cada um deles tem uma longa história prévia.
A própria situação traumática é claramente o
descendente direto do estado de tensão acumulada e não descarregada dos
primeiros escritos de Freud sobre a ansiedade. Alguns dos relatos da mesma,
aqui apresentados, podem ser citações de 1894 a 1895. Por exemplo, ‘sofrendo de
uma dor que não pára ou experimentando um acúmulo de necessidades instintuais
que não podem conter satisfação’, na [1], pode ser comparado com ‘um acúmulo psíquico
de excitação... devido à descarga ficar retida’, segundo o ‘Rascunho E’ (Freud,
1950a). Nesse período inicial as excitações acumuladas, é verdade, eram
julgadas quase invariavelmente libidinais, mas não de todo invariavelmente.
Depois no mesmo ‘Rascunho E’ encontra-se uma frase que ressalta que a ansiedade
pode ser ‘uma sensação de um acúmulo de outro estímulo endógeno - o estímulo no
sentido de respirar...; a ansiedade pode, portanto, ser capaz de ser utilizada
em relação com a tensão física acumulada em geral’. Além disso, no ‘Project’ de
1895 (Freud, 1950a, Parte I, Seção 1) Freud enumera as principais necessidades
que dão lugar a estímulos endógenos que exigem descarga - ‘fome, respiração e
sexualidade’, e em trecho posterior (Parte I, Seção 11) observa que em algumas
condições essa descarga ‘exige uma alteração no mundo externo (por exemplo, o
suprimento de nutrição ou a proximidade do objeto sexual)’ que ‘em fases
iniciais o organismo humano é incapaz de alcançar’. A fim de ocasionar isto necessita-se
de ‘ajuda estranha’, que a criança atrai pelos seus gritos. E aqui Freud
expende comentários sobre o ‘desamparo original dos seres humanos’. Existe uma
referência semelhante na Parte III, Seção 1, da mesma obra, à necessidade de
‘atrair a atenção de alguma personagem útil (que é, em geral, opróprio objeto
desejado) para o anseio e aflição da criança’. Esses trechos parecem ser uma
indicação prematura da situação de desamparo aqui descrita, ver em ([1] e [2]),
em que a criança sente falta da mãe - situação que fora claramente mencionada
na nota de rodapé aos Três Ensaios (1950d) na qual Freud explicava a ansiedade
de uma criança no escuro como sendo devida à ‘ausência de alguém que amava’
(Edição Standard Brasileira, Vol. VII, p. 231, IMAGO Editora, 1972).
Mas isso nos levou à questão dos vários perigos
específicos que são capazes de precipitar uma situação traumática em diferentes
épocas da vida. Estes, em breves linhas são os seguintes: o nascimento, a perda
da mãe como um objeto, a perda do pênis, a perda do amor do objeto, a perda do
amor do superego. A questão do nascimento é tratada na seção seguinte e
acabamos de mencionar algumas primeiras referências à importância da separação
da mãe. O perigo da castração com seus efeitos devastadores constitui sem
dúvida o mais familiar de todos esses perigos. Mas vale a pena lembrar uma nota
de rodapé acrescentada em 1923 ao caso clínico de ‘Little Hans’ (1909b), no
qual Freud reprova a aplicação da expressão ‘complexo de castração’ às outras
espécies de separação que a criança deve inevitavelmente experimentar (Standard
Ed., 10, 8 n.) possivelmente podemos ver nessa passagem um primeiro indício do
conceito de ansiedade devido à separação que aqui se torna proeminente. A
ênfase dada ao perigo de perder o amor ao objeto amado é explicitamente
relacionada ([1]) com as caracteristicas da sexualidade feminina, que só
recentemente começaram a ocupar a mente de Freud. Finalmente, o perigo de
perder o amor do superego nos leva de volta aos problemas, já há muito debatidos,
do sentimento de culpa, que haviam sido reenunciados há pouco em O Ego e o Id
(1923b).
(d) A ANSIEDADE COMO UM SINAL
Conforme aplicada ao desprazer em geral, esta
era uma noção muito antiga de Freud. Na Seção 6 da Parte II do “Project”
póstumo de 1895 (Freud, 1950a) existe um relato de um mecanismo pelo qual o ego
restringe a geraçãode experiências dolorosas: ‘Dessa maneira, a liberação do
desprazer fica restringida em quantidade, e seu início atua como um sinal ao
ego a fim de fixar uma defesa normal em funcionamento.’ De maneira semelhante,
em A Interpretação de Sonhos (1900a), Edição Standard Brasileira, Vol. V, p.
641, IMAGO Editora, 1972, fundamenta-se que o pensar deve visar ‘restringir o
desenvolvimento do afeto na atividade do pensamento ao mínimo exigido para agir
como sinal’. Em ‘O Inconsciente’ (1915e), Edição Standard Brasileira, Vol. XIV,
p. 210, IMAGO, 1974, a idéia já é aplicada à ansiedade. Examinando o surgimento
de ‘idéias substitutivas’ na fobia, escreve Freud: ‘A excitação de qualquer
ponto dessa estrutura externa, dada sua ligação com a idéia substitutiva, deve
inevitavelmente dar lugar a um ligeiro desenvolvimento da ansiedade; isto passa
a ser utilizado como um sinal para inibir... o progresso posterior do
desenvolvimento da ansiedade.’ De maneira semelhante na Conferência XXV das
Conferências Introdutórias, o estado de ‘ansiosa expectativa’ é descrito em um
ou dois pontos como oferecendo um ‘sinal’ para impedir o irromper de grave
ansiedade. A partir daí não se estava longe da iluminadora exposição destas
páginas. Pode-se observar que no presente trabalho também o conceito é
introduzido pela primeira vez como um sinal de ‘desprazer’,ver em ([1]) e só
subseqüentemente como de ‘ansiedade’.
(e) A ANSIEDADE E O NASCIMENTO
Resta a questão do que é que determina a forma
pela qual a ansiedade se manifesta. Isto também foi examinado por Freud em seus
primeiros escritos. Para começar (sistematicamente com seu ponto de vista da
ansiedade como libido transformada) ele considerava o mais impressionante de
seus sintomas - a dispnéia e as palpitações - como elementos do ato da cópula,
os quais, na ausência dos meios normais de descarga da excitação, surgiam de
forma isolada e exagerada. Esse relato será encontrado no Rascunho E dos
artigos de Fliess, mencionados acima, e que provavelmente datam de junho de
1894, e no final da Seção III do primeiro artigo sobre neurose de angústia
(1895b), sendo repetido no caso clínico de ‘Dora’ (1950e) [1901], onde Freud
escreveu: Afirmei, anos atrás, que a dispnéia e as palpitações que ocorrem na
histeria e na neurose da angústia são apenas fragmentos soltos do ato de
copulação.’ (Edição Standard Brasileira, Vol. VIII, p. 77, IMAGO Editora,
1972.) Não está claro como tudo isto se ajustou aos pontos de vista de Freud
quanto à expressão da emoções em geral. Certamente parecem ter em última
análise provindo de Darwin. Nos Estudos sobre a Histeria (1895d) ele citouduas
vezes o volume de Darwin sobre o assunto (Darwin, 1872), e na segunda ocasião
recordou que Darwin ensinara que a expressão das emoções ‘consiste em ações que
originalmente possuíam um significado e serviam a uma finalidade’ (Edição
Standard Brasileira, Vol. II, p. 231, IMAGO Editora, 1974). Num debate perante
a Sociedade Psicanalítica de Viena em 1909, Freud, segundo Jones (1955, 494),
havia afirmado que ‘todo afeto... é apenas uma reminiscência de um fato’. Muito
depois da Conferência XXV das Conferências Introdutórias (1916-17), ele abordou
esse ponto novamente e expressou a crença de que o ‘núcleo’ de um fato é ‘a
repetição de alguma experiência significativa específica’. Recordou também a
explicação que havia dado anteriormente sobre ataques histéricos (1909a,
Standard Ed., 9, 232) como revivescências de fatos da infância, e acrescentou
sua conclusão de que ‘um ataque histérico pode ser parecido com um afeto
individual recém-construído, e um afeto normal com a expressão de uma histeria
geral que se tornou uma herança’. Ele repete essa teoria, quase nos mesmos
termos, na presente obra,ver em ([1],[2],[3] e [4]).
Qualquer que seja o papel que essa teoria dos
afetos tenha desempenhado na explicação anterior de Freud quanto à forma
assumida pela ansiedade, ela o desempenhou de maneira essencial em sua nova
explicação, a qual surgiu, aparentemente sem aviso, em uma nota de rodapé
acrescentada à segunda edição de A Interpretação de Sonhos (Edição Standard
Brasileira, Vol. V, p. 428, IMAGO Editora, 1972). No final de certa apreciação
das fantasias sobre a vida no ventre, prosseguiu ele (e imprimiu a frase em tipo
espaçado): ‘Além disso, o ato de nascer é a primeira experiência de ansiedade,
sendo assim a fonte e o protótipo da sensação de ansiedade.’ A edição veio a
lume em 1909, mas o prefácio traz a data ‘Verão de 1908’. Uma possível pista
para o súbito surgimento, naquela ocasião, dessa idéia revolucionária
encontra-se no fato de que Freud, não havia muito tempo, contribuíra com um
prefácio (datado de ‘Março de 1908’) para o livro de Stekel sobre estados de
ansiedade (Freud, 1908f). O prefácio, é verdade, não contém a mais leve idéia
sobre a nova teoria, ao passo que o próprio livro de Stekel parece
explicitamente aceitar a teoria anterior de Freud sobre a vinculação entre a
ansiedade e a copulação. Não obstante, o interesse de Freud deve ter sido sem
dúvida focalizado mais uma vez sobre o problema, e pode ser que nesse ponto uma
antiga lembrançapossa ter sido revivida em relação a um fato descrito por ele
posteriormente, no curso de sua apreciação da ansiedade nas Conferências
Introdutórias. Essa lembrança dizia respeito ao que se pretendia ser uma
anedota cômica - que lhe fora contada, quando era médico interno, por outro
jovem colega - sobre como uma parteira havia declarado existir uma ligação
entre o nascimento e o estar assustado. A lembrança deve ter remontado a mais
ou menos 1884, embora Freud não pareça tê-la mencionado até essa conferência em
1917. Parece possível que a lembrança tivesse sido de fato evocada pela sua
leitura do livro de Stekel e que tenha provocado o surgimento de nova teoria em
1908. A partir daí, essa teoria jamais foi abandonada. Ele lhe atribuiu
especial proeminência no primeiro dos seus artigos sobre a psicologia do amor
(1910h), Edição Standard Brasileira, Vol. XI, p. 156, IMAGO Editora, 1970.
Embora não fosse publicado senão em 1910, sabemos que seus pontos principais
foram apresentados à Sociedade Psicanalítica de Viena em maio de 1909; enquanto
em novembro do mesmo ano as atas da sociedade (citadas por Jones, 1955, 494)
informam ter ele observado que as crianças começam sua experiência de ansiedade
no próprio ato do nascimento.
Após a conferência de 1917, o assunto
permaneceu inexplorado durante vários anos, até reaparecer subitamente no fim
do antepenúltimo parágrafo de O Ego e o Id (1923b), onde Freud se referia ao
nascimento como ‘o primeiro grande estado de ansiedade’. Isto nos leva à época
da publicação do livro de Rank, The Trauma of Birth. A relação cronológica
entre essa frase de Freud e a obra de Rank não é inteiramente clara. O Ego e o
Id veio a lume em abril de 1923. A página de rosto do livro de Rank traz a data
‘1924’, mas em sua última página encontram-se as palavras ‘escrito em abril de
1923’; e a dedicatória declara que o livro foi ‘presenteado’ a Freud em 6 de
maio de 1923 (aniversário de Freud). Embora Ernest Jones (1957, 60) afirme
especificamente que Freud não o lera antes de sua publicação em dezembro de
1923, ele estava cônscio dos delineamentos gerais das idéias de Rank já em
setembro de 1922 (ibid., 61), e isso sem dúvida é bastante para explicar a
referência ao nascimento em O Ego e o Id.
O livro de Rank representou muito mais do que
uma adoção da explicação de Freud da forma assumida pela ansiedade. Argumentou
ele que os ataques ulteriores de ansiedade eram tentativas de ‘ab-reagir’ o
trauma do nascimento. Ele explicou todas as neuroses em moldes semelhantes,
destronando incidentalmente o complexo de Édipo, e propôs uma técnica
terapêutica reformada, baseada na superação do trauma do nascimento. As
referências publicadas de Freud ao livro pareciam a princípio favoráveis. Mas a
presente obra revela uma inversão completa e final dessa opinião. Sua rejeição
dos pontos de vista de Rank, contudo, estimulou-o a uma reconsideração própria,
e Inibições, Sintomas e Ansiedade foi o resultado.
Trechos da primeira (1936) tradução londrina
dessa obra foram incluídos em A General Selection from the Works of Sigmund
Freud (1937, 275-291), de Rickman.
INIBIÇÕES, SINTOMAS E ANSIEDADE
I
Na descrição das manifestações patológicas, o
uso lingüístico permite-nos distinguir sintomas de inibições, sem, contudo,
atribuir-se grande importância à distinção. Na realidade, dificilmente
poderíamos pensar que valeria a pena diferenciar exatamente entre os dois, não
fosse o fato de encontrarmos moléstias nas quais observamos a presença de
inibições mas não de sintomas, e ficamos curiosos para saber a razão disso.
Os dois conceitos não se encontram no mesmo
plano. A inibição tem uma relação especial com a função, não tendo
necessariamente uma implicação patológica. Podemos muito bem denominar de
inibição a uma restrição normal de uma função. Um sintoma, por outro lado,
realmente denota a presença de algum processo patológico. Assim, uma inibição
pode ser também um sintoma. O uso lingüístico, portanto, emprega a palavra
inibição quando há uma simples redução de função, e sintoma quando uma função
passou por alguma modificação inusitada ou quando uma nova manifestação surgiu
desta. Muito amiúde parece ser assunto bem arbitrário, quer ressaltemos o lado
positivo de um processo patológico e chamemos o seu resultado de sintoma, quer
ressaltemos seu lado negativo e intitulemos seu resultado de inibição. Mas tudo
isso é realmente de pouco interesse e o problema, conforme o enunciamos, não
nos leva muito longe.
Visto que o conceito da inibição se acha tão
intimamente associado com o da função, talvez fosse valioso examinar as várias
funções do ego com vistas a descobrir as formas que qualquer perturbação dessas
funções assume em cada uma das diferentes afecções neuróticas. Tomemos para um
estudo comparativo dessa natureza a função sexual e as do comer, da locomoção e
do trabalho profissional.
(a) A função sexual está sujeita a grande
número de perturbações, a maioria das quais exibe as características de
inibições simples. Estas são classificadas em conjunto como impotência
psíquica. O desempenho normal da função sexual só pode ocorrer como resultado
de um processo muito complicado, podendo surgir distúrbios em qualquer ponto do
mesmo. Nos homens as principais fases nas quais a inibição ocorre são reveladas
por: um afastamento da libido no próprio início do processo (desprazer
psíquico); ausência do preparo físico para ela (falta de ereção); abreviação do
ato sexual(ejaculatio praecox), ocorrência que pode igualmente ser considerada
como um sintoma; uma suspensão do ato antes de haver chegado à sua conclusão
natural (ausência de ejaculação); ou o não surgimento do resultado psíquico
(falta da sensação de prazer no orgasmo). A partir da função sexual, surgem
outras perturbações que se tornam dependentes de condições especiais de
natureza pervertida ou fetichista.
Que existe uma relação entre a inibição e a
ansiedade é algo evidente. Algumas inibições obviamente representam o abandono
de uma função porque sua prática produziria ansiedade. Muitas mulheres
manifestamente temem a função sexual. Classificamos essa ansiedade sob a
histeria, do mesmo modo como fazemos em relação ao sintoma defensivo da repulsa
que, surgindo originalmente como uma reação preterida à experiência de um ato
sexual passivo, aparece depois, sempre que a idéia de tal ato é apresentada.
Além disso, muitos atos obsessivos vêm a ser medidas de precaução e de
segurança contra experiências sexuais, sendo assim de natureza fóbica.
Isto não é muito ilustrativo. Podemos apenas
observar que as perturbações da função sexual são acarretadas por grande
variedade de meios. (1) A libido pode simplesmente ser afastada (isto parece
produzir, com a maior rapidez, o que consideramos uma inibição pura e simples);
(2) a função pode ser executada de forma menos perfeita; (3) pode ser
prejudicada por ter condições ligadas a ela, ou modificada pelo desvio para
outras finalidades; (4) pode ser impedida por medidas de segurança; (5) se não
puder ser impedida desde o início, pode ser imediatamente interrompida pelo
aparecimento da ansiedade; e (6) se for, não obstante, levada a efeito, poderá
haver uma subseqüente reação de protesto contra ela e uma tentativa de desfazer
o que foi feito.
(b) A função da nutrição é, com a maior
freqüência, perturbada por uma falta de inclinação para comer, acarretada por
uma retirada da libido. Um aumento do desejo de comer também não constitui
coisa incomum. A compulsão para comer é atribuída ao medo de morrer de fome,
mas isto é um assunto pouco estudado. O sintoma de vômitos é conhecido por nós
como uma defesa histérica contra o comer. A recusa de comer devido à ansiedade
é concomitante de estados psicóticos (delírios de ser envenenado).
(c) Em algumas condições neuróticas a locomoção
é inibida por uma indisposição para andar ou por uma fraqueza no caminhar. Na
histeria haverá uma paralisia do aparelho motor, ou essa função especial do
aparelho será abolida (abasia). Especialmente características são as
dificuldades maiores que surgem na locomoção devido à introdução de certas
estipulações cuja inobservância resulta em ansiedade (fobia).(d) Na inibição no
trabalho - fato com o qual tantas vezes temos de lidar como um sintoma isolado
em nosso trabalho terapêutico - o indivíduo sente uma diminuição do seu prazer
nele, ou se torna menos capaz de realizá-lo bem, ou então experimenta certas
reações no tocante ao mesmo, como a fadiga, a tontura ou o enjôo, se for
obrigado a prosseguir com o mesmo. Se for histérico, terá que desistir do
trabalho devido ao aparecimento de paralisias orgânicas e funcionais que lhe
tornam impossível continuar. Se for um neurótico obsessivo, será perpetuamente
distraído de seu trabalho ou perderá tempo com o mesmo pela intromissão de
delongas e repetições.
Nosso estudo pode ser estendido também a outras
funções; mas não haveria nada mais a aprender agindo-se dessa forma, pois não
devemos penetrar abaixo da superfície das manifestações a nós apresentadas.
Passemos então a descrever a inibição de forma a deixar muito pouca dúvida
sobre o que se quer dizer com ela, e digamos que a inibição é a expressão de
uma restrição de uma função do ego. Uma restrição dessa espécie pode ter causas
muito diferentes. Alguns dos mecanismos em jogo nessa renúncia à função são bem
conhecidos por nós, como o é certa finalidade geral que a rege.
Essa finalidade é mais facilmente reconhecível
nas inibições específicas. A análise revela que quando atividades como tocar
piano, escrever ou mesmo andar ficam sujeitas a inibições neuróticas, isso
ocorre porque os órgãos físicos postos em ação - os dedos ou as pernas - se
tornaram erotizados de forma muito acentuada. Descobriu-se como ato geral que a
função do ego de um órgão fica prejudicada se a sua erotogeneidade - sua
significação sexual - for aumentada. Comporta-se, se me permitem uma analogia
um tanto absurda, como uma empregada doméstica que se recusa a continuar
cozinhando porque o patrão iniciou um caso amoroso com ela. Logo que o
escrever, que faz com que um líquido flua de um tubo para um pedaço de papel branco,
assume o significado da copulação, ou logo que o andar se torna um substituto
simbólico do pisotear o corpo da mãe terra, tanto o escrever como o andar são
paralisados porque representam a realização de um ato sexual proibido. O ego
renuncia a essas funções, que se acham dentro de sua esfera, a fim de não ter
de adotar novas medidas de repressão - a fim de evitar entrar em conflito com o
id.
Existem também claramente inibições que servem
à finalidade de autopunição. Este é amiúde o caso em inibições de atividades
profissionais. Não se permite ao ego levar a efeito essas atividades, porque
trariam êxito e lucro, e isso são coisas que o severo superego proibiu. Assim o
ego desiste também delas, a fim de evitar entrar em conflito com o superego.As
inibições mais generalizadas do ego obedecem a um mecanismo diferente de
natureza simples. Quando o ego se vê envolvido em uma tarefa psíquica
particularmente difícil, como ocorre no luto, ou quando se verifica uma
tremenda supressão de afeto, ou quando um fluxo contínuo de fantasias sexuais
tem de ser mantido sob controle, ele perde uma quantidade tão grande de energia
à sua disposição que tem de reduzir o dispêndio da mesma em muitos pontos ao
mesmo tempo. Fica na posição de um especulador cujo dinheiro ficou retido em
suas várias empresas. Deparou-se-me por acaso um exemplo instrutivo dessa
espécie de inibição geral intensa, embora efêmera. O paciente, um neurótico
obsessivo, era dominado por uma fadiga paralisante que durava um ou mais dias,
sempre que acontecia algo que evidentemente devia tê-lo enfurecido. Temos aqui
um ponto a partir do qual deve ser possível chegar a uma compreensão da
condição geral que caracteriza estados de depressão, inclusive a mais grave de
suas formas, a melancolia.
No tocante às inibições, podemos então dizer,
em conclusão, que são restrições da funções do ego que foram ou impostas como
medida de precaução ou acarretadas como resultado de um empobrecimento de
energia; e podemos ver sem dificuldade em que sentido uma inibição difere de um
sintoma, porquanto um sintoma não pode mais ser descrito como um processo que
ocorre dentro do ego ou que atua sobre ele.
II
As principais características dos sintomas já
foram estudadas há muito e, espero, estabelecidas sem discussão. Um sintoma é
um sinal e um substituto de uma satisfação instintual que permaneceu em estado
jacente; é uma conseqüência do processo de repressão. A repressão se processa a
partir do ego quando este - pode ser por ordem do superego - se recusa a
associar-se com uma catexia instintual que foi provocada no id. O ego é capaz,
por meio de repressão, de conservar a idéia que é o veículo do impulso
repreensível a partir do tornar-se consciente. A análise revela que a idéia
amiúde persiste como uma formação inconsciente.
Até agora tudo se afigura claro, mas logo nos
defrontaremos com dificuldades que até o momento não foram superadas. Até este
momento nosso relato do que ocorre na repressão deu grande ênfase a esse ponto
de exclusão a partir da consciência. Mas deixou outros pontos passíveis de
incerteza. Uma questão que surgiu: o que aconteceu ao impulso instintual que
fora ativado no id e que procurou satisfação? A reposta foi indireta. Devido ao
processo de repressão, o prazer que se teria esperado da satisfação fora
transformado em desprazer. Mas vimo-nos então em face do problema de como a
satisfação de um instinto poderia produzir desprazer. Todo o assunto pode ser
esclarecido, penso, se nos ativermos ao enunciado definitivo de que, como
resultado da repressão, o pretendido curso do processo excitatório no id não
ocorre de modo algum; o ego consegue inibi-lo ou defleti-lo. Se este for o
caso, o problema de ‘transformação de afeto’ sob a repressão desaparece. Ao
mesmo tempo, esse ponto de vista implica uma concessão ao ego para que ele
possa exercer uma influência muito ampla sobre os processos no id, e teremos de
descobrir de que forma ele é capaz de desenvolver tais poderes
surpreendentes.Parece-me que o ego obtém essa influência em virtude de suas
vinculações íntimas com o sistema perceptual - vinculações que, como sabemos,
constituem sua essência e proporcionam a base de sua diferenciação do id. A
função desse sistema, o qual denominamos de Pcpt-Cs., está ligada à
manifestação da consciência. Ela recebe excitações não somente de fora, mas
também de dentro, e se esforça, por meio das sensações de prazer e desprazer
que a alcançam a partir desses pontos, para orientar o curso dos fatos mentais
de conformidade com o princípio de prazer. Estamos muito inclinados a pensar no
ego como impotente contra o id; mas, quando se opõe a um processo instintual no
id, ele tem apenas de dar um ‘sinal de desprazer‘ a fim de alcançar seu
objetivo com a ajuda daquela instituição quase onipotente, o princípio de
prazer. Para considerarmos essa situação em si por um momento, podemos
ilustrá-la mediante um exemplo de outro campo. Imaginemos um país no qual uma
pequena facção é contrária a uma medida proposta, cuja aprovação contaria com o
apoio das massas. Essa minoria obtém o controle da imprensa e com o auxílio
desta manipula o árbitro supremo, a ‘opinião pública’, conseguindo assim que a
medida não seja aprovada.
Mas essa explicação provoca novos problemas. De
onde provém a energia empregada para transmitir o sinal de desprazer? Aqui
podemos ser auxiliados pela idéia de que uma defesa contra um processo interno
importuno será plasmada sobre a defesa adotada contra um estímulo externo, e de
que o ego debela os perigos internos e externos, de igual modo, ao longo de
linhas idênticas. No caso de perigo externo, o organismo recorre a tentativas
de fuga. A primeira coisa que ele faz é retirar a catexia de percepção do
objeto perigoso; posteriormente, descobre que constitui um plano melhor
realizar movimentos musculares de tal natureza que tornem a percepção do objeto
perigoso impossível, mesmo na ausência de qualquer recusa para percebê-lo - que
é um plano melhor afastar-se da esfera de perigo. A repressão é um equivalente
a essa tentativa de fuga. O caso retira sua catexia (pré-consciente) do
representante instintual que deve ser reprimido e utiliza essa catexia para a
finalidade de liberar o desprazer (ansiedade). O problema de como surge a
ansiedade em relação com a repressão pode não ser simples, mas
podemoslegitimamente apegar-nos com firmeza à idéia de que o ego é a sede real
da ansiedade, e abandonar nosso ponto de vista anterior de que a energia
catexial do impulso reprimido é automaticamente transformada em ansiedade. Se
eu me expressasse antes no segundo sentido, estaria dando uma descrição
fenomenológica e não um relato metapsicológico do que ocorria.
Isto nos leva a outra questão: como é possível,
de um ponto de vista econômico, que um mero processo de retirada e descarga,
como a retirada de uma catexia do ego pré-consciente, produza desprazer ou ansiedade,
visto que, de acordo com nossas suposições, o desprazer e a ansiedade podem
surgir somente como resultado de um aumento de catexia? A resposta é que essa
seqüência causal não deve ser explicada de um ponto de vista econômico. A
ansiedade não é criada novamente na repressão; é reproduzida como um estado
afetivo de conformidade com uma imagem mnêmica já existente. Se formos adiante
e indagarmos da origem dessa ansiedade - e dos afetos em geral - estaremos
deixando o domínio da psicologia pura e penetrando na fronteira da fisiologia.
Os estados afetivos têm-se incorporado na mente como precipitados de
experiências traumáticas primevas, e quando ocorre uma situação semelhante são
revividos como símbolos mnêmicos. Não penso haver laborado em erro ao aproximá-los
do ataque histérico mais recente e individualmente adquirido, e em
considerá-los como seus protótipos normais. No homem e nos animais superiores
pareceria que o ato do nascimento, como a primeira experiência de ansiedade do
indivíduo, imprimiu ao afeto de ansiedade certas formas características de
expressão. Mas, embora reconhecendo essa vinculação, não devemos dar-lhe ênfase
indevida nem desprezar o fato de que a necessidade biológica exige que uma
situação de perigo deva ter um símbolo afetivo, de modo que um símbolo dessa
espécie teria em qualquer caso de ser criado. Além disso, não penso que
estejamos justificados ao presumir que, sempre que haja uma irrupção de
ansiedade, algo como uma reprodução da situação de nascimento se passe na
mente. Nem mesmo é certo que os ataques histéricos, embora originalmente fossem
reproduções traumáticas dessa natureza, conservem esse caráter de modo
permanente.
Como revelei em outra parte, a maioria da
repressões com as quais temos de lidar em nosso trabalho terapêutico são casos
de pressão posterior.Pressupõem a atuação de repressões primitivas mais antigas
que exercem atração sobre a situação mais recente. Muitíssimo pouco se sabe até
agora sobre os antecedentes e as fases preliminares da repressão. Há o perigo de
superestimar o papel desempenhado na repressão pelo superego. Não podemos no
momento dizer se seria o surgimento do superego que proporciona a linha de
demarcação entre a repressão primitiva e a pressão posterior. Seja como for, as
primeiras irrupções de ansiedade, que são de natureza muito intensa, ocorrem
antes de o superego tornar-se diferenciado. É altamente provável que as causas
precipitantes imediatas das repressões primitivas sejam fatores quantitativos,
tais como uma força excessiva e o rompimento do escudo protetor contra os
estímulos.
Essa menção do escudo protetor provoca algo que
nos relembra o fato de que a repressão ocorre em duas situações diferentes - a
saber, quando um impulso instintual indesejável é provocado por certa percepção
externa e quando surge internamente sem qualquer provocação. Voltaremos a essa
divergência mais adiante. Mas o escudo protetor existe apenas no tocante a
estímulos externos, não quanto a exigências instintuais internas.
Enquanto dirigirmos nossa atenção para a
tentativa de fuga do ego, não chegaremos mais perto do tema da formação de
sintomas. Um sistema surge de um impulso instintual que foi prejudicialmente
afetado pela repressão. Se o ego, fazendo uso do sinal de desprazer, atingiu
seu objetivo de suprimir inteiramente o impulso instintual, nada saberemos
sobre como isso aconteceu. Podemos apenas descobrir algo a esse respeito pelos
casos nos quais a repressão deve ser descrita como tendo, em maior ou menor
grau, falhado. Nesse caso a posição, falando em geral, é que o impulso
instintual encontrou um substituto apesar da repressão, mas um substituto muito
mais reduzido, descolado e inibido, e que não é mais reconhecível como uma
satisfação. E, quando o impulso substitutivo é levado a efeito, não há qualquer
sensação de prazer; sua realização apresenta, ao contrário, a qualidade de uma
compulsão.
Ao rebaixar assim um processo de satisfação a
um sintoma, a repressão exibe sua força sob outro aspecto. O processo
substitutivo é impedido, se possível, de encontrar descarga pela motilidade; e
mesmo se isso não puder ser feito, o processo é forçado a gastar-se ao efetuar
alterações no próprio corpo do indivíduo, não lhe sendo permitido girar em
torno do mundo externo. Ele não deve ser transformado em ação, pois, como
sabemos, na repressão o ego está atuando sob a influência da realidade externa
e, portanto, impede o processo substitutivo de exercer qualquer efeito sobre
aquela realidade.
Do mesmo modo que o ego controla o caminho para
a ação, controla o acesso à consciência. Na repressão exerce sua força em ambas
as direções,atuando de uma maneira sobre o próprio impulso instintual e de
outra sobre o representante [psíquico] desse impulso. A essa altura, cabe
perguntar como posso conciliar esse reconhecimento do poderio do ego com a
descrição de sua posição que apresentei em O Ego e o Id. Nesse livro esbocei um
quadro de sua relação dependente com o id e o superego, e revelei quão
impotente e apreensivo ele era no tocante a ambos e com que esforço manteve sua
exibição de superioridade sobre eles. Esse ponto de vista repercutiu amplamente
na literatura psicanalítica. Muitos autores têm dado grande ênfase à fraqueza
do ego em relação ao id e aos nossos elementos racionais em face das forças
demoníacas dentro de nós, e exibem forte tendência para transformarem o que eu
disse em pedra angular de uma Weltanschauung psicanalítica. Contudo, por certo
o psicanalista, com seus conhecimentos da forma como a repressão atua, deve,
justamente ele, ser impedido de adotar um ponto de vista tão extremo e
unilateral.
Devo confessar que não sou de modo algum
parcial quanto à construção de Weltanschauungen. Tais atividades podem ser
deixadas aos filósofos, que confessadamente acham impossível empreender sua
viagem pela vida sem um Baedeker* dessa espécie para proporcionar-lhes
informações sobre todos os assuntos. Aceitemos humildemente o desprezo com que
nos olham, sobranceiros, do ponto de observação de suas necessidades
superiores. Mas visto que nós não podemos também abrir mão de nosso orgulho
narcísico, ficaremos reconfortados com o pensamento de que tais ‘Manuais para a
Vida’ ficam logo desatualizados, de que é precisamente nosso trabalho míope,
tacanho e insignificante que os obriga a aparecer em novas edições, e de que
até mesmo os mais atualizados deles nada mais são do que tentativas para
encontrar um substituto para o antigo, útil e todo-suficiente catecismo da
Igreja. Somente uma pesquisa paciente e perseverante, na qual tudo esteja
subordinado à única exigência da certeza, poderá gradativamente ocasionar uma
transformação. O viajante surpreendido pela noite pode cantar alto no escuro
para negar seus próprios temores; mas, apesar de tudo isto, não enxergará mais
que um palmo adiante do nariz.
III
Voltando ao problema do ego. A contradição
aparente deve-se ao fato de termos considerado as abstrações de maneira por
demais rígida e de termos atendido exclusivamente ora a um lado, ora a outro
daquilo que é de fato um complicado estado de coisas. Estávamos justificados,
penso eu, em separar o ego do id, pois há certas considerações que necessitam
dessa medida. Por outro lado, o ego é idêntico ao id, sendo apenas uma parte
especialmente diferenciada do mesmo. Se considerarmos essa parte em si mesma em
contraposição ao todo, ou se houver ocorrido uma verdadeira divisão entre os
dois, a fragilidade do ego se torna evidente. Mas se o ego permanecer vinculado
ao id e indistinguível dele, então ele exibe a sua força. O mesmo se aplica à
relação entre o ego e o superego. Em muitas situações os dois se acham
fundidos; e em geral só podemos distinguir um do outro quando há uma tensão ou
conflito entre eles. Na repressão, o fato decisivo é que o ego é uma
organização e o id não. O ego é, na realidade, a parte organizada do id.
Estaríamos inteiramente errados se figurássemos o ego e o id como dois campos
opostos e se supuséssemos que, quando o ego tenta suprimir uma parte do id por
meio de repressão, o restante do id vai em socorro da parte que se acha em
perigo e mede sua força com o ego. Isto poderá amiúde ser o que acontece, mas
por certo não é a situação inicial na repressão. Em geral, o impulso inicial
que irá ser reprimido permanece isolado. Embora o ato de repressão demonstre a
força do ego, em um ponto específico ele revela a impotência do ego e quão
impenetráveis à influência são os impulsos instintuais do id, pois o processo
mental que se transformou em um sintoma devido à repressão mantém agora sua
existência fora da organização do ego e independentemente dele. Na realidade,
não é somente aquele processo, mas todos os seus derivados que usufruem, por
assim dizer; desse mesmo privilégio de extraterritorialidade; e sempre que
entram em contato associativo com uma parte da organização do ego, não é de
modo algum certo que não atraiam essa parte para si próprio e assim se ampliem
às expensas do ego. Uma analogia com a qual de há muito estamos familiarizados
comparou um sintoma com um corpo estranho que vinha mantendo uma sucessão
constante de estímulos e reações no tecido no qual estava encravado. De fato
ocorrealgumas vezes que a luta defensiva contra um impulso instintual
desagradável é eliminada com a formação de um sintoma. Até onde se pode
verificar, isto é freqüentemente possível na conversão histérica. Mas em geral
o resultado é diferente. O ato inicial da repressão é acompanhado por uma
seqüência tediosa ou interminável na qual a luta contra o impulso instintual se
prolonga até uma luta contra o sintoma.
Nessa luta defensiva secundária o ego apresenta
duas faces com expressões contraditórias. A única linha de comportamento que
ele adota decorre do fato de que sua própria natureza o obriga a fazer o que
deve ser considerado como uma tentativa de restauração ou de reconciliação. O
ego é uma organização. Baseia-se na manutenção do livre intercâmbio e da
possibilidade de influência recípocra entre todas as suas partes. Sua energia
dessexualizada ainda revela traços de sua origem em seu impulso para agregar-se
e unificar-se, e essa necessidade de síntese torna-se mais acentuada à
proporção que a força do ego aumenta. Portanto, é natural que o ego deva tentar
impedir que os sintomas permaneçam isolados e alheios utilizando todos os
métodos possíveis para agregá-los a si de uma maneira ou de outra, e para
incorporá-los em sua organização por meios desses vínculos. Como sabemos, uma
tendência dessa natureza já se acha atuante na próprio ato da formação de um
sintoma. Um exemplo clássico disto são aqueles sintomas histéricos que
revelamos ser um meio termo entre a necessidade de satisfação e a necessidade
de punição. Tais sintomas participam do ego desde o início, visto que atendem a
uma exigência do superego, enquanto por outro lado representam posições
ocupadas pelo reprimido e pontos nos quais uma irrupção foi feita por ele até a
organização do ego. Constituem uma espécie de posto de fronteira com uma
guarnição mista. (Se todos os sintomas histéricos primários são estruturados
nesses moldes, valeria a pena examiná-los muito cuidadosamente.) O ego passa
agora a comportar-se como se reconhecesse que o sintoma chegara para ficar e
que a única coisa a fazer era aceitar a situação de bom grado, e tirar dela o
máximo proveito possível. Ele faz uma adaptação ao sintoma - a essa peça do
mundo interno que é estranha a ele - assim como normalmente faz em relação ao
mundo externo real. Ele sempre pode encontrar grande número de oportunidades
para fazer isto. A presença de um sintoma pode impor uma certa diminuição de
capacidade, e isto pode serexplorado para apaziguar alguma exigência da parte
do superego ou para recusar alguma reivindicação proveniente do mundo externo.
Dessa forma, o sintoma gradativamente vem a ser representante de interesses
importantes; verifica-se útil na afirmação da posição do eu (self) e se funde
cada vez mais estreitamente com o ego, tornando-se cada vez mais indispensável
a ele. Só muito raramente é que o processo físico de ‘cura’ em torno de um
corpo estranho segue um curso como este. Há também o perigo de exagerar a
importância de uma adaptação secundária dessa espécie a um sintoma, e de afirmar
que o ego criou o sintoma simplesmente a fim de fruir suas vantagens. Seria
igualmente verdadeiro dizer que um homem que perdera a perna na guerra fizera
com que ela fosse arrancada a tiros, de modo que ele pudesse daí por diante
viver de sua pensão, sem ter de executar mais nenhum trabalho.
Nas neuroses obsessivas e na paranóia, as
formas que os sintomas assumem tornam-se muito valiosas para o ego porque obtêm
para este, não certas vantagens, mas uma satisfação narcísica sem a qual, de
outra forma poderia passar. Os sistemas que o neurótico obsessivo constrói
lisonjeiam seu amor próprio, fazendo-o sentir que ele é melhor que outras
pessoas, porque é especialmente limpo ou especialmente consciencioso. As
construções delirantes do paranóico oferecem aos seus agudos poderes
perceptivos e imaginativos um campo de atividade que ele não poderia encontrar
facilmente em outra parte.
Tudo isto resulta no que nos é familiar como o
‘ganho (secundário) proveniente da doença’ que se segue a uma neurose. Essa
recuperação vem em ajuda do ego no seu esforço para incorporar o sintoma, e
aumenta a fixação deste último. Quando o analista tenta subseqüentemente ajudar
o ego em sua luta contra o sintoma, verifica que esses laços conciliatórios
entre o ego e o sintoma atuam do lado das resistências e que não são fáceis de
afrouxar.
As duas linhas de comportamento que o ego adota
em relação ao sintoma estão, de fato, diretamente opostas uma à outra, pois a
outra linha é de natureza menos amistosa, visto que continua na direção da
repressão. Não obstante o ego, assim parece, não pode ser acusado de
incoerência. Sendo de disposição pacífica, gostaria de incorporar o sintoma e
torná-lo parte dele mesmo. É do próprio sintoma que provém o mal, pois o
sintoma, sendo o verdadeiro substituto e derivativo do impulso reprimido,
executa o papel do segundo; ele continuamente renova suas exigências de
satisfação e assimobriga o ego, por sua vez, a dar o sinal de desprazer e a
colocar-se em uma posição de defesa.
A luta defensiva secundária contra o sintoma
assume muitas formas. Trava-se em diferentes campos e faz uso de uma variedade
de métodos. Não estaremos em condições de dizer muito sobre ela até que
tenhamos feito uma indagação dos vários exemplos diferentes da formação de
sintomas. Ao procedermos dessa forma teremos oportunidade de penetrar no
problema da ansiedade - problema que de há muito avulta no segundo plano. O
projeto mais sensato será começar pelos sintomas produzidos pela neurose
histérica, visto não estarmos ainda em posição de considerar as condições nas
quais os sintomas da neurose obsessiva, da paranóia e de outras neuroses são
formados.
IV
Comecemos com uma fobia histérica infantil de
animais - por exemplo, o caso do ‘Little Hans’ [1909b], cuja fobia por cavalos
era indubitavelmente típica em todas as suas principais características. A
primeira coisa que se torna evidente é que em um caso concreto de doença
neurótica o estado de coisas é muito mais complexo do que se suporia enquanto
se estivesse lidando com abstrações. Leva-se algum tempo para encontrar-se
orientação e para resolver qual é o impulso reprimido, que sintoma substitutivo
foi encontrado e onde está o motivo de repressão.
‘Little Hans’ recusava-se a sair à rua porque
tinha medo de cavalos. Isto era a matéria-prima do caso. Que parte disto
constituía o sintoma? Era ele ter medo? Era sua escolha de um objeto para seu
temor? Era ter ele abandonado sua liberdade de movimento? Ou era mais de um
desses fatores combinados? Qual foi a satisfação a que ele renunciou? E por que
teve de renunciar a ela?
A um primeiro vislumbre, somos tentados a
responder que o caso não é assim tão obscuro. O inexplicável medo de ‘Little
Hans’ por cavalos era o sintoma e sua incapacidade de sair à rua era uma
inibição, uma restrição que o ego do menino impusera a si mesmo a fim de não
despertar o sintoma de ansiedade. O segundo ponto é claramente correto e no
exame que se segue não me preocuparei mais com essa inibição. Mas no tocante ao
sintoma alegado, um conhecimento superficial do caso nem sequer revela sua
verdadeira formulação, pois uma investigação posterior indica que aquilo de que
o menino sofria não era um medo vago de cavalos, mas apreensão bem definida de
que um cavalo ia mordê-lo. Essa idéia, na realidade, esforçava-se por retirar-se
da consciência e ser substituída por uma fobia indefinida, na qual somente a
ansiedade e seu objeto ainda apareciam. Talvez tenha sido essa idéia que tenha
constituído o núcleo do sintoma do ‘Little Hans’?
Não faremos qualquer progresso enquanto não tivermos
passado em revista a situação psíquica do menino como um todo, quando ela veio
à luz no curso do tratamento analítico. Ele se encontrava, à época, na atitude
edipiana ciumenta e hostil em relação ao pai, a quem, não obstante - salvo até
onde a mãe dele era a causa de desavença -, amava ternamente. Aqui, então,
temos um conflito devido à ambivalência: um amor bem fundamentado e um ódio não
menos justificável dirigidos para a mesmíssima pessoa. A fobia de ‘Little Hans’
deve ter sido uma tentativa de solucionar esse conflito. Conflitos dessa
natureza devidos à ambivalência são muito freqüentes epodem ter outro resultado
típico, no qual um dos dois sentimentos conflitantes (em geral o da afeição) se
torna imensamente intensificado e o outro desaparece. O grau exagerado e o
caráter compulsivo da afeição, por si sós, traem o fato de que não é a única
presente, mas está continuamente alerta para manter o sentimento oposto sob
supressão, permitindo-nos postular a atuação de um processo que denominamos de
repressão por meio da formação reativa (no ego). Casos como o do ‘Little Hans’
não revelam quaisquer vestígios de uma formação reativa dessa natureza. Há
formas claramente diferentes de saída de um conflito devido à ambivalência.
Entrementes, fomos capazes de estabelecer outro
ponto com certeza. O impulso instintual que sofreu repressão em ‘Little Hans’
foi um impulso hostil contra o pai. A prova disto foi obtida na análise do
menino enquanto a idéia do cavalo que mordia estava sendo acompanhada. Ele vira
um cavalo cair e também vira um companheiro de brinquedo, com quem brincava de
cavalo, cair e ferir-se. A análise justificou a interferência de que ele tivera
um impulso pleno de desejo de que o pai devia cair e ferir-se como seu
companheiro e o cavalo haviam feito. Além disso, sua atitude em relação à
partida de alguém em certa ocasião torna provável que o desejo de que o pai não
atrapalhasse também encontrou expressão menos hesitantes. Mas um desejo dessa
espécie equivale a uma intenção de alguém desvencilhar-se do pai - equivale ao
impulso assassino do complexo de Édipo
Até agora não parece haver quaisquer elos de
ligação entre o impulso instintual reprimido de ‘Little Hans’ e o substituto
dele que suspeitamos devesse ser visto em sua fobia por cavalos. Simplifiquemos
sua situação psíquica, pondo de lado o fator infantil e a ambivalência.
Imaginemos que ele é um jovem criado que está apaixonado pela dona da casa e
que recebeu certas provas de simpatia desta. Ele odeia seu patrão, que é mais
poderoso que ele, e gostaria de desembaraçar-se dele. Ser-lhe-ia então
evidentemente natural temer a vingança daquele e criar medo dele - da mesma
forma ‘Little Hans’ criou uma fobia por cavalos. Não podemos, portanto,
descrever o medo que faz parte dessa fobia como um sintoma. Se ‘Little Hans’,
estando apaixonado pela mãe, mostrara medo do pai, não devemos ter direito
algum de dizer que ele tinha uma neurose ou fobia. Sua reação emocional teria
sido inteiramente compreensível. O que a transformou em uma neurose foi apenas
uma coisa: a substituição do pai por um cavalo. É esse deslocamento, portanto,
que tem o direito de ser denominado de sintoma, e que, incidentalmente,
constitui o mecanismo alternativo que permite um conflito devido à ambivalência
ser solucionado sem o auxílio da formação reativa. [Cf.[1].] Tal deslocamento é
tornado possível ou facilitado na tenra idade de ‘Little Hans’ porque os traços
inatos do pensamento totêmico podem ainda ser facilmente revividos. As crianças
ainda não reconhecem nem, seja como for, dão exagerada ênfase ao abismo que
separa os seres humanos do mundo animal. A seus olhos o homem adulto, o objeto
de seu medo e de sua admiração, ainda pertence à mesma categoria que o grande
animal que possui tantos atributos invejáveis, mas contra a qual elas foram
advertidas porque ele pode tornar-se perigoso. Como vemos, o conflito devido à
ambivalência não é tratado em relação à única e mesma pessoa: é contornado, por
assim dizer, por um do par de impulsos conflitantes que são dirigidos para
outra pessoa como um objeto substitutivo.
Até agora tudo está claro. Mas a análise da
fobia de ‘Hans’, tem sido um desapontamento completo sob um aspecto. A
distorção que constitui a formação de sintomas não foi aplicada ao
representante [psíquico] (o conteúdo ideativo) do impulso instintual que devia
ser reprimido; foi aplicada a um representante bem diferente e que só
correspondia a uma reação ao instinto desagradável. Estaria mais de acordo com
nossas expectativas se ‘Little Hans’ tivesse desenvolvido, em vez de medo de
cavalos, uma inclinação para maltratá-los e espancá-los, ou se ele tivesse
expressado em termos claros o desejo de vê-los cair ou de serem feridos, ou
mesmo de morrerem em convulsões (‘fazerem barulho com os pés’). Algo dessa
espécie de fato surgiu em sua análise, mas de forma alguma ocupava lugar de
relevo em sua neurose. E, o que é bastante curioso, se ele houvesse realmente
produzido uma hostilidade dessa natureza, não contra o pai, mas contra cavalos,
como seu principal sintoma, não devíamos ter dito que ele estava sofrendo de
uma neurose. Deve haver algo de errado quer com nosso ponto de vista da
repressão, quer com nossa definição de um sintoma. Uma coisa, naturalmente, nos
impressiona de imediato; se ‘Little Hans’ realmente se houvesse comportado assim
em relação aos cavalos, isto significaria que a repressão não havia de forma
alguma alterado o caráter de seu próprio impulso instintual objetável e
agressivo, mas somente o objeto para o qual estava dirigido.Sem dúvida, existem
casos nos quais isto é tudo o que faz a repressão. Contudo, mais do que isto
aconteceu no desenvolvimento da fobia de ‘Little Hans’ - o que pode ser
percebido a partir de uma parte de outra análise.
Como sabemos, ‘Little Hans’ alegava que aquilo
que temia era que um cavalo o mordesse. Algum tempo depois fui capaz de saber
algo a respeito da origem de outra fobia a animais. Nesse caso o animal temido
era um lobo; ele também tinha o significado de um substituto do pai. Quando
menino o paciente em questão - um russo que eu só analisei quando ele contava
vinte e tantos anos - tivera um sonho (cujo significado foi revelado na
análise) e, logo após isto, criara o temor de ser devorado por um lobo, como os
sete cabritos do conto de fadas. No caso de ‘Little Hans’ o fato comprovado de
que o pai costumava brincar de cavalo com ele sem dúvida determinou sua escolha
de um cavalo como um animal causador de ansiedade. Da mesma forma, parecia pelo
menos muito provável que o pai do meu paciente russo costumava, quando brincava
com ele, fingir ser lobo e de brincadeira ameaçava devorá-lo. Desde então
deparou-se-me um terceiro exemplo. O paciente foi um jovem norte-americano que
me procurou para ser analisado. É bem verdade que ele não desenvolveu uma fobia
a animais, mas é precisamente por causa dessa omissão que seu caso ajuda a
lançar luz sobre os outros dois. Quando criança ele fora sexualmente excitado
por uma fantástica história infantil, que lhe fora lida em voz alta, sobre um
chefe árabe que perseguia um ‘homem feito de especiarias’ a fim de comê-lo. O
menino identificou-se com essa pessoa comestível, tendo o chefe árabe sido
facilmente reconhecível como um substituto do pai. Essa fantasia formou o
primeiro substrato de suas fantasias auto-eróticas.
A idéia de ser devorado pelo pai é típica do
material infantil consagrado pelo tempo. Ela possui paralelos familiares na
mitologia (por exemplo, o mito de Cronos) e no reino animal. Contudo, apesar
dessa confirmação, a idéia nos é tão estranha que mal podemos dar crédito a sua
existência em uma criança. Tampouco sabemos se realmente significa o que parece
dizer, e não podemos compreender como pode ter-se tornado o tema de uma fobia.
A observação analítica proporciona a informação necessária. Revela que a idéia
de ser devorado pelo pai dá expressão, em uma forma que sofreu degradação
regressiva, a um termo impulso passivo de ser armado por ele num sentido
erótico genital. Uma investigação ulterior do caso clínico não deixa nenhuma
dúvida quanto à exatidão dessa explanação. O impulso genital, é verdade, não
trai dúvida alguma da sua terna finalidade, quando expresso na linguagem que
pertence à fase transicional superada entre as organizações oral e sádica da
libido. Além disso, trata-se simplesmente da questão da substituição do
representante [psíquico] por uma forma regressiva do impulso genitalmente
orientado no id? De forma alguma é fácil ter-se certeza disto. O caso clínico
do ‘Wolf Man’ russo oferece um apoio bem definido ao segundo ponto de vista
mais sério: pois a partir da época do sonho decisivo, o menino tornou-se
travesso, atormentador e sádico, havendo logo depois desenvolvido uma neurose
obsessiva regular. Seja como for, podemos ver que a repressão não é o único
meio que o ego pode empregar com a finalidade de defesa contra um impulso instintual
desagradável. Se ele conseguir fazer um instinto regredir, na realidade lhe
terá causado mais dano do que se o fizesse progredir. Por vezes, realmente,
depois de forçar um instinto a regredir dessa forma, passa a reprimi-lo.
O caso ‘Wolf Man’ e o caso um pouco menos
complicado de ‘Little Hans’ levantam grande número de outras considerações. Mas
já fizemos duas descobertas inesperadas. Não pode haver dúvida alguma de que o
impulso instintual que foi reprimido em ambas as fobias era hostil contra o pai.
Podemos dizer que o impulso fora reprimido pelo processo de ser transformado em
seu oposto.Em vez da agressividade por parte do paciente para com o pai, surgiu
agressividade (sob a forma de vingança) por parte do pai para com o paciente.
Visto que essa agressividade se acha, em qualquer caso, enraizada na fase
sádica da libido, somente uma certa dose de degradação se faz necessária para
reduzi-la à fase oral. Essa fase, enquanto apenas insinuada ao medo de ‘Little
Hans’ de ser mordido foi ruidosamente exibida no terror do ‘Wolf Man’ de ser
devorado. Mas, além disso, a análise demonstrou, sem qualquer sombra de dúvida,
a presença de outro impulso instintual de natureza oposta que sucumbira à
repressão. Este foi um suave impulso passivo dirigido ao pai; que já havia
alcançado o nível genital (fálico) da organização libidinal. No tocante ao
resultado do processo de repressão, esse impulso parece, realmente, ter sido o
mais importante dos dois, havendo passado por uma regressão de alcance bem
maior e tendo exercido influência decisiva sobre o conteúdo da fobia. Ao
acompanharmos uma repressão instintual única, tivemos assim de reconhecer uma
convergência de dois de tais processos. Os dois impulsos instintuais que foram
dominados pela repressão - a agressividade sádica em relação ao pai e uma
atitude passiva suave para com ele - formam um par de opostos. Além disso, uma
apreciação completa do caso de ‘Little Hans’ revela que a formação de sua fobia
tivera o efeito de abolir sua catexia objetal afetuosa também de sua mãe,
embora o conteúdo real de sua fobia não traísse qualquer sinal disto. O
processo de repressão tinha atacado quase todos os componentes do seu complexo
edipiano - tanto seus impulsos hostis quanto seus impulsos ternos para com a
mãe. Em meu paciente russo esse estado de coisas era muito menos óbvio.
Essas são complicações desagradáveis,
considerando-se que somente passamos a estudar casos simples de formação de
sintomas devidos à repressão, e com esse intento escolhemos as neuroses mais
antigas e, ao que tudo indica, as mais manifestas da infância. Em vez de uma
única repressão encontramos uma coleção delas e ainda por cima ficamos
envolvidos com a regressão. Talvez tenhamos aumentado a confusão tratando os
dois casos de fobia animal à nossa disposição - ‘Little Hans’ e o ‘Wolf Man’ -
como se fossem fundidos no mesmo molde. Em verdade, ressaltam certas diferenças
entre eles. Somente no tocante a ‘Little Hans’ é que podemos dizer com certeza
que aquilo que sua fobia eliminou foram os dois principais impulsos do complexo
edipiano - sua agressiv idade para com o pai e seu excesso de afeição pela mãe.
Um terno sentimento pelo pai também se encontrava presente e desempenhou certo
papel na repressão do sentimento oposto; mas não podemos nem provar que era
bastante forte para atrair a repressão sobre si mesmo, nem que desapareceu
depois. ‘Hans’ parece, de fato, ter sido um menino normal quanto àquilo que se
denomina um complexo edipiano ‘positivo’. É possível que os fatores que não
encontramos estivessem, na realidade, em ação nele, mas não podemos demonstrar
sua existência. Mesmo a análise mais exaustiva apresenta lacunas em seus dados
e é insuficientemente documentada. No caso do russo, a deficiência encontra-se
em outra parte. Sua atitude para com objetos femininos foi perturbada por uma
sedução antiga, e seu lado passivo feminino foi acentuadamente desenvolvido. A
análise de seu sonho com o lobo revelou pouquíssima agressividade intencional
para com o pai, mas apresentou prova inegável de que aquilo de que a repressão
se apoderou foi sua terna atitude passiva para com o pai. Em seu caso, também,
é possível que os outros fatores fossem igualmente atuantes; mas não estavam em
evidência. Como se explica que, apesar dessas diferenças nos dois casos que
quase chegam a uma antítese, o resultado final - uma fobia - seja
aproximadamente o mesmo? Deve-se procurar a resposta em outro setor. Penso que
será encontrada no segundo fato que surge de nosso breve exame comparativo.
Parece-me que em ambos os casos podemos detectar qual foi a força motriz da
repressão e podemos consubstanciar nosso ponto de vista sobre sua natureza a
partir da linha de desenvolvimento que as duas crianças subseqüentemente
seguiram. Essa força motriz era a mesma em ambas. Era o temor de castração iminente.
‘Little Hans’ desistiu de sua agressividade para com o pai temendo ser
castrado. O medo de que um cavalo o mordesse pode, sem nenhuma força de
expressão, receber o pleno sentido do temor de que um cavalo arrancasse fora
com os dentes seus órgãos genitais - o órgão que o distinguia de uma fêmea.
Como vemos, ambas as formas do complexo edipiano, a forma normal, ativa, e a
invertida fracassaram através do complexo de castração. A idéia de ansiedade do
menino russo de ser devorado por um lobo não encerrava, é verdade, qualquer
sugestão de castração, pois a regressão oral pela qual passara a afastara para
muito longe da fase fálica. Mas a análise de seu sonho torna supérflua uma
prova ulterior. Constituiu um triunfo da repressão que a forma pela qual sua fobia
foi expressa não devesse mais encerrar qualquer alusão à castração.
Aqui, então, está o nosso inesperado achado: em
ambos os pacientes a força motriz da repressão era o medo da castração. As
idéias contidas na ansiedade deles - a de ser mordido por um cavalo e a de ser
devorado por um lobo - eram substitutos, por distorção, da idéia de serem
castrados pelo pai. Esta foi a idéia que sofreu repressão. No menino russo a
idéia era a expressão de um desejo que não foi capaz de subsistir em face de
sua revolta masculina; em ‘Little Hans’ foi a expressão de uma reação nele que
transformara sua agressividade em seu oposto. Mas o afeto de ansiedade, que era
a essência da fobia, proveio, não do processo de repressão, não das catexias
libidinais dos impulsos reprimidos, mas do próprio agente repressor. A
ansiedade pertencente às fobias a animais era um medo não transformado de
castração. Era portanto um medo realístico o medo de um perigo que era
realmente iminente ou que era julgado real. Foi a ansiedade que produziu a
repressão e não, como eu anteriormente acreditava, a repressão que produziu a
ansiedade.
Não vale a pena negar o fato, embora não seja
agradável relembrá-lo, de que em muitas ocasiões afirmei que na repressão o
representante instintual é distorcido, deslocado, e assim por diante, enquanto
a libido que pertence ao impulso sexual é transformada em ansiedade. Mas agora
um exame das fobias, que deve ser o mais capaz de oferecer provas
confirmatórias, deixa de sustentar minha asserção; parece, antes, contradizê-la
diretamente. A ansiedade sentida em fobias a animais é o medo de castração do
ego; enquanto a ansiedade sentida na agorafobia (um assunto que tem sido
estudado menos completamente) parece ser seu medo de tentação sexual - um medo
que, afinal de contas, deve estar vinculado em suas origens ao medo de
castração. Até onde se pode observar no momento, a maioria das fobias remonta a
uma ansiedade dessa espécie sentida pelo ego no tocante às exigências da
libido. É sempre a atitude de ansiedade do ego que é a coisa primária e que põe
em movimento a repressão. A ansiedade jamais surge da libido reprimida. Se eu
me tivesse contentado antes em afirmar que, após a ocorrência da repressão,
certa dose de ansiedade apareceu em lugar da manifestação da libido que era de
se esperar, nada teria hoje a retratar. A descrição seria correta, existindo,
indubitavelmente, uma correspondência da espécie afirmada entre a força do
impulso que tem de ser reprimido e a intensidade da ansiedade resultante. Mas
devo admitir que pensei que estava apresentando mais que uma mera descrição.
Acreditei que mexera em um processo metapsicológico de transformação direta da
libido em ansiedade. Agora não posso mais manter esse ponto de vista. E,
realmente, verifiquei ser impossível na época explicar como uma transformação
dessa natureza foi levada a efeito.
Talvez se pergunte como cheguei a essa idéia de
transformação no primeiro exemplo. Foi enquanto estudava as ‘neuroses atuais’
numa época em que a análise ainda estava muito longe de distinguir entre
processos no ego e processos no id. Constatei que irrupções de ansiedade e um
estado geral de preparo para a ansiedade eram produzidos por certas práticas
sexuais tais como o coitus interruptus, a excitação sexual não descarregada ou
a abstinência forçada - isto é, sempre que a excitação sexual era inibida,
presa ou defletida em seu rumo à satisfação. Visto que a excitação sexual era
uma expressão de impulsos sexuais libidinais, não parecia ser muito precipitado
presumir que a libido era transformada em ansiedade por intermédio dessas
perturbações. As observações que fiz na ocasião ainda são válidas. Além disso,
não se pode negar que a libido que pertence aos processos do id está sujeita a
perturbação por instigação da repressão. Talvez ainda seja verdade, portanto,
que na repressão a ansiedade é produzida a partir da catexia libidinal dos
impulsos instintuais. Mas como podemos reconciliar essa conclusão com nossa
outra conclusão de que a ansiedade sentida em fobias é uma ansiedade do ego e
que surge neste, e de que não parte da repressão mas, ao contrário, põe a
repressão em movimento? Parece haver aqui uma contradição que de modo algum
constitui um assunto simples de solucionar. Não será fácil reduzir as duas
fontes de ansiedade a uma única. Podemos tentar fazê-lo supondo que, quando o
coito é perturbado ou a excitação sexual interrompida ou a abstinência forçada,
o ego fareja certos perigos aos quais reage com ansiedade. Mas isto não nos
leva a parte alguma. Por outro lado, nossa análise das fobias parece não
admitir qualquer correção. Non liquet.
V
Começamos por estudar a formação de sintomas e
a luta secundária travada pelo ego contra os sintomas. Mas ao selecionarmos as
fobias para essa finalidade fizemos claramente uma escolha. A ansiedade que
predomina no quadro dessas desordens é agora vista como uma complicação que
obscurece a situação. Existem muitas neuroses que não apresentam qualquer
ansiedade. A verdadeira histeria de conversão é uma delas. Mesmo nos seus
sintomas mais graves não se encontra qualquer mescla de ansiedade. Só esse fato
já deve advertir-nos para não estabelecermos uma ligação muito estreita entre a
ansiedade e a formação de sintomas. As fobias acham-se tão intimamente
apresentadas com a histeria de conversão em todos os outros aspectos que me
senti justificado em classificá-las juntamente com a segunda sob a denominação
de ‘histeria de angústia’. Mas ninguém até agora foi capaz de dizer o que é que
determina se qualquer caso determinado assumirá a forma de uma histeria de
conversão ou de uma fobia - foi capaz, vale dizer, de estabelecer o que
determina a geração da ansiedade na histeria.
Os sintomas mais comuns da histeria de
conversão - paralisias motoras, contraturas, ações ou descargas involuntárias,
dores e alucinações - constituem processos catexiais que são permanentemente
mantidos. Mas isto acarreta novas dificuldades. Na realidade não se sabe muita
coisa acerca desses sintomas. A análise pode revelar qual o processo
excitatório perturbado que os sintomas substituem. Em geral ocorre que eles têm
seu quinhão nesse processo. É como se toda a energia do processo tivesse sido
concentrada nessa única parte do mesmo. Por exemplo, verificar-se-á que as
dores de que sofria um paciente estavam presentes na situação em que ocorreu a
repressão; ou que a alucinação do paciente era, na época, uma percepção; ou que
sua paralisia motora é uma defesa contra uma ação que devia ser levada a efeito
naquela situação, mas que estava inibida; ou que sua contratura é, em geral, um
deslocamento de uma pretendida inervação dos músculos em alguma outra parte do
corpo; ou que suas convulsões são a expressão de uma explosão de afeto que foi
retirada do controle normal do ego. A sensação de desprazer que acompanha o
aparecimento dos sintomas varia em grau impressionante. Nos sintomas crônicos
que foram deslocados para a motilidade, como paralisias e contraturas, ela se
acha quase inteiramente ausente; o ego comporta-se em relação aos sintomas como
se nada tivesse a ver com estes. Nos sintomas intermitentes e naqueles que
dizem respeito à espera sensorial, as sensações de desprazer são, em geral,
distintamente sentidas; e nos sintomas de dor podem atingir um grau extremo. O
quadro apresentado é tão multiforme que é difícil descobrir o fator que permite
todas essas variações e ainda uma explicação uniforme das mesmas. Há, além
disso, pouco a ser verificado na histeria de conversão da luta do ego contra o
sintoma após a sua formação. É somente quando a sensibilidade à dor em alguma
parte do corpo constitui o sintoma, que este está em condições de desempenhar
duplo papel. O sintoma da dor surgirá com não menor regularidade, sempre que a
parte do corpo em causa seja tocada de fora, do que quando a situação
patogênica que representa seja associativamente ativada de dentro, e o ego
tomará precaução a fim de impedir que o sintoma seja despertado através de
percepções externas. Não posso dizer por que a formação de sintomas em histeria
de conversão deve ser uma coisa tão obscura, mas o fato nos oferece bom motivo
para abandonarmos sem mais delongas um campo de indagação tão improdutivo.
Passemos às neuroses obsessivas na esperança de
aprendermos mais alguma coisa sobre a formação de sintomas. Os sintomas que
fazem parte dessa neurose se enquadram, em geral, em dois grupos, cada um tendo
uma tendência oposta. São ou proibições, precauções e expiação - isto é,
negativos quanto à natureza - ou são, ao contrário, satisfações substitutivas
que amiúde aparecem em disfarce simbólico. O grupo defensivo, negativo dos
sintomas é o mais antigo dos dois, mas à medida que a doença se prolonga, as
satisfações, que zombam de todas as medidas defensivas, levam vantagem. A
formação de sintomas assinala um triunfo se consegue combinar a proibição com a
satisfação, de modo que o que era originalmente uma ordem defensiva ou
proibição adquire também a significância de uma satisfação; a fim de alcançar
essa finalidade muitas vezes faz uso das trilhas associativas mais engenhosas.
Tal realização demonstra a tendência do ego de sintetizar, a qual já
observamos,ver em [[1]]. Em casos extremos o paciente consegue fazer com que a
maioria de seus sintomas adquira, além do seu significado original, um
significado diretamente contrário. Isto é um tributo do poder de ambivalência,
o qual, por alguma razão desconhecida, desempenha papel tão relevante nas
neuroses obsessivas. No exemplo mais tosco o sintoma é bifásico uma ação que
executa uma certa injunção é imediatamente sucedida por outra ação que pára ou
desfaz a primeira, mesmo que não vá até o ponto de levar a cabo seu oposto.De
imediato surgem duas impressões desse breve exame dos sintomas obsessivos. A
primeira é que uma luta incessante está sendo travada contra o reprimido, no qual
as forças repressoras constantemente perdem terreno; a segunda é que o ego e o
superego têm uma parcela especialmente grande na formação dos sintomas.
A neurose obsessiva é, indubitavelmente, o tema
mais interessante e compensador da pesquisa analítica. Deve-se confessar que,
se nos esforçarmos por penetrar mais profundamente em sua natureza, teremos de
confiar em admissões duvidosas e suposições não confirmadas. A neurose
obsessiva tem origem, sem dúvida, na mesma situação que a histeria, a saber, a
necessidade de desviar as exigências libidinais do complexo edipiano. Na
realidade, toda neurose obsessiva parece ter um substrato de sintomas
histéricos que se formaram em uma fase bem antiga. Mas subseqüentemente ela é
plasmada em moldes bem diferentes devido a um fator constitucional. A
organização genital da libido vem a ser débil e insuficientemente resistente,
de modo que, quando o ego começa seus esforços defensivos, a primeira coisa que
ele consegue fazer é lançar de volta a organização genital (da fase fálica), no
todo ou em parte, ao nível anal-sádico mais antigo. Esse fato de regressão é
decisivo para tudo o que se segue.
Outra possibilidade tem de ser considerada.
Talvez a regressão seja o resultado não de um fator constitucional mas de um
fator tempo. Pode ser que a regressão possa ser tornada possível, não porque a
organização genital da libido seja fraca demais, mas porque a oposição do ego
começa cedo demais, enquanto a fase sádica se acha no seu apogeu. Não estou
preparado para expressar uma opinião definitiva sobre esse ponto, mas posso
dizer que a observação analítica não fala em favor de tal suposição. Antes
revela que, na ocasião em que se entra em uma neurose obsessiva, a fase fálica
já foi alcançada. Além disso, o início dessa neurose pertence a uma época da
vida mais posterior do que a da histeria - ao segundo período da infância, após
o período de latência ter-se estabelecido. Em uma paciente cujo caso fui capaz
de estudar e que foi dominada por esse distúrbio em uma data muito tardia, tornou-se
claro que a causa determinante de sua regressão e do surgimento de sua neurose
obsessiva foi uma ocorrência real através da qual sua vida genital, que até
então se mantivera intacta, perdeu todo seu valor.No tocante à explicação
metapsicológica da regressão, estou inclinado a encontrá-la em uma ‘desfusão do
instinto’, em um desligamento dos componentes eróticos que, com o início da
fase genital, se juntaram às catexias destrutivas que pertenciam à fase sádica.
Ao forçar a regressão, o ego lavra seu primeiro
tento em sua luta defensiva contra as exigências da libido. (Nesse sentido é
vantajoso estabelecer uma distinção entre a idéia mais geral de ‘defesa’ e
‘repressão’. A repressão é apenas um dos mecanismos de que a defesa faz uso.)
Talvez seja nos casos obsessivos, mais do que nos normais ou nos histéricos,
que podemos mais claramente reconhecer que a força motora da defesa é o
complexo de castração, e que o que está sendo desviado são as tendências do
complexo edipiano. No momento estamos tratando do início do período de
latência, um período que se caracteriza pela dissolução do complexo de Édipo,
pela criação ou consolidação do superego e pela edificação de barreiras éticas
e estéticas no ego. Nas neuroses obsessivas esses processos são levados mais longe
do que o normal. Além da destruição do complexo de Édipo verifica-se uma
degradação regressiva da libido, o superego torna-se excepcionalmente severo e
rude, e o ego, em obediência ao superego, produz fortes formações reativas de
consciência, piedade e asseio. Implacável, embora nem sempre por isso
bem-sucedida, a severidade se revela na condenação da tentação de continuar com
a masturbação infantil inicial, que agora se liga a idéias (anal-sádicas)
regressivas mas que, não obstante, representa a parte não subjugada da
organização fálica. Há uma contradição inerente quanto a esse estado de coisas,
no qual, precisamente no interesse da masculinidade (isto é, pelo medo da
castração), toda atividade que pertence à masculinidade é paralisada. Mas
também aqui a neurose obsessiva está apenas levando a efeito, de forma
excessiva, o método normal de livrar-se do complexo de Édipo. Mais uma vez
encontramos aqui a ilustração da verdade de que todo exagero contém a semente
de sua própria perdição. Pois, à guisa de atos obsessivos, a masturbação que
foi suprimida se aproxima cada vez mais da satisfação.
As formações reativas no ego do neurótico
obsessivo, que reconheço como exageros da formação normal do caráter, devem ser
consideradas, penso eu, como ainda outro mecanismo de defesa e situadas as lado
da regressão e da repressão. Elas parecem estar ausentes ou muito mais fracas
na histeria. Lançando um olhar retrospectivo, podemos agora ter uma idéia do
que é peculiar ao processo defensivo da histeria. Parece que nela o processo se
limita somente à repressão. O ego afasta-se do impulso instintual desagradável,
deixa-o seguir seu curso no inconsciente, e não toma mais qualquer parte em sua
sorte. Esse ponto de vista não pode ser absolutamente correto, pois estamos familiarizados
com o caso no qual um sintoma histérico é ao mesmo tempo a realização de uma
penalidade imposta pelo superego, mas ele pode descrever uma característica
geral do comportamento do ego na histeria.
Podemos ou simplesmente aceitar como um fato
que na neurose obsessiva surge um superego severo dessa espécie, ou considerar
a regressão da libido como a característica fundamental da afecção e tentar
relacionar a severidade do superego com isto. E realmente o superego,
originando-se do id, não pode dissociar-se da regressão e desfusão do instinto
que ali se verificaram. Não podemos surpreender-nos se ele se tornar mais
áspero, mais rude e mais atormentador do que onde o desenvolvimento tem sido
normal.
A principal tarefa durante o período de
latência parece ser o desvio da tentação à masturbação. Essa luta produz uma
série de sintomas que aparecem de maneira típica nos indivíduos mais diferentes
e que, em geral, têm a natureza de um cerimonial. Muito é de lamentar que
alguém ainda não os tenha reunido e analisado de maneira sistemática. Sendo os
primeiros produtos da neurose, eles deviam ser aqueles mais capazes de lançar
luz sobre os mecanismos empregados em sua formação de sintomas. Já exibem as
características que surgirão de forma tão desastrosa se sobrevier uma doença
grave. Tendem a tornar-se ligados a atividades (que depois seriam levadas a
efeito quase automaticamente) como ir dormir, lavar-se, vestir-se e andar de um
lado para o outro; e também tendem à repetição e ao desperdício de tempo. No
momento não está de modo algum claro por que isto ocorre dessa maneira, mas a
sublimação dos componentes erótico-anais desempenha nele papel inegável.
O advento da puberdade abre um capítulo
decisivo na história de uma neurose obsessiva. A organização genital interrompida
na infância começa novamente com grande vigor. Mas, como sabemos, o
desenvolvimento sexual na infância determina qual a direção que tomará esse
novo início na puberdade. Não só os impulsos agressivos iniciais serão
despertados de novo, mas também uma proporção maior ou menor dos novos impulsos
libidinais - nos casos maus todos eles - terá de seguir o curso prescrito para
eles pela regressão e surgirá como tendências agressivas e destrutivas. Em
conseqüência de as tendências eróticas serem disfarçadas dessa forma e devido
às poderosas formações reativas no ego, a luta contra a sexualidade doravante
será levada adiante sob o estandarte de princípios éticos. O ego recuará com
assombro das instigações à crueldade e à violência que entram na consciência a
partir do id, não tendo qualquer idéia de que nelas ele está combatendo desejos
eróticos, inclusive alguns em relação aos quais não teria aberto exceção
alguma. O superego por demais rigoroso insiste ainda mais fortemente na
supressão da sexualidade, visto esta ter assumido formas tão repelentes. Assim,
na neurose obsessiva o conflito é agravado em duas direções: as forças
defensivas se tornam mais intolerantes e as forças que devem ser desviadas se
tornam mais intoleráveis. Ambos os efeitos se devem a um único fator, a saber,
a regressão da libido.
Muito do que se afirmou pode ser contestado com
base no fundamento de que as idéias obsessivas desagradáveis são bem
conscientes. Mas não resta dúvida de que, antes de se tornarem conscientes,
passaram pelo processo de repressão. Na maioria delas a verdadeira enunciação
do impulso instintual agressivo é totalmente desconhecida do ego, exigindo boa
dose de trabalho analítico para torná-la consciente. O que de fato penetra na
consciência é, em geral, somente um substituto distorcido que é ou de natureza
vaga, semelhante aos sonhos e indeterminada, ou de tal forma caricaturado que
se torna irreconhecível. Mesmo onde a repressão não usurpou o conteúdo do
impulso agressivo, ela por certo livrou-se de seu caráter afetivo concomitante.
Como resultado, a agressividade parece ao ego não uma impulsão mas, como os
próprios pacientes dizem, apenas um ‘pensamento’ que não desperta qualquer
sentimento. Mas o fato é que este não é o caso. O que acontece é que o afeto
deixado de fora quando a idéia obsessiva é percebida aparece em um ponto
diferente. O superego comporta-se como se a repressão não tivesse ocorrido e
como se conhecesse a verdadeira enunciação e o pleno caráter afetivo do impulso
agressivo, e trata o ego em conformidade com isso. O ego que, por um lado, sabe
ser inocente, é obrigado, por outro lado, a ficar cônscio de um sentimento de
culpa e a arcar com uma responsabilidade pela qual não pode responder. Esse
estado de coisas não é, contudo, tão desorientador como pareceria à primeira
vista.O comportamento do superego simplesmente revela que ele impediu a entrada
ao id por meio da repressão, enquanto permaneceu plenamente acessível à
influência do superego. Se se pergunta por que o ego não tenta também
afastar-se da crítica atormentadora do superego, a resposta é que ele de fato
consegue fazê-lo em grande número de casos. Existem neuroses obsessivas nas
quais nenhum sentimento de culpa se acha presente. Neles, até onde se possa
observar, o ego evitou tornar-se cônscio desse sentimento instituindo um novo
conjunto de sintomas, penitências ou restrições de natureza autopunitiva. Esses
sintomas, contudo, representam ao mesmo tempo uma satisfação de impulsos
masoquistas que, por sua vez, foram reforçados pela regressão.
A neurose obsessiva apresenta uma
multiplicidade tão vasta de fenômenos que, apesar de todos os esforços
envidados até agora, não se conseguiu fazer uma síntese coerente de todas as
suas variações. Tudo que podemos fazer é colher certas correlações típicas, mas
há sempre o risco de que tenhamos desprezado outras uniformidades de natureza
não menos importantes.
Já escrevi a tendência geral da formação de
sintomas na neurose obsessiva. Ela irá dar lugar cada vez mais amplo à
satisfação substitutiva às expensas da frustração. Os sintomas que outrora
representavam uma restrição do ego vêm depois a representar também satisfações,
graças à inclinação do ego para a síntese, sendo bem claro que esse segundo
significado gradativamente se torne o mais importante dos dois. O resultado
desse processo, que se aproxima cada vez mais de um fracasso completo da
finalidade original de defesa, é um ego extremamente restringido, que fica
reduzido a procurar satisfação nos sintomas. O deslocamento da distribuição das
forças em favor da satisfação pode ter o temido resultado final de paralisar a
vontade do ego, que em toda decisão que tem de fazer é quase tão fortemente
impelido de um lado como do outro. O conflito superagudo entre o id e o
superego, que tem dominado a doença bem desde o começo, pode assumir proporções
tão amplas que o ego, incapaz de executar sua ação de mediador, nada poderá
empreender que não seja atraído para a esfera daquele conflito.
VI
No curso dessas lutas defrontamo-nos com duas
atividades do ego que formam sintomas e que merecem especial atenção porque são
obviamente substitutas e, portanto, bem calculadas para ilustrarem sua
finalidade e técnica. O fato de surgirem tais técnicas auxiliares e
substitutivas pode servir como argumento de que a verdadeira repressão se
deparou com dificuldades em seu funcionamento. Se se considerar o quanto que o
ego é mais cenário de ação da formação de sintomas na neurose obsessiva do que
na histeria e se considerar com que tenacidade o ego se apega a suas relações
com a realidade e com a consciência, empregando todas as suas faculdades
intelectuais para essa finalidade - e realmente como o próprio processo de
pensar se torna hipercatexizado e erotizado -, então talvez se possa chegar a
uma melhor compreensão dessas variações da repressão.
As duas técnicas às quais me refiro estão
desfazendo o que foi feito e isolado. A primeira delas tem ampla gama de
aplicação e remonta a um ponto muito distante. É, por assim dizer, mágica
negativa, e se esforça, por meio do simbolismo motor, por ‘dissipar com um
sopro’ não meramente as conseqüências de algum evento (ou experiência ou
impressão), mas o próprio evento. Escolhi a expressão ‘dissipar com um sopro’
de caso pensado, a fim de lembrar ao leitor o papel desempenhado por essa
técnica não somente nas neuroses mas também nos atos mágicos, nos costumes e
nas cerimônias religiosas. Na neurose obsessiva a técnica de desfazer o que foi
feito é encontrada pela primeira vez nos sintomas ‘bifásicos’,ver em [[1]], nos
quais uma ação é cancelada por uma segunda, do modo que é como se nenhuma ação
tivesse ocorrido, ao passo que, na realidade, ambas ocorreram. A finalidade de
desfazer é o segundo motivo subjacente dos cerimoniais obsessivos, sendo o
primeiro tomar precauções a fim de impedir a ocorrência ou recorrência de algum
evento específico. A diferença entre os dois é facilmente observada: as medidas
precautórias são racionais, enquanto tentar livrar-se de algo ‘fazendo-o como
se não tivesse acontecido’ é irracional e da natureza da magia. Naturalmente
deve-se suspeitar que o segundo é o motivo mais antigo dos dois e decorre da
atitude animista para com a vida. Esse esforço em desfazer dilui-se em
comportamento normal no caso em que uma pessoa resolve considerar umevento como
não tendo acontecido. Mas ao passo que ela não adotará quaisquer medidas
diretas contra o evento e simplesmente não prestará mais atenção alguma a ele
ou a suas conseqüências, a pessoa neurótica tentará tornar o próprio passado
não existente. Tentará reprimi-lo por meios motores. A mesma finalidade talvez
possa explicar a obsessão de repetir, com tanta freqüência encontrada nessa
neurose e cuja execução serve a grande número de intenções contraditórias ao
mesmo tempo. Quando não aconteceu na forma desejada, é desfeita, sendo repetida
de uma maneira diferente; e logo todos os motivos que existem para que se
demore em tais repetições entram também em ação. À medida que a neurose
continua, amiúde verificamos que o esforço em desfazer uma experiência
traumática constitui um motivo de primeiríssima importância na formação de
sintomas. Assim, inesperadamente descobrimos uma nova técnica motora de defesa,
ou (como podemos dizer nesse caso com menos exatidão) de repressão.
A segunda dessas técnicas que estamos começando
a descrever pela primeira vez, a do isolamento, é peculiar à neurose obsessiva.
Ela também se verifica na esfera motora. Quando algo desagradável aconteceu ao
paciente ou quando ele próprio fez algo que tem um significado para sua
neurose, ele interpola um intervalo durante o qual nada mais deve acontecer -
durante o qual não deve perceber nem fazer nada. Esse comportamento, que parece
estranho à primeira vista, logo se observa como tendo relação com a repressão.
Sabemos que na histeria é possível provocar uma experiência traumática a ser
dominada pela amnésia. Na neurose obsessiva isto pode muitas vezes não ser
alcançado: a experiência não é esquecida, mas em vez disso, é destituída de seu
afeto, e suas conexões associativas são suprimidas ou interrompidas, de modo
que permanece como isolada, não sendo reproduzida nos processos comuns do
pensamento. O efeito desse isolamento é o mesmo que o efeito da repressão com
amnésia. Essa técnica, então, é reproduzida nos isolamentos da neurose
obsessiva, recebendo ao mesmo tempo reforço motor para finalidades mágicas. Os
elementos que são mantidos à parte dessa forma são precisamente aqueles que são
da mesma classe de forma associativa. O isolamento motor destina-se a assegurar
uma interrupção da ligação no pensamento. O fenômeno normal de concentração
proporciona um pretexto para essa espécie de procedimento neurótico: o que nos
parece importante à guisa de uma impressão ou de um trabalho não deve sofrer
ainterferência das reivindicações simultâneas de quaisquer outros processos ou
atividades mentais. Mas até mesmo uma pessoa normal utiliza a concentração a
fim de afastar não somente o que é irrelevante ou destituído de importância,
mas também, antes de tudo, o que é inadequado porque é contraditório. Ela fica
muito perturbada por aqueles elementos que em certa ocasião eram da mesma
classe, mas que foram desintegrados no curso do desenvolvimento dessa pessoa -
como, por exemplo, por manifestações da ambivalência do seu complexo paterno em
sua relação com Deus, ou por impulsos vinculados a seus órgãos excretores em
suas emoções de amor. Assim, no curso normal da coisas, o ego tem grande dose
de trabalho de isolamento a executar em sua função de orientar a corrente de
pensamento. E, como sabemos, somos obrigados, ao executar nossa técnica analítica,
a treiná-lo para abandonar por enquanto essa função, eminentemente justificada
como em geral ela é.
Todos verificamos por experiência que é
especialmente difícil para um neurótico obsessivo levar a efeito a regra
fundamental da psicanálise. Seu ego é mais atento e faz isolamentos mais
acentuados, provavelmente por causa do alto grau de tensão devido ao conflito
que existe entre seu superego e seu id. Enquanto o neurótico está empenhado em
pensar, seu ego tem de manter muita coisa afastada - a intrusão de fantasias
inconscientes e a manifestação de tendências ambivalentes. Ele não deve
relaxar, mas está constantemente preparado para uma luta. Ele fortifica essa
compulsão a concentrar e a isolar mediante a ajuda dos atos mágicos de
isolamento que, sob a forma de sintomas, se desenvolvem, passando a ser tão
dignos de nota e a ter tanta importância prática para o paciente, mas que são,
naturalmente, inúteis em si e que têm a natureza de cerimoniais.
Mas nesse esforço para impedir associações e
ligações de pensamento, o ego está obedecendo a uma das ordens mais antigas e
fundamentais da neurose obsessiva, o tabu de tocar. Se perguntarmos a nós
mesmos por que a evitação do tocar, do contato ou do contágio deve desempenhar
papel relevante nessa neurose e deve tornar-se o tema de complicados sistemas,
a resposta é que o toque e o contato físico são a finalidade imediata da
catexias objetais agressivas e amorosas. Eros deseja o contato porque se
esforça por tornar o ego e o objeto amado um só, por abrir todas as barreiras
espaciais entre eles. Mas também a destrutividade, que (antes da invenção de
armas de longo alcance) só poderia efetivar-se de perto, deve pressupor contato
físico,em engalfinhamento. ‘Tocar’ uma mulher tornou-se um eufemismo para
utilizá-la como um objeto sexual. Não ‘tocar’ os órgãos genitais é a expressão
empregada para proibir a satisfação auto-erótica. Visto que a neurose obsessiva
começa por perseguir o toque erótico e depois, após ter-se verificado a
regressão, passa a perseguir o toque erótico à guisa de agressividade,
depreende-se que nada é tão fortemente proscrito nessa doença como o tocar, nem
tão bem adequado para tornar-se o ponto central de um sistema de proibições.
Mas isolar é remover a possibilidade de contato; é um método de evitar que uma
coisa seja tocada de qualquer maneira. E quando um neurótico isola uma
impressão ou uma atividade interpolando um intervalo, ele está deixando que se
compreenda simbolicamente que ele não permitirá que seus pensamentos sobre
aquela impressão ou atividade entrem em contato associativo com outros
pensamentos.
Isto é até onde nos levam nossas investigações
sobre a formação de sintomas. Quase não vale a pena resumi-las, pois os
resultados que proporcionaram são escassos e incompletos, e quase nada nos
revelam que já não saibamos. Seria infrutífero voltar nossa atenção para a
formação de sintomas em outras perturbações além das fobias, histeria de
conversão e neurose obsessiva, porquanto muito pouco se sabe a respeito das
mesmas. Mas ao passarmos em revista essas três neuroses em conjunto somos
levados a um problema muito sério, cuja consideração não pode ser mais
postergada. Todas as três têm como resultado a destruição do complexo de Édipo;
e em todas as três a força motora da oposição do ego é, acreditamos, o medo da
castração. Contudo, é somente nas fobias que esse medo aflora e é reconhecido.
O que lhe aconteceu nas outras duas neuroses? Como o ego poupou a si mesmo esse
medo? O problema se agrava quando recordamos a possibilidade, já mencionada, de
que a ansiedade surja diretamente, por uma espécie de fermentação, de uma
catexia libidinal, cujos processos foram perturbados. Além disso, é
absolutamente certo que o medo da castração é a única força motora da repressão
(ou defesa)? Se pensarmos nas neuroses em mulheres estamos destinados a duvidar
disso, pois embora possamos certamente estabelecer nelas a presença de um
complexo de castração, dificilmente podemos falar com propriedade em ansiedade
de castração onde a castração já se verificou.
VII
Voltemos novamente a fobias infantis de
animais, pois, quando tudo tiver sido dito e feito, nós as compreenderemos
melhor do que quaisquer outros casos. Nas fobias animais, então, o ego tem de
opor uma catexia de objeto libidinal que provém do id - uma catexia que
pertence ou ao complexo de Édipo positivo ou ao negativo - porque acredita que
lhe ceder lugar acarretaria o perigo da castração. Essa questão já foi
examinada, mas ainda permanece um ponto duvidoso a esclarecer. No caso de
‘Little Hans’ - isto é, no caso de um complexo de Édipo positivo - foi sua
ternura pela mãe ou foi sua agressividade para com o pai que convocou a defesa
pelo ego? Na prática não parece fazer diferença alguma, mormente quando cada
conjunto de sentimentos implica o outro; mas a pergunta tem um interesse
teórico, visto ser somente o sentimento de afeição pela Mãe que pode contar
como um sentimento puramente erótico. O impulso agressivo flui principalmente
do instinto destrutivo; sempre acreditamos que em uma neurose é contra as exigências
da libido e não contra as de qualquer outro instinto que o ego se está
defendendo. De fato, sabemos que depois de a fobia de ‘Hans’ ter sido formada,
sua terna ligação com sua mãe pareceu desaparecer, havendo sido totalmente
eliminada pela repressão, enquanto a formação do sintoma (a formação
substitutiva) ocorreu em relação aos seus impulsos agressivos. No ‘Wolf Man’ a
situação foi mais simples. O impulso que foi reprimido - sua atitude feminina
em relação ao pai - foi genuinamente erótica; e foi em relação a esse impulso
que a formação de seus sintomas se verificou.
É quase humilhante que, após trabalharmos por
tanto tempo, ainda estejamos tendo dificuldade para compreender os fatos mais
fundamentais. Mas decidimos nada simplificar e nada ocultar. Se não
conseguirmos ver as coisas claramente, pelo menos veremos claramente quais são
as obscuridades. O que nos está prejudicando aqui é evidentemente algum
obstáculo no desenvolvimento da nossa teoria dos instintos. Começamos por
traçar a organização da libido através de suas fases sucessivas - desde a fase
oral, através da anal-sádica, até a genital - e, ao fazê-lo, colocamos todos os
componentes do instinto sexual no mesmo pé de igualdade. Depois pareceu que o
sadismo era o representante de outro instinto, que estava oposto a Eros. Esse
novo ponto de vista, de que os instintos se enquadram em dois grupos, parece
explodir a construção mais antiga das fases sucessivas da organização
libidinal. Mas não temos de explorar um novo terreno a fim de encontrarmos uma
saída da dificuldade. A solução tem estado à mão por muito tempo e estáno fato
de que aquilo com que nos preocupamos praticamente não são impulsos instintuais
puros, mas misturas em várias proporções dos dois grupos de instintos. Se isto
for assim, não há necessidade de rever nossa opinião quanto às organizações da
libido. Uma catexia sádica de um objeto também pode legitimamente reivindicar
tratamento como uma catexia libidinal; e um impulso agressivo contra o pai pode
do mesmo modo ficar sujeito a repressão como um impulso terno para com a mãe.
Não obstante, teremos em mente, para consideração futura, a possibilidade de
que a repressão seja um processo que possui uma relação especial com a
organização genital da libido e que o ego recorra a outros métodos de defesa
quando tem de proteger-se contra a libido em outros níveis de organização.
Continuando: um caso como o de ‘Little Hans’ não nos permite chegar a qualquer
conclusão clara. É verdade que nele um impulso agressivo foi eliminado pela
repressão, mas isto aconteceu após ter sido alcançada a organização genital.
Dessa vez não perderemos de vista o papel
desempenhado pela ansiedade. Dissemos que logo que o ego reconhece o perigo de
castração dá o sinal de ansiedade e inibe através da instância do prazer-desprazer
(de uma maneira que ainda não podemos compreender) o iminente processo catexial
no id. Ao mesmo tempo forma-se a fobia. E agora a ansiedade de castração é
dirigida para um objeto diferente e expressa de forma distorcida, de modo que o
paciente teme, não ser castrado pelo pai, mas ser mordido por um cavalo ou
devorado por um lobo. Essa formação substitutiva apresenta duas vantagens
óbvias. Em primeiro lugar, evita um conflito devido à ambivalência (pois o pai
foi um objeto amado, também) e, em segundo, permite ao ego deixar de gerar
ansiedade, pois a ansiedade que pertence a uma fobia é condicional: ela só
surge quando o objeto dela é percebido - é com razão, visto que é somente então
que a situação de perigo se acha presente. Não é preciso ter medo de ser
castrado por um pai que não se encontra ali. Por outro lado, uma pessoa não
pode livrar-se de um pai; ele pode aparecer sempre que deseja. Mas se for
substituído por um animal, tudo o que se tem de fazer é evitar a vista do mesmo
- isto é, sua presença - a fim de ficar livre do perigo e da ansiedade. ‘Little
Hans’, portanto, impôs uma restrição a seu ego. Ele produziu a inibição de não
sair de casa, de modo a não encontrar qualquer cavalo. Para o jovem russo foi
ainda mais fácil, pois quase não lhe era uma privação deixar de olhar mais para
um livro de gravuras. Se sua travessa irmã não tivesse continuado a mostra-lhe
o livro com a fotografia do lobo de pé, ele teria sido capaz de sentir-se livre
do seu medo.Em ocasião anterior declarei que as fobias têm a natureza de uma
projeção devido ao fato de que substituem um perigo interno instintual por
outro externo e perceptual. A vantagem disto é que o indivíduo pode proteger-se
contra um perigo externo, dele fugindo e evitando a percepção do mesmo, ao passo
que é inútil fugir de perigos que surgem de dentro. Essa minha afirmação não
foi incorreta, mas não penetrou a superfície das coisas, pois uma exigência
instintual não é, afinal de contas, perigosa em si; somente vem a ser assim,
visto que acarreta um perigo externo real, o perigo de castração. Dessa forma,
o que acontece numa fobia, em último recurso, é substituído por outro. O ponto
de vista que numa fobia o ego é capaz de fugir à ansiedade por meio de evitação
ou de sintomas inibitórios ajusta-se muito bem à teoria de que a ansiedade é
apenas um sinal afetivo e de que não ocorreu nenhuma alteração na situação
econômica.
A ansiedade sentida nas fobias de animais é,
portanto, uma reação afetiva por parte do ego ao perigo; e o perigo que está
sendo assinalado dessa forma é o perigo de castração. Essa ansiedade não difere
em aspecto algum da ansiedade realística que o ego normalmente sente em
situações de perigo, salvo que seu conteúdo permanece inconsciente e apenas se
forma consciente sob a forma de uma distorção.
O mesmo demonstrará ser verdade, penso eu,
quanto a fobia de adultos, embora o material sobre o qual trabalham suas
neuroses seja muito mais abundante e haja alguns adicionais na formação dos
sintomas. Fundamentalmente, a posição é idêntica. O paciente agorafóbico impõe
uma restrição a seu ego a fim de escapar a um certo perigo instintual - a
saber, o perigo de ceder a seus desejos eróticos, pois se o fizesse, o perigo
de ser castrado, ou algum perigo semelhante, mais uma vez seria evocado como se
fosse em sua infância. Posso citar, à guisa de exemplo, o caso de um jovem que
se tornou agorafóbico porque temia ceder às solicitações de prostitutas e delas
contrair uma infecção sifilítica como castigo.
Estou bem cônscio de que grande número de casos
apresenta uma estrutura mais complicada e de que muitos outros impulsos
instintuais reprimidos podem entrar numa fobia. Mas eles são apenas correntes
tributárias que em sua maior parte se ajustaram à corrente principal da neurose
numa fase ulterior. A sintomalogia da agorafobia torna-se complicada pelo fato
deque o ego não se limita a fazer uma renúncia. A fim de furtar-se à situação
de perigo faz mais: em geral efetua uma regressão temporal à infância (em casos
extremos, a uma época em que o indivíduo se encontrava no ventre da mãe e se
protegia contra os perigos que o ameaçam no presente). Tal regressão torna-se
agora uma condição cuja realização isenta o ego de fazer uma renúncia. Por
exemplo, um paciente agorafóbico pode ser capaz de caminhar na rua contanto que
esteja acompanhado, como uma criancinha, por alguém que ele conhece e em quem
confia; ou, pelo mesmo motivo, poderá ser capaz de sair sozinho, contanto que
permaneça a uma certa distância de sua própria casa e não vá a lugares que não
lhe sejam familiares ou onde as pessoas não o conheçam. O que essas
estipulações são, isto dependerá, em cada caso, dos fatores infantis que o
dominam através de sua neurose. A fobia de estar sozinho não é ambígua em seu
significado, independentemente de qualquer regressão infantil: ela é, em última
análise, um esforço para evitar a tentação de entregar-se à masturbação
solitária. A regressão infantil naturalmente só pode ocorrer quando o indivíduo
não é mais uma criança.
Uma fobia geralmente se estabelece após um
primeiro ataque de ansiedade ter sido experimentado em circunstâncias
específicas, tais como na rua, em um trem ou em solidão. A partir desse ponto a
ansiedade é mantida em interdição pela fobia, mas ressurge sempre que a
condição não pode ser realizada. O mecanismo da fobia presta bons serviços como
meio de defesa e tende a ser muito estável. Uma continuação da luta defensiva,
sob a forma de uma luta contra o sintoma, ocorre com freqüência mas não
invariavelmente.
O que aprendemos sobre a ansiedade nas fobias é
também aplicável a neuroses obsessivas. Nesse sentido não nos é difícil colocar
as neuroses obsessivas em pé de igualdade com as fobias. Nas primeiras, a mola
de toda a formação de sintomas ulteriores é claramente o medo que o ego tem de seu
superego. A situação de perigo da qual o ego deve fugir é a hostilidade do
superego. Não há aqui qualquer vestígio de projeção; o perigo está inteiramente
internalizado. Mas se perguntarmos a nós mesmos o que é que o ego teme do
superego, não podemos deixar de pensar que o castigo ameaçado pelo segundo deve
ser uma extensão do castigo de castração. Da mesmaforma que o pai se tornou
despersonalizado sob a forma do superego, o medo da castração, a qual se
encontra nas mãos dele, se transformou numa ansiedade social ou moral
indefinida. Mas essa ansiedade está oculta. O ego foge dela obedientemente,
executando as ordens, precauções e penitências que lhe foram inculcadas. Se ele
foi impedido de assim agir, é imediatamente dominado por um sentimento
extremamente aflitivo de mal-estar, que pode ser considerado como um
equivalente de ansiedade e que os próprios pacientes comparam com essa última.
A conclusão a que chegamos, portanto, é esta. A
ansiedade é uma reação a uma situação de perigo. Ela é remediada pelo ego que
faz algo a fim de evitar essa situação ou para afastar-se dela. Pode-se dizer
que se criam sintomas de modo a evitar a geração de ansiedade. Mas isto não
atinge uma profundidade suficiente. Seria mais verdadeiro dizer que se criam
sintomas a fim de evitar uma situação de perigo cuja presença foi assinalada
pela geração de ansiedade. Nos casos que examinamos, o perigo em causa foi o de
castração ou de algo remontável à castração.
Se a ansiedade for uma reação do ego ao perigo,
seremos tentados a considerar as neuroses traumáticas, as quais tão amiúde se
seguem a uma fuga iminente da morte, como um resultado direto de um medo da
morte (ou medo pela vida) e a afastar de nossas mentes a questão da castração e
as relações dependentes do ego,ver em [[1] e [2]]. A maior parte daqueles que
observaram as neuroses traumáticas que se verificaram durante a última guerra
assumiram essa posição e triunfalmente anunciaram que estava prestes a chegar a
prova de que uma ameaça ao instinto de autopreservação poderia por si só
produzir uma neurose, sem qualquer mescla de fatores sexuais e sem exigir
qualquer das complicadas hipóteses da psicanálise. De fato, deve-se lamentar
muito que não haja uma única análise de valor de uma neurose traumática. E é de
lamentar-se, não porque tal análise fosse contradizer a importância etiológica
da sexualidade - pois qualquer contradição dessa natureza de há muito foi
eliminada pela introdução do conceito de narcisismo,que põe a catexia libidinal
do ego em harmonia com as catexias objetais e ressalta o caráter libidinal do
instinto de autopreservação -, mas porque, na ausência de quaisquer análises
dessa espécie, perdemos uma oportunidade preciosíssima de tirar conclusões
decisivas sobre as relações entre a ansiedade e a formação de sintomas. Em
vista de tudo o que sabemos acerca da estrutura das neuroses relativamente
simples da vida cotidiana, parecia altamente improvável que uma neurose
chegasse à existência apenas por causa da presença objetiva do perigo, sem
qualquer participação dos níveis mais profundos do aparelho mental. Mas o
inconsciente parece nada conter que pudesse dar qualquer conteúdo ao nosso
conceito da aniquilamento da vida. A castração pode ser retratada com base na
experiência diária das fezes que estão sendo separadas do corpo ou com base na
perda do seio da mãe no desmame. Mas nada que se assemelhe à morte jamais pode
ter sido experimentado; ou se tiver, como no desmaio, não deixou quaisquer
vestígios observáveis atrás de si. Estou inclinado, portanto, a aderir ao ponto
de vista de que o medo da morte deve ser considerado como análogo ao medo da
castração e que a situação à qual o ego está reagindo é de ser abandonado pelo
superego protetor - os poderes do destino -, de modo que ele não dispõe mais de
qualquer salvaguarda contra todos os perigos que o cercam. Além disso, deve-se
recordar que nas experiências que conduzem a uma neurose traumática o escudo
protetor contra os estímulos externos é desfeito e quantidades excessivas de
excitação incidem sobre o aparelho mental,ver em [[1]]; de forma que temos aqui
uma segunda possibilidade - a de que a ansiedade está não apenas emitindo
sinais como um afeto, mas também sendo recriada a partir das condições
econômicas da situação.
A afirmação que acabo de fazer, no sentido de
que o ego foi preparado para esperar a castração, tendo sofrido perdas de
objeto constantemente repetidas, coloca a questão da ansiedade sob nova luz.
Até aqui consideramo-la como um final afetivo de perigo; mas agora, visto que o
perigo é tão amiúde o de castração, ele nos parece uma reação a uma perda, uma
separação. Mesmo se surgir grande número de considerações que vão contra esse
ponto de vista, não podemos senão ficar surpreendidos por uma correlação muito
notável. A primeira experiência de ansiedade pela qual passa um indivíduo (no
caso de seres humanos, seja como for) é o nascimento, e, objetivamente falando,
o nascimento é uma separação da mãe. Poderia sercomparado a uma castração da
mãe (equiparando a criança a um pênis). Ora, seria muito satisfatório se a
ansiedade, como símbolo de uma separação, devesse ser repetida em toda ocasião
subseqüente na qual uma separação ocorresse. Mas infelizmente estamos impedidos
de fazer uso dessa correlação pelo fato de que o nascimento não é experimentado
subjetivamente como uma separação da mãe, visto que o feto, sendo uma criatura
completamente narcísica, está totalmente alheio à sua existência como um
objeto. Outro
argumento adverso é que sabemos quais são as
reações afetivas a uma separação: são a dor e o luto, e não a ansiedade.
Incidentalmente, pode-se recordar que ao examinarmos a questão do luto também
deixamos de descobrir por que deve ser uma coisa tão dolorosa.
VIII
É chegada a ocasião de fazer uma pausa e
meditar. O que claramente desejamos é encontrar algo que nos diga o que é
realmente a ansiedade, algum critério que nos permita distinguir dos falsos os
verdadeiros enunciados a respeito dela. Mas isto não é fácil conseguir. A
ansiedade não é assim um assunto tão simples. Até agora a nada chegamos, a não
ser a pontos de vista contraditórias sobre ela, nenhum dos quais pode, diante
de uma opinião destituída de preconceito, ter preferência sobre os outros.
Proponho, portanto, adotar um procedimento diferente. Sugiro que se reúnam, de
maneira bem imparcial, todos os fatos que sabemos sobre a ansiedade, sem
esperar chegar a uma nova síntese.
A ansiedade então é, em primeiro lugar, algo
que se sente. Denominamo-la de estado afetivo, embora também ignoremos o que
seja um afeto. Como um sentimento, a ansiedade tem um caráter muito acentuado
de desprazer. Mas isto não é o todo de sua qualidade. Nem todo desprazer pode
ser chamado de ansiedade, pois há outros sentimentos, tais como a tensão, a dor
ou o luto, que têm o caráter de desprazer. Assim, a ansiedade deve ter outros
traços distintivos além dessa qualidade de desprazer. Podemos conseguir
compreender as diferenças entre esses vários afetos desagradáveis?
Seja como for, podemos observar uma ou duas
coisas sobre o sentimento de ansiedade. Seu caráter de desprazer parece ter um
aspecto próprio - algo não muito óbvio, cuja presença é difícil de provar e
que, contudo, ali se encontra com toda probabilidade. Mas além de ter essa
característica especial difícil de isolar, observamos que a ansiedade se faz
acompanhar de sensações físicas mais ou menos definidas que podem ser referidas
a órgãos específicos do corpo. Como não estamos interessados aqui na filosofia
da ansiedade, contentar-nos-emos em mencionar alguns representantes dessas
sensações. Os mais claros e mais freqüentes são os ligados aos órgãos
respiratórios e ao coração. Eles proporcionam provas de que as inervações
motoras - isto é, processos de descarga - desempenham seu papel no fenômeno
geral da ansiedade.
A análise dos estados de ansiedade, portanto,
revela a existência de (1) um caráter específico de desprazer, (2) atos de
descarga e (3) percepções desses atos. Os dois últimos pontos indicam ao mesmo
tempo uma diferença entre estados de ansiedade e outros estados semelhantes,
como os de luto edor. Os últimos não têm qualquer manifestação motora; ou se
têm, a manifestação não constitui parte integrante de todo o estado, mas se
distingue dela como sendo ou o resultado da mesma ou uma reação a ela. A
ansiedade, portanto, é um estado especial de desprazer com atos de descarga ao
longo de trilhas específicas. De conformidade com nossos pontos de vista gerais
devemos estar inclinados a pensar que a ansiedade se acha baseada em um aumento
de excitação que, por um lado, produz o caráter de desprazer e, por outro, encontra
alívio através dos atos de descarga já mencionados. Mas um relato puramente
fisiológico dessa natureza quase não nos satisfará. Somos tentados a presumir a
presença de um fator histórico que une firmemente as sensações de ansiedade e
suas inervações. Presumimos, em outras palavras, que um estado de ansiedade é a
reprodução de alguma experiência que encerrava as condições necessárias para
tal aumento de excitação e uma descarga por trilhas específicas, e que a partir
dessa circunstância o desprazer da ansiedade recebe seu caráter específico. No
homem, o nascimento proporciona uma experiência prototípica desse tipo, e
ficamos inclinados, portanto, a considerar os estados de ansiedade como uma
reprodução do trauma do nascimento. [Ver em [1]]
Isto não implica que a ansiedade ocupa uma
posição excepcional entre os estados afetivos. Na minha opinião, os outros
afetos são também reproduções de experiências muito antigas, talvez mesmo
pré-individuais, de importância vital; e devo estar inclinado e considerá-las
como ataques histéricos universais, típicos e inatos, comparados com os ataques
recentes e individualmente adquiridos que ocorrem em neuroses histéricas e cuja
origem e significado como símbolos mnêmicos foram revelados pela análise. Seria
muito conveniente, como é natural, sermos capazes de demonstrar a verdade desse
ponto de vista em um grande número desses afetos - uma coisa que ainda está
muito longe de ser o caso.
A opinião de que a ansiedade remonta ao fato do
nascimento levanta objeções imediatas que têm de ser atendidas. Pode-se
argumentar que a ansiedade é uma reação que, com toda probabilidade, é comum a
todoorganismo, certamente todo organismo de ordem superior, ao passo que o
nascimento é experimentado apenas pelos mamíferos, sendo de duvidar se até
mesmo em todos eles o nascimento tem o significado de um trauma. Portanto, pode
haver ansiedade sem o protótipo de nascimento. Mas essa objeção leva-nos além
da barreira que divide a psicologia da biologia. Pode ser que, precisamente
porque a ansiedade tem uma função biológica indispensável a cumprir como reação
a um estado de perigo, seja diferentemente engendrada em diferentes organismos.
Não sabemos, além disso, se a ansiedade envolve as mesmas sensações e
inervações nos organismos muito afastados do homem, como faz na próprio homem.
Assim, não há aqui qualquer bom argumento contra o ponto de vista de que, no
homem, a ansiedade seja moldada no processo do nascimento.
Se a estrutura e a origem da ansiedade forem
conforme o descrito, a pergunta que se segue é: qual a função da ansiedade e em
que ocasiões se reproduz? A resposta parece ser óbvia e convincente: a
ansiedade surgiu originalmente como uma reação a um estado de perigo e é
reproduzida sempre que um estado dessa espécie se repete.
Essa resposta, contudo, levanta outras
considerações. As inervações envolvidas no estado original de ansiedade
provavelmente tinham um significado e finalidade, da mesma forma que os
movimentos musculares que acompanham um primeiro ataque histérico. A fim de
compreender um ataque dessa natureza, tudo o que se tem a fazer é procurar a
situação na qual os movimentos em questão formavam parte de uma ação apropriada
e aconselhável. Dessa forma, no nascimento é provável que a inervação, ao ser
dirigida para os órgãos respiratórios, esteja preparando o caminho para a
atividade dos pulmões, e, ao acelerar as pulsações do coração, esteja ajudando
a manter o sangue isento de substâncias tóxicas. Naturalmente, quando o estado
de ansiedade é reproduzido depois como um afeto, faltar-lhe-á tal oportunidade,
da mesma forma como às repetições de um ataque histérico. Quando o indivíduo é
colocado numa nova posição de perigo, talvez lhe seja bem desaconselhável
reagir com um estado de ansiedade (que é uma reação a um perigo anterior) em vez
de iniciar uma reação apropriada ao perigo atual. Mas seu comportamento pode
tornar-se adequado mais uma vez, se a situação de perigo for reconhecida à
medida que se aproximar e se for assinalada por uma irrupção de ansiedade.
Nesse caso ele pode imediatamente livrar-se da ansiedade, recorrendo a medidas
mais adequadas. Assim, podemos ver que há duas formas como a ansiedade pode
surgir: de uma maneira inadequada, quando tenha uma nova situação de perigo, ou
de uma maneira conveniente, a fim de dar um sinal e impedir que tal situação
ocorra.Mas o que é um ‘perigo’? No ato do mecanismo há um verdadeiro perigo
para a vida. Sabemos o que isso significa objetivamente; mas num sentido
psicológico nada nos diz absolutamente. O perigo do nascimento não tem ainda
qualquer conteúdo psíquico. Não podemos possivelmente supor que o feto tenha
qualquer espécie de conhecimento de que existe a possibilidade de sua vida ser
destruída. Ele somente pode estar cônscio de alguma grande perturbação na
economia de sua libido narcísica. Grandes somas de excitação nele se acumulam,
dando margem a novas espécies de sentimentos de desprazer, e alguns órgãos
adquirem maior catexia, prenunciando assim a catexia objetal que logo se
estabelecerá. Que elementos em tudo isso são utilizados como sinal de uma
‘situação de perigo’?
Infelizmente pouquíssimo se conhece acerca da
composição mental de um recém-nascido para tornar possível uma resposta direta.
Não posso sequer garantir a validade da descrição que acabo de apresentar. É
fácil dizer que o bebê repetirá sua emoção de ansiedade em toda situação que
recorde o evento do nascimento. O importante é saber o que recorda o evento e o
que é recordado.
Tudo o que podemos fazer é examinar as ocasiões
nas quais crianças de colo ou um pouco mais velhas revelam disposição de
produzir ansiedade. Em seu livro sobre o trauma do nascimento, Rank (1924) fez
uma tentativa firme de estabelecer uma relação entre as primeiras fobias das
crianças e as impressões nelas causadas pelo evento do nascimento. Mas não
penso que ele tenha sido bem-sucedido. Sua teoria está sujeita a duas objeções.
Em primeiro lugar, ele presume que a criança recebeu na ocasião do nascimento
certas impressões sensoriais, em particular de natureza visual, cuja renovação
pode lembrar à sua memória o trauma do nascimento e assim evocar uma reação de
ansiedade. Essa suposição é bem infundada e extremamente improvável. Não é
crível que uma criança retenha coisas além de sensações tácteis e gerais
relacionadas com o processo de nascimento. Se, posteriormente, as crianças
revelam medo de animaizinhos que desaparecem em buracos ou deles saem, essa
reação, de acordo com Rank, se deve ao fato de elas perceberem uma analogia.
Mas é uma analogia da qual não podem estar cônscias. Em segundo lugar, ao
considerar essas situações de ansiedade posteriores, Rank repisa, conforme
melhor lhe convém, ora a lembrança que a criança tem de sua feliz existência
intra-uterina, ora sua lembrança de perturbação traumática que interrompeu
aquela existência - o que deixa a porta aberta para a interpretação arbitrária.
Existem, além disso, certos exemplos de ansiedade infantil que contrariam
diretamente sua teoria. Quando, por exemplo, uma criança é deixada sozinha no
escuro, seria de esperar-seque ela, de conformidade com seu ponto de vista,
recebesse de bom grado o restabelecimento da situação intra-uterina: contudo é
precisamente em tais ocasiões que a criança reage com ansiedade. E se isto for
explicado afirmando-se que a criança está sendo lembrada da interrupção que o
evento do nascimento causou em sua felicidade intra-uterina, torna-se
impossível fechar os olhos por mais tempo ao caráter exagerado de tais
explicações.
Sou impelido à conclusão de que as primeiras
fobias da infância não podem ser diretamente rastreadas em impressões do
nascimento e que até agora não foram explicadas. Um certo preparo para a
ansiedade se acha sem dúvida presente na criança de colo. Mas esse preparo para
a ansiedade, em vez de estar em seu ponto máximo logo após o nascimento e então
lentamente decrescer, não surge senão depois, à medida que se processa o
desenvolvimento mental, e permanece durante um certo período da infância. Se
essas primeiras fobias persistirem além de um certo período da infância,
estamos inclinados a suspeitar da presença de uma perturbação neurótica, embora
não seja absolutamente claro qual seja sua relação com as indubitáveis neuroses
que surgem posteriormente na infância.
Só algumas das manifestações de ansiedade nas
crianças nos são compreensíveis, e devemos limitar nossa atenção às mesmas,
Ocorrem, por exemplo, quando uma criança está sozinha, ou no escuro, ou quando
se encontra com uma pessoa desconhecida em vez de uma com a qual ela está
habituada - como a mãe dela. Esses três exemplos podem ser reduzidos a uma
condição única - a saber, a de sentir falta de alguém que é amado e de quem se
sente saudade. Mas aqui, penso eu, temos a chave de uma compreensão da
ansiedade e de uma reconciliação das contradições que parecem assediá-la.
A imagem mnêmica que a criança tem da pessoa
pela qual ela sente anseio é sem dúvida intensamente catexizada, provavelmente
de forma alucinatória inicialmente. Mas isto não tem qualquer efeito, parecendo
agora que o anseio se transforma em ansiedade. Essa ansiedade tem toda a
aparência de ser uma expressão do sentimento da criança em sua desorientação,
como se em seu estado ainda muito pouco desenvolvido ela não soubesse como
melhor lidar com sua catexia de anseio. Aqui a ansiedade aparece como una
reação à perda sentida do objeto e lembramo-nos de imediato do fato de que
também a ansiedade de castração constitui o medo de sermos separados deum
objeto altamente valioso, e de que a mais antiga ansiedade - a ‘ansiedade
primeva’ do nascimento - ocorre por ocasião de uma separação da mãe.
Mas a reflexão de um momento nos leva além
dessa questão da perda de objeto. A razão por que a criança de colo deseja
perceber a presença de sua mãe é somente porque ela já sabe por experiência que
esta satisfaz todas as suas necessidades sem delongas. A situação, portanto,
que ela considera como um ‘perigo’ e contra a qual deseja ser protegida é a de
não satisfação, de uma crescente tensão devida à necessidade, contra a qual ela
é inerme. Penso que se adotarmos esse ponto de vista todos os fatos se enquadrarão
nos seus lugares. A situação de não satisfação na qual as quantidades de
estímulo se elevam a um grau desagradável sem que lhes seja possível ser
dominadas psiquicamente ou descarregadas deve, para a criança, ser análoga à
experiência de nascer - deve ser uma repetição da situação de perigo. O que
ambas as situações têm em comum é a perturbação econômica provocada por um
acúmulo de quantidades de estímulos que precisam ser eliminadas. Em ambos os
casos a reação de ansiedade se estabelece. (Essa reação é ainda conveniente na
criança de colo, pois a descarga, sendo dirigida para o aparelho respiratório e
os músculos vocais, agora convoca a mãe para ela, logo que ativou os pulmões do
recém-nascido para livrar-se dos estímulos internos.) É desnecessário supor que
a criança traz mais alguma coisa com ela da época do seu nascimento do que essa
maneira de indicar a presença do perigo.
Quando a criança houver descoberto pela
experiência que um objeto externo perceptível pode pôr termo à situação
perigosa que lembra o nascimento, o conteúdo do perigo que ela teme é deslocado
da situação econômica para a condição que determinou essa situação, a saber, a
perda de objeto. É a ausência da mãe que agora constitui o perigo, e logo que
surge esse perigo a criança dá o sinal de ansiedade, antes que a temida
situação econômica se estabeleça. Essa mudança constitui o primeiro grande
passo à frente na providência adotada pela criança para a sua autopreservação,
representando ao mesmo tempo uma transição do novo aparecimento automático e
involuntário da ansiedade para a reprodução intencional da ansiedade como um
sinal de perigo.
Nesses dois aspectos, como um fenômeno
automático é um sinal de salvação, verifica-se que a ansiedade é um produto do
desamparo mental da criança, o qual é um símile natural de seu desamparo
biológico. A impressionante coincidência como a ansiedade do bebê recém-nascido
e a ansiedade da criança de colo são condicionadas pela separação da mãe não
precisa ser explicada em moldes psicológicos. Essas explicação podeser
apresentada simples e suficientemente de forma biológica, porquanto, da mesma
maneira que a mãe originalmente satisfez todas as necessidades do feto através
do aparelho do próprio corpo dela, assim agora, após o nascimento daquele, ela
continua a fazê-lo, embora parcialmente por outros meios. Há muito mais
continuidade entre a vida intra-uterina e a primeira infância do que a
impressionante censura do ato do nascimento nos teria feito acreditar. O que
acontece é que a situação biológica da criança como feto é substituída para ela
por uma relação de objeto psíquica quanto a sua mãe. Mas não nos devemos
esquecer de que durante sua vida intra-uterina a mãe era um objeto para o feto,
e que naquela ocasião não havia absolutamente objetos. É óbvio que nesse
esquema de coisas não há lugar para a ab-reação do trauma do nascimento. Não
podemos achar que a ansiedade tenha qualquer outra função, afora a de ser um
sinal para a evitação de uma situação de perigo.
O significado da perda de objeto como um
determinante da ausência se estende consideravelmente além desse ponto, pois a
transformação seguinte da ansiedade, a saber, a ansiedade de castração, que
pertence à fase fálica, constitui também medo da separação e está assim ligada
ao mesmo determinante. Nesse caso, o perigo de se separar dos seus órgãos
genitais. Ferenczi [1925] traçou, de maneira bem correta, penso eu, uma nítida
linha de ligação entre esse medo e os medos contidos nas situações mais antigas
de perigo. O alto grau de valor narcísico que o pênis possui pode valer-se do
fato de que o órgão é uma garantia para seu possuidor de que este pode ficar
mais uma vez unido à mãe - isto é, a um substituto dela - no ato da copulação.
O ficar privado disto equivale a uma renovada separação dela, e isto por sua
vez significa ficar desamparadamente exposto a uma tensão desagradável, devido
à necessidade instintual, como foi o caso no nascimento. Mas a necessidade cujo
aumento se teme é agora uma necessidade específica que pertence à libido
genital, e que não é mais indeterminada, como o foi no período da infância.
Pode-se acrescentar que para um homem que seja impotente (isto é, que seja
inibido pela ameaça de castração) o substituto da copulação é uma fantasia de
retorno ao ventre da mãe. Seguindo a linha de pensamento de Ferenczi, podemos
dizer que o homem em causa, havendo tentado provocar seu retorno ao ventre da
mãe, utilizando o órgão genital dele para representá-lo, está agora [em sua
fantasia] substituindo regressivamente aquele órgão por toda a sua pessoa.
O progresso que a criança alcança em seu
desenvolvimento - sua crescente independência, a divisão mais acentuada do seu
aparelho mental em várias instâncias, o advento de novas necessidades - não
pode deixar de exercer influência sobre o conteúdo da situação de perigo. Já
traçamos a mudança desse conteúdo a partir da perda da mãe como objeto até a
castração. A mudança seguinte é causada pelo poder do superego. Com a
despersonalização do agente parental a partir do qual se temia a castração, o
perigo se torna menos definido. A ansiedade de castração se desenvolve em
ansiedade moral - ansiedade social -, não sendo agora tão fácil saber o que é a
ansiedade. A fórmula ‘separação e expulsão da horda’ só se aplica àquela porção
ulterior do superego que se formou com base em protótipos sociais, não só ao
núcleo do superego, que corresponde à instância parental introjetada.
Expressando-o de modo mais geral, o que o ego considera como sendo o perigo e
ao qual reage com um sinal de ansiedade consiste em o superego dever estar com
raiva dele ou puni-lo ou deixar de amá-lo. A transformação final pela qual
passa o medo do superego é, segundo me parece, o medo da morte (ou medo pela
vida), que é um medo do superego projetado nos poderes do destino.
Época houve em que atribuí certa importância ao
ponto de vista de que aquilo que era utilizado como uma descarga de ansiedade
era a catexia que fora retirada no processo de repressão. Hoje isto me parece
quase de nenhuma importância. O motivo disto é que, embora antigamente acreditasse
que a ansiedade, de maneira invariável, surgisse automaticamente por um
processo econômico, minha presente concepção de ansiedade como um sinal emitido
pelo ego a fim de tornar afetiva a instância do prazer-desprazer elimina a
necessidade de considerar o fator econômico. Naturalmente nada há a dizer
contra a idéia de que é precisamente a energia que foi liberada por haver sido
retirada através da repressão que é utilizada pelo ego para provocar o afeto;
porém não é mais de importância alguma qual a parcela de energia que é
empregada para essa finalidade.Ver em [[1].]
Essa nova visão das coisas exige o exame de
outra asserção minha - a saber, que o ego é a sede real da ansiedade. Penso que
essa proposição ainda éválida. Não existe razão alguma para atribuir qualquer
manifestação de ansiedade ao superego; embora a expressão ‘ansiedade do id’
necessitasse de correção, isto seria antes quanto à forma do que quanto ao
fundo. A ansiedade é um estado afetivo e como tal, naturalmente, só pode ser
sentida pelo ego. O id pode ter ansiedade como o ego, pois não é uma
organização e não pode fazer um julgamento sobre situações de perigo. Por outro
lado, muitas vezes acontece ocorrer ou começar a ocorrer processos no id que
fazem com que o ego produza ansiedade. Na realidade, é provável que as primeira
repressões, bem como a maioria das ulteriores, sejam motivadas por uma
ansiedade do ego dessa classe, no tocante a processos específicos do id. Aqui
estamos mais uma vez fazendo uma distinção correta entre dois casos: o caso no
qual ocorre algo no id que ativa uma das situações de perigo para o ego e que o
induz a emitir o sinal de ansiedade para que a inibição se processe, e o caso
no qual uma situação análoga ao trauma do nascimento se estabelece no id,
seguindo-se uma reação automática de ansiedade. Os dois casos podem ser mais
aproximados, se se ressaltar que o segundo corresponde à situação de perigo
mais antiga e original, ao passo que o primeiro corresponde a qualquer um dos
determinantes ulteriores de ansiedade que dela se tenha originado; ou, conforme
aplicado a perturbação com que de fato nos defrontamos, que o segundo caso é
atuante na etiologia das neuroses ‘atuais’, ao passo que o primeiro permanece
típico para o das psiconeuroses.
Vemos, então, que não se trata tanto de
remontarmos aos nossos primeiros achados, mas de pô-los em harmonia com
descobertas mais recentes. Constitui ainda um fato inegável que na abstinência
sexual, na interferência imprópria no curso da excitação sexual, ou se esta for
desviada de ser elaborada psiquicamente, a ansiedade surge diretamente da
libido; em outras palavras, que o ego fica reduzido a um estado de desamparo em
face de uma tensão excessiva devida à necessidade, como ocorreu na situação do
nascimento, e que a ansiedade é então gerada. Mais uma vez aqui, embora o
assunto seja de somenos importância é bem possível que o que encontra descarga
na geração da ansiedade é precisamente o excedente da libido não utilizada.
Como sabemos, uma psiconeurose está especialmente sujeita a desenvolver-se com
base em uma neurose ‘atual’. Isto se afigura como se o ego tivesse tentando
poupar-se à ansiedade, que ele aprendeu a manter em suspensão por algum tempo,
e ligá-la pela formação de sintomas. A análise das neuroses de guerra
traumáticas - expressão que,incidentalmente, abrange grande variedade de
perturbações - provavelmente teria revelado que grande número delas possui
algumas características das neuroses ‘atuais’, ver em [[1]]
Ao descrever a evolução das várias situações de
perigo a partir do seu protótipo, o ato do nascimento, não tive qualquer
intenção de afirmar que cada determinante invalida completamente o precedente.
É verdade que, à medida que continua o desenvolvimento do ego, as situações de
perigo mais antigas tendem a perder sua força e a ser postas de lado, de modo
que podemos dizer que cada período da vida do indivíduo tem seu determinante
apropriado de ansiedade. Assim o perigo de desamparo psíquico é apropriado ao
perigo de vida quando o ego do indivíduo é imaturo; o perigo da perda de
objeto, até a primeira infância, quando ele ainda se acha na dependência de
outros; o perigo de castração, até a fase fálica; e o medo do seu superego, até
o período de latência. Não obstante, todas essas situações de perigo e determinantes
de ansiedade podem resistir lado a lado e fazer com que o ego a elas reaja com
ansiedade num período ulterior ao apropriado; ou, além disso, várias delas
podem entrar em ação ao mesmo tempo. É possível, além disto, que haja uma
relação razoavelmente estreita entre a situação de perigo que seja operativa e
a forma assumida pela neurose resultante.Quando, numa parte anterior desta
apreciação, verificamos que o perigo da castração era de importância em mais de
uma doença, ficamos alerta contra uma superestimativa desse fator, visto que
ele poderia não ser decisivo para o sexo feminino, que indubitavelmente está
mais sujeito a neuroses do que os homens. [Ver [1].] Vemos agora que não há
perigo algum em considerarmos a ansiedade de castração como a única força
motora dos processos defensivos que conduzem à neurose. Indiquei alhures como
meninazinhas, no curso do seu desenvolvimento, são levadas a fazer uma terna
catexia objetal pelo seu complexo de castração. É precisamente nas mulheres que
a situação de perigo da perda de objeto parece ter permanecido mais efetiva.
Tudo que precisamos fazer é proceder a uma ligeira modificação em nossa
descrição do seu determinante de ansiedade, no sentido de que não se trata mais
de sentir a necessidade do próprio objeto ou de perdê-lo, mas de perder o amor
do objeto. Visto não haver qualquer dúvida de que a histeria tem forte
afinidade com a feminilidade, da mesma forma que a neurose obsessiva com a
masculinidade, afigura-se provável que, como um determinante da ansiedade, a
perda do amor desempenha o mesmíssimo papel na histeria que a ameaça da
castração nas fobias e o medo do superego na neurose obsessiva.
IX
O que nos resta agora é considerar a relação
entre a formação de sintomas e a geração de ansiedade.
Parece haver duas opiniões amplamente
sustentadas sobre esse assunto. Uma é que a ansiedade é um sintoma de neurose.
A outra é que existe uma relação muito mais ampla entre as duas.De acordo com a
segunda opinião, os sintomas só se formam a fim de evitar a ansiedade: reúnem a
energia psíquica que de outra forma seria descarregada como ansiedade. Assim
este seria o fenômeno fundamental e o principal problema da neurose.
Que essa segunda opinião é pelo menos em parte
verdadeira é demonstrado por alguns exemplos marcantes. Se um paciente
agorafóbico que tenha sido acompanhado até a rua for ali deixado sozinho, ele
produzirá um ataque de ansiedade. Ou se um neurótico obsessivo for impedido de
lavar as mãos após haver tocado algo, ele se tornará preso de uma ansiedade quase
insuportável. É claro, portanto, que a finalidade e o resultado da condição
imposta de ser acompanhado na rua e que o ato obsessivo de lavar as mãos
consistiam em prevenir irrupções de ansiedade dessa espécie. Nesse sentido,
toda inibição que o ego impõe a si próprio pode ser denominada de sintoma.
Visto que remetemos a geração da ansiedade a
uma situação de perigo, preferiremos dizer que os sintomas são criados a fim de
remover o ego de uma situação de perigo. Se se impedir que os sintomas sejam
formados, o perigo de fato se concretiza; isto é, uma situação análoga ao
nascimento se estabelece, na qual o ego fica desamparado em face de uma
exigência instintual constantemente crescente - o determinante mais antigo e
original da ansiedade. Assim, em nossa opinião, a relação entre a ansiedade e o
sintoma é menos estreita do que se supunha, pois inserimos o fator da situação
de perigo entre eles. Podemos também acrescentar que a geração de ansiedade põe
a geração de sintomas em movimento e é, na realidade, um requisito prévio dela,
pois se o ego não despertasse a instância de prazer-desprazer gerando
ansiedade, não conseguiria a força para paralisar o processo que se está
preparando no id e que ameaça com perigo. Há em tudo isso evidente inclinação
para limitar ao mínimo a quantidade de ansiedade gerada e para empregá-la
somente como sinal, porquanto agir de outra forma somente resultaria em sentir
em outro lugar o desprazer que o processo instintual estava ameaçando produzir
e que não constituiria um êxito do ponto de vista do princípio de prazer,
embora seja um sucesso que ocorre bastante amiúde nas neuroses.
A formação de sintomas, portanto, de fato põe
termo à situação de perigo. Ela tem dois aspectos; um, oculto da visão,
acarreta a alteração no id em virtude da qual o ego é afastado de perigo; o
outro, apresentado abertamente, revela o que foi criado em lugar do processo
instintual que foi afetado - a saber, a formação substitutiva.
Seria, contudo, mais correto atribuir ao
processo defensivo o que acabamos de dizer sobre a formação de sintomas e
empregar a segunda expressão como sinônimo de formação de substitutos.
Tornar-se-á então claro que o processo defensivo é análogo à fuga por meio da
qual o ego se afasta de um perigo que o ameaça de fora. O processo defensivo é
uma tentativa de fuga de um perigo instintual. Um exame dos pontos fracos dessa
comparação tornará as coisas mais claras.
Uma objeção a ela é que a perda de um objeto
(ou perda do amor da parte do objeto) e a ameaça de castração são do mesmo modo
perigos que provêm de fora como, digamos, seria um animal feroz; não são
perigos instintuais. Não obstante, os dois casos não são os mesmos. Um lobo
provavelmente nos atacaria independentemente do nosso comportamento em relação
a ele; mas a pessoa amada não deixaria de nos amar nem seríamos ameaçados de
castração se não alimentássemos certos sentimentos e intenções dentro de nós.
Assim, tais impulsos instintuais são determinantes de perigos externos e dessa
maneira se tornam perigosos em si; e podemos agora prosseguir contra o perigo
externo adotando medidas contra os internos. Nas fobias de animais, o perigo
parece ser ainda sentido inteiramente como externo, justamente como sofreu um
deslocamento externo no sintoma. Nas neuroses obsessivas o perigo é muito mais
internalizado. Aquela parcela de ansiedade referente ao superego que constitui
a ansiedade social ainda representa um substituto interno de um perigo externo,
enquanto a outra parcela - a ansiedade moral - já é inteiramente endopsíquica.
Outra objeção é que, numa tentativa de fuga de
um perigo externo iminente, tudo o que o indivíduo está fazendo é aumentar a
distância entre ele próprio e o que o está ameaçando. Ele não se está
preparando para defender-se contra ele ou tentando alterar algo a respeito
dele, como seria o caso se ele atacasse o lobo com um cajado ou nele atirasse
com uma arma. Mas o processo defensivo parece fazer algo mais do que
corresponderia a uma tentativa de fuga. Trava debate com o problema do processo
instintual ameaçador e de alguma forma suprime-o ou desvia-o de seus objetivos,
e assim o torna inócuo. Essa objeção parece inatacável e deve receber a devida
importância. Julgo provável que deve haver certos processos defensivos que
podem verdadeiramente ser comparados com uma tentativa de fuga, embora em
outros o ego assuma uma linha muito mais ativa de autoproteção e inicie
vigorosas contramedidas. Mas talvez toda a analogia entre a defesa e a fuga
seja inválida pelo fato de que tanto o ego como o instinto no id sejam partes da
mesma organização, não entidades isoladas como o lobo e a criança, de modo que
qualquer espécie de comportamento por parte do ego resultará também numa
alteração do processo instintual.
Esse estudo dos determinantes da ansiedade tem,
por assim dizer, revelado o comportamento defensivo do ego transfigurado numa
luz racional. Cada situação de perigo corresponde a um período particular de
vida ou a uma fase particular de desenvolvimento do aparelho mental e parece
ser justificável quanto a ele. Na primeira infância o indivíduo realmente não
está preparado para dominar psiquicamente as grandes somas de excitação que o
alcançam quer de fora, quer de dentro. Além disso, num certo período de vida
seu interesse mais importante realmente é que as pessoas das quais ele depende
não devem retirar seu carinho dele. Posteriormente, em sua meninice, quando
sente que o pai é um poderoso rival no tocante à sua mãe, e se torna cônscio de
suas próprias inclinações agressivas para com ele e de suas intenções sexuais
em relação à mãe, realmente tem justificativa de ter medo do pai; e seu medo de
ser punido por este pode encontrar expressão através de reforço filogenético no
medo de ser castrado. Finalmente, quando trava relações sociais, realmente lhe
é necessário temer seu superego, ter uma consciência; e a ausência desse fator
daria margem a conflitos, perigos e assim por diante.
Mas esse último ponto levanta um novo problema.
Em vez do afeto da ansiedade tomemos, por um momento, outro - o do pesar, por
exemplo. Parece perfeitamente normal que aos quatro anos de idade uma menina
chore penosamente se a sua boneca quebrar-se; ou aos seis, se a governanta
reprová-la; ou aos dezesseis, se for desprezada pelo namorado; ou aos vinte e
cinco, talvez, se um filho dela morrer. Cada um desses determinantes de dor tem
a sua própria época e cada um desaparece quando essa época terminar. Somente os
determinantes finais e definitivos permanecem por toda a vida. Devemos julgar
estranho se essa menina, depois de ter crescido, se tornado esposa e mãe, fosse
chorar por algum objeto sem valor que tivesse sido danificado. Contudo, é assim
que se comporta o neurótico. Embora todas as instâncias para a dominação dos
estímulos de há muito se tenham desenvolvido dentro de amplos limites em seu
aparelho mental, e embora esteja suficientemente crescido para satisfazer à
maior parte de suas necessidades por si mesmo e há muito tenha aprendido que a
castração não é mais praticada como castigo, ele não obstante se comporta como
se as antigas situações de perigo ainda existissem e se apega a todos os
antigos determinantes de ansiedade.
Por que isto é assim exige uma resposta em
tanto longa. Antes de tudo, devemos peneirar os fatos. Num grande número de
casos os antigos determinantes da ansiedade realmente declinam, após terem
produzido reações neuróticas. As fobias de crianças muito tenras, temores de
ficarem sós ou no escuro ou com estranhos - fobias que podem quase ser chamadas
de normais -, em geral desaparecem depois; a criança ‘sai delas crescendo’,
como dizemos sobre algumas outras perturbações da infância. As fobias de
animais, de ocorrência tão freqüente, sofrem o mesmo destino e muitas histerias
de conversão dos primeiros anos não têm continuidade em anos posteriores da
vida. Ações cerimoniais surgem com extrema freqüência no período de latência,
mas somente uma percentagem muito pequena delas se desenvolve posteriormente
numa neurose obsessiva completa. Em geral, até onde possamos dizer pelas nossas
observações sobre crianças citadinas que pertencem a raças brancas e que vivem
de acordo com padrões culturais razoavelmente elevados, as neuroses da infância
têm a natureza de episódios regulares no desenvolvimento de uma criança, embora
muito pouca atenção se dispense às mesmas. Sinais de neuroses infantis podem
ser detectados em todos os neuróticos adultos sem exceção; mas de modo algum
todas as crianças que revelam esses sinais se tornam neuróticas depois. Deve
acontecer, portanto, que certos determinantes da ansiedade sejam abandonados e
certas situações de perigo percam seu significado à medida que o indivíduo se
torna mais maduro. Além disso, algumas dessas situações de perigo conseguem
sobreviver, alcançando épocas posteriores, e modificam seus determinantes de
ansiedade a fim de atualizá-los. Dessa forma, por exemplo, um homem pode reter
seu medo de castração à guisa de uma sifilidofobia, após ter vindo a saber que
não é mais habitual castrar as pessoas por se entregarem a seus desejos
sexuais, mas que, por outro lado, graves doenças podem sobrevir a qualquer um
que se entrega assim a seus instintos. Outros determinantes de ansiedade, como
o medo do superego, estão destinados a não desaparecer absolutamente, mas a
acompanhar as pessoas por toda sua vida. Nesse caso, o neurótico diferirá da
pessoa normal devido ao fato de que suas reações aos perigos em questão serão
indevidamente acentuadas. Finalmente, o ser adulto não oferece qualquer
proteção absoluta contra um retorno da situação de ansiedade traumática
original. Todo indivíduo tem, com toda probabilidade, um limite além do qual
seu aparelho mental falha em sua função de dominar as quantidades de excitação
que precisam ser eliminadas.
Essas retificações secundárias não podem de
forma alguma alterar o fato aqui em exame de que numerosíssimas pessoas continuam
infantis em seu comportamento referente ao perigo, e não superam determinantes
de ansiedade que ficaram ultrapassados. Negar isto seria negar a existência da
neurose, pois são precisamente tais pessoas que denominamos de neuróticas. Mas
como isto é possível? Por que nem todas as neuroses são episódios no
desenvolvimento do indivíduo que terminam quando a fase seguinte é alcançada?
De onde provém o elemento de persistência a essas reações ao perigo? Por que só
o afeto de ansiedade parece desfrutar da vantagem sobre todos as outros afetos
de evocação de reações que se distinguem das restantes por serem anormais e
que, através de sua falta de propriedade, vão de encontro ao movimento da vida?
Em outras palavras, mais uma vez chegamos desprevenidos ao enigma com o qual
tantas vezes nos defrontamos: de onde provém a neurose - qual é a sua última,
sua própria raison d’être peculiar? Após dez anos de labores psicanalíticos,
continuamos exatamente no escuro quanto a esse problema, como estávamos no
início.
X
A ansiedade é a reação ao perigo. Não se pode,
afinal de contas, deixar de suspeitar que o motivo pelo qual o afeto de
ansiedade ocupa uma posição sul generis na economia da mente tem algo a ver com
a natureza essencial do perigo. Contudo, os perigos são o destino comum da
humanidade; são os mesmos para todos. O que necessitamos e com o que não
podemos mexer é algum fator que explicará por que algumas pessoas são capazes
de sujeitar o afeto de ansiedade, apesar da sua qualidade peculiar, às
elaborações normais da mente, ou que decide quem está condenado a fracassar
naquela tarefa. Duas tentativas para encontrar um fator dessa espécie foram
feitas, sendo natural que tais esforços encontrassem uma recepção acolhedora,
visto que prometem ajudar a atender uma necessidade atormentadora. As duas
tentativas em questão são mutuamente complementares; abordam o problema em
extremidades opostas. A primeira foi feita por Alfred Adler há mais de dez
anos. Sua asserção, reduzida a sua essência, era a de que as pessoas que fracassavam
na tarefa a elas atribuída pelo perigo eram aquelas muito impedidas por alguma
inferioridade orgânica. Se fosse verdade que simplex sigillum veri, devíamos
acolher tal solução [Lösung] como uma libertação [Erlösung]. Mas ao contrário,
nossos estudos críticos dos últimos dez anos efetivamente demonstraram a total
impropriedade de tal explicação - explicação, além disso, que põe de lado toda
a riqueza do material descoberto pela psicanálise.
A segunda tentativa foi feita por Otto Rank em
1923 em seu livro The Trauma of Birth. [Ver Pp. 89 e 136 e seg.] Seria injusto
pôr sua tentativa no mesmo nível que a de Adler, salvo nesse único ponto, o
qual nos diz respeito aqui, pois permanece no terreno da psicanálise e persegue
uma linha de pensamento psicanalítica, de modo que pode ser aceita como um
esforço autêntico para solucionar os problemas da análise. Nesse assunto da
relação do indivíduo com o perigo Rank afasta-se da questão do defeito orgânico
do indivíduo e se concentra no grau variável de intensidade do perigo. O
processo de nascimento é a primeira situação de perigo, e a convulsão econômica
que ele produz torna-se o protótipo da reação de ansiedade. Já,ver em [[1]]
traçamos a linha de desenvolvimento que liga essa primeira situação de perigo e
determinante da ansiedade com todas as ulteriores, e vimos que todas conservam
uma qualidade comum até onde significam, em certo sentido, uma separação da mãe
- de início somente num sentido biológico, a seguir como uma perda direta do
objeto e depois como uma perda do objeto incorrida indiretamente. A descoberta
dessa extensa concatenação constitui indubitável mérito da construção de Rank.
Agora, o trauma do nascimento se apodera de cada indivíduo com um grau
diferente de intensidade e a violência da reação de ansiedade varia com a força
do trauma, sendo a quantidade inicial da ansiedade gerada nele que, de acordo
com Rank, decide se ele chegará a controlá-lo - se ele se tornará neurótico ou
normal.
Não nos cabe criticar aqui com riqueza de
detalhes a hipótese de Rank. Temos apenas a considerar se ela ajuda a resolver
nosso problema particular. A fórmula dele - de que se tornam neuróticas as
pessoas nas quais o trauma do nascimento foi tão forte que jamais foram capazes
inteiramente de ab-reagi-la - é altamente discutível de um ponto de vista
teórico. Não sabemos ao certo o que se quer dizer por ab-reação do trauma.
Tomada literalmente, implica que quanto mais freqüente e intensamente uma
pessoa neurótica reproduzir o afeto de ansiedade, mais de perto ela se aproximará
da saúde mental - uma conclusão insustentável. Foi por não ter coincidido com
os fatos que abandonei a teoria da ab-reação, que desempenhara papel tão
importante no método catártico. Dar tanta ênfase, também, à variabilidade com
base no trauma do nascimento é não deixar lugar algum para as legítimas
reivindicações da constituição hereditária como fator etiológico, pois essa
variabilidade é um fator orgânico que atua de maneira acidental em relação com
a constituição, dependendo ela própria de muitas influências que podem ser
denominadas acidentais - como, por exemplo, na assistência oportuna por ocasião
do parto. A teoria de Rank despreza inteiramente os fatores constitucionais bem
como os filogenéticos. Se, contudo, tivéssemos de tentar encontrar um lugar
para o fator constitucional restringindo o enunciado dele com a cláusula,
digamos, de que aquilo que é realmente importante é a extensão na qual o
indivíduo reage à intensidade variável do trauma do nascimento, estaríamos
privando sua teoria de sua significação e estaríamos relegando o novo fator
introduzido por ele a uma posição de importância secundária: o fator que
decidiu se uma neurose devia sobrevir ou não estaria num campo diferente e,
mais uma vez, desconhecido.
Além disso, o fato de que, enquanto o homem
partilha o processo de nascimento com os outros mamíferos, somente ele tem o
privilégio em relação a eles de possuir uma disposição especial para a neurose
dificilmente é favorável à teoria de Rank. Mas a principal objeção a ela é que
flutua no ar em vez de estar baseada em observações confirmadas. Nenhum
conjunto de prova foi coligido para indicar que o nascimento difícil e
retardado coincide de fato com o desenvolvimento de uma neurose, ou mesmo que
as crianças assim nascidas exibem os fenômenos da primeira apreensão infantil
de forma mais acentuada e por um período mais longo do que outras crianças.
Poder-se-ia retrucar que as dores do parto e os nascimentos induzidos, fáceis
para a mãe, possivelmente podem envolver grave trauma para a criança. Mas
podemos ainda ressaltar que os nascimentos que levam à asfixia estariam
destinados a proporcionar claras provas dos resultados que supostamente devem
seguir-se. Deve ser uma das vantagens da teoria etiológica de Rank o fato de
que ela postula um fator cuja existência pode ser verificada pela observação. E
enquanto tal tentativa de verificação não for feita, é impossível verificar o
valor da teoria.
Por outro lado, não posso identificar-me com o
ponto de vista de que a teoria de Rank contradiz a importância etiológica dos
instintos sexuais tal como até agora reconhecidos pela psicanálise, pois sua
teoria só tem referência à relação do indivíduo com a situação de perigo, de
modo que deixa perfeitamente aberto para nós a suposição de que, se uma pessoa
não foi capaz de dominar seus primeiros perigos, ela está destinada a fracassar
também em situações ulteriores envolvendo perigo sexual, e assim a ser impelida
a uma neurose.
Não acredito, portanto, que a tentativa de Rank
tenha solucionado o problema da causação da neurose, nem creio que possamos até
agora dizer o quanto ela, não obstante, tenha contribuído para tal solução. Se
uma investigação dos efeitos do parto difícil sobre a disposição à neurose deve
proporcionar resultados negativos, classificaremos de inferior o valor da
contribuição dele. Deve-se temer que nossa necessidade de encontrar uma ‘causa
última’ simples e tangível da doença neurótica permaneça insatisfeita. A
solução ideal, pela qual os médicos ainda anseiam, seria descobrir certo bacilo
que pudesse ser isolado e cultivado numa cultura pura e que, quando injetado em
alguém, invariavelmente produzisse a mesma doença; ou, expressando-o de forma
um tanto menos extravagante, demonstrar a existência de certas substâncias
químicas cuja administração provocasse ou curasse neuroses específicas. Mas a
probabilidade de uma solução dessa espécie parece pequena.
A psicanálise leva a conclusões menos simples e
satisfatórias. O que tenho a dizer nesse sentido de há muito é familiar e nada
tenho de novo a acrescentar. Se o ego consegue proteger-se de um impulso
instintual perigoso, através, por exemplo, do processo de repressão, ele por
certo inibiu e prejudicou a parte específica do id em causa; mas ao mesmo tempo
lhe deu certa independência e renunciou a um pouco de sua própria soberania.
Isto é inevitável pela natureza da repressão, que é, fundamentalmente, uma
tentativa de fuga. O reprimido é agora, por assim dizer, um fora-da-lei; fica
excluído da grande organização do ego e está sujeito somente às leis que regem
o domínio do inconsciente. Se, agora, a situação de perigo modificar-se de modo
que o ego não tenha razão alguma de desviar-se de um novo impulso instintual
análogo ao reprimido, a conseqüência da restrição do ego que ocorreu se tornará
manifesta. O novo impulso prosseguirá seu curso sob uma influência automática -
ou, como eu preferiria dizer, sob a influência da compulsão à repetição. Ele
seguirá a mesma trilha que o impulso mais antigo reprimido, como se a situação
de perigo que tivesse sido superada ainda existisse. O fator de fixação na
repressão, portanto, é a compulsão à repetição do id inconsciente - uma
compulsão que em circunstâncias normais só é eliminada pela função livremente
móvel do ego. O ego poderá ocasionalmente conseguir romper as barreiras da
repressão que ele próprio erigiu e recuperar sua influência sobre o impulso
instintual, e dirigir o curso do novo impulso de conformidade com a situação de
perigo modificada. Mas de fato o ego muito raramente consegue fazer isto: ele
não pode desfazer suas repressões. É possível que a maneira pela qual a luta vá
ser travada dependa de relações quantitativas. Em alguns casos tem-se a
impressão de que o resultado seja imposto: a atração regressiva exercida pelo
impulso reprimido e a força da repressão não tem outra opção senão obedecer à
compulsão à repetição. Em outros casos percebemos uma contribuição de outra
atuação de forças: a atração exercida pelo protótipo reprimido é reforçada por
uma repulsão proveniente da direção de dificuldades na vida real que atrapalham
qualquer curso diferente que poderia ser seguido pelo novo impulso instintual.
Que esse é um relato correto da fixação na
repressão e da retenção das situações de perigo que não são mais situações dos
dias atuais é confirmado pelo fato da terapia analítica - fato que é bastante
modesto em si, mas que dificilmente pode ser superestimado de um ponto de vista
teórico. Quando, na análise, demos ao ego assistência capaz de situá-lo em
posição de levantar suas repressões, ele recupera seu poder sobre o id
reprimido e pode permitir aos impulsos instintuais que sigam seu curso como se
as antigas situações de perigo não existissem mais. O que podemos fazer dessa
maneira coincide com o que pode ser alcançado em outros campos da medicina,
pois em geral nossa terapia deve contentar-se em provocar mais rapidamente, de
forma mais confiável e com menos dispêndio de energia do que seria o caso de
outra forma, o bom resultado que em circunstâncias favoráveis teriam ocorrido
por si. Vemos pelo que acaba de ser dito que as relações quantitativas -
relações que não são diretamente observáveis mas que só podem ser inferidas -
são o que determina se situações de perigo antigas serão preservadas, se
repressões por parte do ego serão mantidas e se neuroses da infância
encontrarão continuidade. Entre os fatores que desempenham seu papel na
causação das neuroses e que criam as condições sob as quais as forças da mente
são lançadas umas contra as outras, surgem três de forma proeminente: um fator
biológico, um filogenético e um puramente psicológico.
O fator biológico é o longo período de tempo
durante o qual o jovem da espécie humana está em condições de desamparo e
dependência. Sua existência intra-uterina parece ser curta em comparação com a
da maior parte dos animais, sendo lançado ao mundo num estado menos acabado.
Como resultado, a influência do mundo externo real sobre ele é intensificada e
uma diferenciação inicial entre o ego e o id é promovida. Além disso, os
perigos do mundo externo têm maior importância para ele, de modo que o valor do
objeto que pode somente protegê-lo contra eles e tomar o lugar da sua antiga
vida intra-uterina é enormemente aumentado. O fator biológico, então,
estabelece as primeiras situações de perigo e cria a necessidade de ser amado
que acompanhará a criança durante o resto de sua vida.
A existência do segundo fator, o filogenético,
baseia-se apenas em inferência. Fomos levados a presumir sua existência por uma
marcante característica no desenvolvimento da libido. Verificamos que a vida
sexual do homem, diferentemente da vida sexual da maioria dos animais de perto
relacionada com ele, não realiza um progresso firme desde o nascimento à
maturidade, mas, após uma eflorescência inicial até o quinto ano, sofre uma
interrupção bem nítida, e então segue seu curso mais uma vez na puberdade,
reatando os inícios interrompidos na primeira infância. Isto levou-nos a supor
que algo momentoso deve ter ocorrido nas vicissitudes da espécie humana que
deixou para trás essa interrupção no desenvolvimento sexual do indivíduo como
um precipitado histórico. Esse fator deve seu significado patogênico ao fato de
que a maioria das exigências instintuais dessa sexualidade infantil são
tratadas pelo ego como perigos e desviados como tais, de modo que os impulsos
sexuais ulteriores da puberdade, que no curso natural das coisas seriam
egossintônicos, correm o risco de sucumbir à atração de seus protótipos
infantis e de segui-los até a repressão. É aqui que nos defrontamos com a
etiologia mais direta das neuroses. É fato curioso que o contato inicial com as
exigências da sexualidade deve ter efeito sobre o ego semelhante ao produzido
pelo contato prematuro com o mundo externo.
O terceiro fator, o psicológico, reside em um
defeito do nosso aparelho mental que tem a ver precisamente com sua
diferenciação em um id e um ego, e que é portanto também atribuível, em última
análise, à influência do mundo externo. Em vista dos perigos da realidade
[externa], o ego é obrigado a resguardar-se contra certos impulsos instintuais
no id e a tratá-los como perigos. Mas não pode proteger-se dos perigos
instintuais internos tão eficazmente quanto pode de alguma realidade que não é
parte de si mesmo. Intimamente vinculado ao id como está, só pode desviar um
perigo instintual restringindo sua própria organização e aquiescendo na
formação de sintomas em troca de ter prejudicado o instinto. Se o instinto
rejeitado renovar seu ataque, o ego é dominado por todas aquelas dificuldades
que nos são conhecidas como males neuróticos.
Além disso, creio, nosso conhecimento da
natureza e da causas da neurose ainda não pode ir adiante.
XI
ADENDOS
No curso deste exame vários temas tiveram que
ser postos de lado antes que houvessem sido plenamente tratados. Reuni-os neste
capítulo de modo que possam receber a atenção que merecem.
A - MODIFICAÇÕES DE PONTOS DE
VISTA ANTERIORES
(a) Resistência e Anticatexia
Importante elemento da teoria da repressão é a
opinião de que a repressão não é um fato que ocorre uma vez, mas que exige um
dispêndio permanente [de energia]. Se esse dispêndio viesse a cessar, o impulso
reprimido, que está sendo alimentado todo o tempo a partir de suas fontes, na
ocasião seguinte fluiria pelos canais dos quais havia sido expulso, e a
repressão ou falharia em sua finalidade ou teria de ser repetida um número
indefinido de vezes. Assim, é porque os instintos são contínuos em sua natureza
que o ego tem de tornar segura sua ação defensiva por um dispêndio permanente [de
energia]. Essa ação empreendida para proteger a repressão é observável no
tratamento analítico como resistência. A resistência pressupõe a existência do
que eu denominei de anticatexia. Uma anticatexia dessa espécie é claramente
observada na neurose obsessiva. Ela aparece ali sob a forma de uma alteração do
ego, como uma formação reativa no ego, e é efetuada pelo reforço da atitude que
é o oposto da tendência instintual que tem de ser reprimida - como, por
exemplo, na piedade, na consciência e no asseio. Essas formações reativas de
neurose obsessiva são essencialmente exageros dos traços normais do caráter que
se desenvolvem durante o período de latência. A presença de uma anticatexia na
histeria é muito mais difícil de detectar, embora teoricamente seja igualmente
indispensável. Na histeria, também, uma quantidade de alteração do ego através
da formação reativa é inegável e em algumas circunstâncias se torna tão
acentuada que se força à nossa atenção como o principal sintoma.O conflito
devido à ambivalência, por exemplo, é transformado em histeria por esse meio. O
ódio do paciente por uma pessoa a quem ele ama é mantido em baixo nível por uma
quantidade reduzida de ternura e apreensão da parte dela. Mas a diferença entre
as formações reativas na neurose obsessiva e na histeria é que na segunda não
têm a universidade de um traço de caráter, mas estão confinadas a relações
específicas. Uma histérica, por exemplo, pode ser especialmente afetuosa com
seus próprios filhos, os quais no fundo ela odeia; mas por causa disso ela não
será mais amorosa, em geral, do que outras mulheres ou mais afetuosa para com
outras crianças. A formação reativa da histeria apega-se tenazmente a um objeto
específico e jamais se difunde por uma disposição geral do ego, ao passo que o
que é característico da neurose obsessiva é precisamente uma difusão dessa
espécie - um afrouxamento de relações na escolha de objeto.
Há outra espécie de anticatexia, contudo, que
parece mais adequada ao caráter peculiar da histeria. Um impulso instintual reprimido
pode ser ativado (novamente catexizado) a partir de duas direções: de dentro,
através de reforço de suas fontes internas de excitação, e de fora, através da
percepção de um objeto que ele deseja. A anticatexia histérica é principalmente
dirigida para fora, contra percepções perigosas. Assume a forma de uma espécie
especial de vigilância que, por meio de restrições do ego, causa situações a
serem evitadas que ocasionariam tais percepções, ou, se de fato ocorrerem,
consegue afastar delas a atenção do paciente. Alguns analistas franceses, em
particular Laforgue [1926], recentemente deram a essa ação da histeria o nome
especial de ‘escotomização’. Essa técnica de anticatexia é ainda mais
perceptível nas fobias, cujo interesse se acha concentrado na remoção do
paciente cada vez mais para longe da possibilidade da ocorrência da percepção
temida. O fato de que a anticatexia tem uma direção oposta na histeria e nas
fobias à que tem na neurose obsessiva - embora a distinção não seja absoluta -
parece ser significativo. Sugere existir estreita relação entre a repressão e a
anticatexia externa, por um lado, e entre a regressão e a anticatexia interna
(isto é, alteração do ego através da formação reativa), por outro. A tarefa de
defesa contra uma percepção perigosa é, incidentalmente, comum a todas as
neuroses. Várias ordens e proibições na neurose obsessiva têm em vista o mesmo
fim.
Mostramos em ocasião anterior que a resistência
que tem de ser superada na análise provém do ego, que se apega a suas
anticatexias. É difícil para o ego dirigir sua atenção para percepções e idéias
que ele então estabeleceu como norma evitar, ou reconhecer como pertencendo a
si próprio impulsos que são o oposto completo daqueles que ele conhece como
seus próprios. Nossa luta contra a resistência na análise baseia-se nesse ponto
de vista dos fatos. Se a resistência for ela mesma inconsciente, como tão
amiúde acontece devido à sua ligação com o material reprimido, nós a tornamos
consciente. Se for consciente, ou quando se tiver tornado consciente,
apresentamos argumentos lógicos contra ela; prometemos ao ego recompensas e
vantagens se ele abandonar sua resistência. Não pode haver nenhuma dúvida ou
erro sobre a existência dessa resistência por parte do ego. Mas temos de
perguntar a nós mesmos se ela abrange todo o estado de coisas na análise, pois
verificamos que mesmo após o ego haver resolvido abandonar suas resistências
ele ainda tem dificuldades em desfazer as repressões; e denominamos o período
de ardoroso esforço que se segue, depois de sua louvável decisão, de fase de
‘elaboração’. O fator dinâmico que torna uma elaboração desse tipo necessária e
abrangente não está longe para se procurar. Pode ser que depois de a
resistência do ego ter sido removida, o poder da compulsão à repetição - a
atração exercida pelos protótipos inconscientes sobre o processo instintual
reprimido - ainda tenha de ser superado. Nada há a dizer contra descrever esse
fator como a resistência do inconsciente. Não há qualquer necessidade de se
ficar desestimulado por causa dessas correções. Devem ser bem escolhidas se
acrescentarem algo ao nosso conhecimento, e não constituem vergonha alguma para
nós, na medida em que antes enriquecem do que invalidam nossos pontos de vista
anteriores - limitando algum enunciado, talvez, que era por demais geral ou
ampliando alguma idéia que foi muito estreitamente formulada.
Não se deve supor que essas correções nos
proporcionem um levantamento completo de todas as espécies de resistência
encontradas na análise. A investigação ulterior do assunto revela que o
analista tem de combater nada menos que cinco espécies de resistência, que
emanam de três direções - o ego, o id e o superego. O ego é a fonte de três,
cada uma diferindo em sua natureza dinâmica. A primeira dessas três resistências
do ego é a resistência da repressão, que já examinamos acima [[1]] e sobre as
quais há o mínimo a ser acrescentado. A seguir vem a resistência da
transferência, que é da mesma natureza mas que tem efeitos diferentes e muito
mais claros na análise, visto que consegue estabelecer uma relação com a
situação analítica ou com o próprio analista, reanimando assim uma repressão
que deve somente ser relembrada. A terceira resistência, embora também uma
resistência do ego, é de natureza inteiramente diferente. Ela advém do ganho
proveniente da doença e se baseia numa assimilação do sintoma no ego. [Ver em
[1]] Representa uma não disposição de renunciar a qualquer satisfação ou alívio
que tenha sido obtido. A quarta variedade, que decorre do id, é a resistência que,
como acabamos de ver, necessita de ‘elaboração’. A quinta, proveniente do
superego e a última a ser descoberta, é também a mais obscura, embora nem
sempre a menos poderosa. Parece originar-se do sentimento de culpa ou da
necessidade de punição, opondo-se a todo movimento no sentido do êxito,
inclusive, portanto, à recuperação do próprio paciente pela análise.
(b) Ansiedade a Partir da
Transformação da Libido
A opinião sobre a ansiedade que formulei nestas
páginas diverge um tanto da que até agora julguei correta. Anteriormente
considerei a ansiedade como uma reação geral do ego sob condições de desprazer.
Sempre procurei justificar seu aparecimento com base em fundamentos econômicos
e presumi, alicerçado em minhas investigações das neuroses ‘atuais’, que a
libido (excitação sexual) que era rejeitada ou não utilizada pelo ego
encontrava descarga direta sob a forma de ansiedade. Não se pode negar que
essas várias asserções não se ajustavam muito bem, ou, seja como for, não
decorriam necessariamente umas das outras. Além disso, davam a impressão de
haver uma vinculação especialmente estreita entre a ansiedade e a libido e isto
não estava conforme ao caráter geral da ansiedade como uma reação ao desprazer.
A objeção a esse ponto de vista surgiu por termos considerado o ego como a sede
única da ansiedade. Foi um dos resultados da tentativa de uma divisão
estrutural do aparelho mental que fiz em O Ego e o Id. Ao passo que o antigo
ponto de vista tornava natural supor que a ansiedade decorria da libido
pertencente aos impulsos instintuais reprimidos, o novo, pelo contrário,
tornava o ego a fonte da ansiedade. Trata-se assim da ansiedade (do id) ou da
ansiedade do ego. Visto que a energia que o ego emprega é dessexualizada, o
novo ponto de vista também tendia a enfraquecer a estreita ligação entre a
ansiedade e a libido. Espero haver pelo menos conseguido tornar clara a
contradição e ter apresentado uma idéia nítida do ponto em dúvida.
A asserção de Rank - que foi originalmente
minha - de que a emoção da ansiedade é uma conseqüência do fato do nascimento e
uma repetição da situação então experimentada, obrigou-me a rever mais uma vez
o problema da ansiedade. Mas não pude fazer qualquer progresso com a idéia dele
de que o nascimento é um trauma, estados de ansiedade, uma reação de descarga
ao mesmo e todos os afetos de ansiedade subseqüentes uma tentativa de
‘ab-reagi-lo’ cada vez mais completamente. Fui obrigado a partir de volta da
relação de ansiedade até a situação de perigo que estava por trás dele. A
introdução desse elemento abriu novos aspectos da questão. O nascimento foi
encarado como sendo o protótipo de todas as situações ulteriores de perigo que
se apoderavam do indivíduo sob as novas condições decorrentes de um modo de
vida modificado e um crescente desenvolvimento mental. Por outro lado, seu
próprio significado foi reduzido a essa relação prototípica como perigo. A
ansiedade sentida ao nascer tornou-se o protótipo de um estado afetivo que teve
de sofrer as mesmas vicissitudes que os outros afetos. Ou o estado de ansiedade
se reproduzia automaticamente em situações análogas à situação original e era
assim uma forma inadequada de reação em vez de apropriada, como o fora na
primeira situação de perigo, ou o ego adquiria poder sobre essa emoção,
reproduzia-a por sua própria iniciativa e a empregava como uma advertência de
perigo e como um meio de pôr o mecanismo de prazer-desprazer em movimento.
Demos assim ao aspecto biológico do afeto de ansiedade sua devida importância,
reconhecendo a ansiedade como a reação geral a situações de perigo, enquanto
endossávamos o papel desempenhado pelo ego como a sede da ansiedade,
atribuindo-lhe a função de produzir afeto de ansiedade de acordo com suas
necessidades. Assim atribuímos duas modalidades de origem à ansiedade na vida
posterior. Uma era involuntária, automática e sempre justificada sob
fundamentos econômicos, e ocorria sempre que uma situação de perigo análoga ao
nascimento se havia estabelecido. A outra era produzida pelo ego logo que uma
situação dessa espécie simplesmente ameaçava ocorrer, a fim de exigir sua
evitação. No segundo caso o ego sujeita-se à ansiedade como uma espécie de
inoculação, submetendo-se a um ligeiro ataque da doença a fim de escapar a toda
sua força. Ele vividamente imagina a situação de perigo, por assim dizer, com a
finalidade inegável de restringir aquela experiência aflitiva a uma mera
indicação, a um sinal. Já vimos com pormenores,ver em [[1] e [2]] como as
várias situações de perigo surgem uma após a outra, conservando ao mesmo tempo
uma vinculação genética.
Talvez sejamos capazes de continuar um pouco
além em nossa compreensão da ansiedade quando voltarmos para o problema da
relação entre a ansiedade neurótica e a ansiedade realística,ver em [[1]]
Nossa hipótese anterior de uma transformação
direta da libido em ansiedade possui menos interesse para nós agora do que
antes. Mas se a considerarmos, teremos de distinguir diferentes casos. No
tocante à ansiedade evocada pelo ego como um sinal, ela não entra em
consideração, nem, portanto, em qualquer daquelas situações de perigo que
suscitam o ego a provocar repressão. A catexia libidinal do impulso sexual
reprimido é empregada de outra forma que não a de ser transformada e
descarregada como tal - como se verifica de maneira bem clara na histeria de
conversão. Por outro lado, uma indagação ulterior da questão da situação de
perigo trará à nossa atenção um exemplo da produção de ansiedade que, penso eu,
tem de ser explicado de forma diferente,ver em [[1]].
(c) Repressão e Defesa
No curso da apreciação do problema da ansiedade
revivi um conceito ou, dizendo de maneira mais modesta, uma expressão, da qual
fiz uso exclusivo trinta anos atrás quando comecei pela primeira vez a estudar
o assunto, mas depois o abandonei. Refiro-me à expressão ‘processo defensivo’.
Substituí-a depois pela palavra ‘repressão’, mas a relação entre as duas
continuou incerta. Constituirá uma vantagem indubitável, penso eu, reverter ao
antigo conceito de ‘defesa’, contanto que o empreguemos explicitamente como uma
designação geral para todas as técnicas das quais o ego faz uso em conflitos
que possam conduzir a uma neurose, ao passo que conservamos a palavra
‘repressão’ para o método especial de defesa com o qual a linha de abordagem
adotada por nossas investigações nos tornou mais bem familiarizados no primeiro
exemplo.
Mesmo uma inovação puramente terminológica deve
justificar sua adoção; ela deve refletir algum novo ponto de vista ou certa
extensão de conhecimento. A revivescência do conceito da defesa e a restrição
do de repressão levam em conta um fato de há muito conhecido, mas que recebeu
importância adicional devido a algumas novas descobertas. Nossas primeiras
observações de repressão e da formação de sintomas foram feitas em relação com
a histeria. Verificamos que o conteúdo perceptual de experiências excitantes e
o conteúdo ideativo de estruturas patogênicas de pensamento foram esquecidos e
impedidos de ser reproduzidos na lembrança, e concluímos portanto que o
manter-se afastado da consciência constitui uma característica principal da
repressão histérica. Posteriormente, quando passamos a estudar as neuroses
obsessivas, constatamos que naquela doença as ocorrências patogênicas não são
esquecidas. Permanecem conscientes, mas são ‘isoladas’ de uma forma que até
podemos apreender, de modo que se obtém o mesmo resultado que na amnésia
histérica. Não obstante, a diferença é bastante grande para justificar a crença
de que o processo pelo qual as exigências instintuais são postas de lado na
neurose obsessiva não pode ser o mesmo que na histeria. Investigações
ulteriores têm revelado que na neurose obsessiva uma regressão dos impulsos
instintuais a uma fase libidinal mais antiga é provocada mediante a oposição do
ego, e que essa regressão, embora não torne a repressão desnecessária, funciona
claramente no mesmo sentido que a repressão. Também vimos que na neurose
obsessiva a anticatexia, que também presumivelmente se acha na histeria,
desempenha papel especialmente relevante na proteção do ego, efetuando nele uma
alteração reativa. Nossa atenção, além disso, foi despertada para um processo
de ‘isolamento’ (cuja técnica ainda não pode ser elucidada) que encontra
manifestação sintomática direta e para um procedimento, que pode ser denominado
mágico, de ‘desfazer’ o que foi feito - procedimento sobre cuja finalidade
defensiva não pode haver qualquer dúvida, mas que não apresenta mais qualquer
semelhança com o processo de ‘repressão’. Essas observações oferecem
fundamentos bastante sólidos para a reintrodução do antigo conceito de defesa,
que pode abranger todos os processos que tenham a mesma finalidade - a saber, a
proteção do ego contra as exigências instintuais -, e para nele classificar a
repressão como um caso especial. A importância dessa nomenclatura é realçada se
considerarmos a possibilidade de que investigações ulteriores poderão revelar
haver estreita ligação entre formas especiais de defesa e doenças específicas,
como, por exemplo, entre repressão e histeria. Além disso, podemos antecipar a
possível descoberta de ainda outra importante correlação. Pode muito bem
acontecer que antes da sua acentuada clivagem em um ego e um id, e antes da
formação de um superego, o aparelho mental faça uso de diferentes métodos de
defesa dos quais ele se utilize após haver alcançado essas fases de
organização.
B - OBSERVAÇÕES SUPLEMENTARES
SOBRE A ANSIEDADE
O afeto da ansiedade apresenta uma ou duas
características cujo estudo promete lançar mais luz sobre o assunto. A
ansiedade [Angst] tem inegável relação com a expectativa: é ansiedade por algo.
Tem uma qualidade de indefinição e falta de objeto. Em linguagem precisa
empregamos a palavra ‘medo’ [Furcht] de preferência a ‘ansiedade’ [Angst] se
tiver encontrado um objeto. Ademais, além de sua relação com o perigo, a
ansiedade tem uma relação com a neurose que há muito estamos tentando elucidar.
Surge a questão: por que todas as reações não são neuróticas - por que
aceitamos tantas delas como normais? E finalmente o problema da diferença entre
ansiedade realística e ansiedade neurótica aguarda um exame completo.
Para começarmos com o último problema. O
progresso que alcançamos é que fomos atrás de reações de ansiedade até
situações de perigo. Se fizermos a mesma coisa com a ansiedade realística não
teremos qualquer dificuldade para solucionar a questão. O verdadeiro perigo é
um perigo que é conhecido, sendo a ansiedade realística a ansiedade por um
perigo conhecido dessa espécie. A ansiedade neurótica é a ansiedade por um
perigo desconhecido. O perigo neurótico é assim um perigo que tem ainda de ser
descoberto. A análise tem revelado que se trata de um perigo instintual.
Levando esse perigo que não é conhecido do ego até a consciência, o analista
faz com que a ansiedade neurótica não seja diferente da ansiedade realística,
de modo que com ela se pode lidar da mesma maneira.
Existem duas reações ao perigo real. Uma reação
afetiva, uma irrupção de ansiedade. A outra é uma ação protetora. O mesmo
presumivelmente se aplicará ao perigo instintual. Sabemos como as duas reações
podem cooperar de forma apropriada, uma dando o sinal para que a outra surja.
Mas também sabemos que elas podem comportar-se de modo impróprio: a paralisia
proveniente da ansiedade pode sobrevir, difundindo-se uma reação à custa da
outra.
Em alguns casos as características da ansiedade
realística e da ansiedade neurótica se acham mescladas. O perigo é conhecido e
real, mas a ansiedade referente a ele é supergrande, maior do que nos parece
apropriado. É esse excedente de ansiedade que trai a presença de um elemento
neurótico. Tais casos, contudo, não introduzem qualquer princípio novo, pois a
análise revela que ao perigo real conhecido se acha ligado um perigo instintual
desconhecido.
Podemos descobrir ainda mais sobre isso se, não
contentes em rastrearmos a ansiedade no perigo, prosseguirmos indagando qual é
a essência e o significado de uma situação de perigo. Claramente, ela consiste
na estimativa do paciente quanto à sua própria força em comparação com a
magnitude do perigo e no seu relacionamento de desamparo em face desse perigo -
desamparo físico se o perigo for real e desamparo psíquico se for instintual.
Ao proceder assim o indivíduo será orientado pelas experiências reais que tiver
tido. (Quer ele esteja certo ou errado em sua estimativa não importa quanto ao
resultado.) Denominemos uma situação de desamparo dessa espécie, que ele
realmente tenha experimentado, de situação traumática. Teremos então bons
motivos para distinguir uma situação traumática de uma situação de perigo.
O indivíduo terá alcançado importante progresso
em sua capacidade de autopreservação se puder prever e esperar uma situação
traumática dessa espécie que acarrete desamparo, em vez de simplesmente esperar
que ela aconteça. Intitulemos uma situação que contenha o determinante de tal
expectativa de uma situação de perigo. É nessa situação que o sinal de
ansiedade é emitido. O sinal anuncia: ‘Estou esperando que uma situação de
desamparo sobrevenha’ ou ‘A presente situação me faz lembrar uma das
experiências traumáticas que tive antes. Portanto, preverei o trauma e me
comportarei como se ele já tivesse chegado, enquanto ainda houver tempo para
pô-lo de lado.’ A ansiedade, por conseguinte, é, por um lado, uma expectativa
de um trauma e, por outro, uma repetição dele em forma atenuada. Assim os dois
traços de ansiedade que notamos têm uma origem diferente. Sua vinculação com a
expectativa pertence à situação de perigo, ao passo que sua indefinição e falta
de objeto pertencem à situação traumática de desamparo - a situação que é
prevista na situação de perigo.
Seguindo essa seqüência,
ansiedade-perigo-desamparo (trauma), podemos agora resumir o que se disse. Uma
situação de perigo é uma situação reconhecida, lembrada e esperada de
desamparo. A ansiedade é a reação original ao desamparo no trauma, sendo reproduzida
depois da situação de perigo como um sinal em busca de ajuda. O ego, que
experimentou o trauma passivamente, agora o repete ativamente, em versão
enfraquecida, na esperança de ser ele próprio capaz de dirigir seu curso. É
certo que as crianças se comportam dessa maneira em relação a toda impressão
aflitiva que recebem, reproduzindo-a em suas brincadeiras. Ao passarem assim da
passividade para a atividade tentam dominar suas experiências psiquicamente. Se
isto é o que se quer dizer por ‘ab-reação de um trauma’ não podemos ter mais
nada a incitar contra a expressão. [Ver [1].] Mas o que é de importância
decisiva é o primeiro deslocamento da reação de ansiedade de sua origem na
situação de desamparo para uma expectativa dessa situação - isto é, para a
situação de perigo. Depois disso vêm os deslocamentos ulteriores, do perigo
para o determinante do perigo - perda do objeto e das modificações dessa perda
com as quais já nos familiarizamos.
O resultado indesejável de ‘estragar’ uma
criancinha é ampliar a importância do perigo de perder o objeto (sendo o objeto
uma proteção contra toda situação de desamparo) em comparação com qualquer
outro perigo. Ele portanto estimula o indivíduo a permanecer no estado de
infância, cujo período de vida se caracteriza pelo desamparo motor e psíquico.
Até agora não tivemos oportunidade alguma de
considerar a ansiedade realística sob qualquer luz diferente da ansiedade
neurótica. Sabemos qual a distinção. Um perigo real é aquele que ameaça uma
pessoa a partir de um objeto externo, e um perigo neurótico é aquele que a
ameaça a partir de uma exigência instintual. Até onde a exigência instintual é
algo, também se pode admitir que a ansiedade neurótica da pessoa tenha uma base
realística. Vimos que a razão pela qual parece haver uma vinculação
especialmente estreita entre a ansiedade e a neurose é que o ego se defende
contra um perigo instintual com a ajuda da reação de ansiedade, do mesmo modo
que o faz contra um perigo real externo, mas que essa linha de atividade
defensiva resulta numa neurose devido a uma imperfeição do aparelho mental.
Chegamos também à conclusão de que uma exigência instintual freqüentemente só
se torna um perigo (interno) porque sua satisfação provocaria um perigo externo
- isto é, porque o perigo interno representa um perigo externo.
Por outro lado, o perigo externo (real) deve
também ter conseguido tornar-se internalizado, se se quiser que seja
significativo para o ego. Ele deve ter sido reconhecido como relacionado com
certa situação de desamparo que foi experimentada. O homem não parece ter sido
dotado, ou ter sido dotado num grau muito pequeno, de reconhecimento instintual
dos perigos que o ameaçam de fora. Criancinhas estão constantemente fazendo
coisas que põem em perigo suas vidas, e eis precisamente por que não podem
passar sem um objeto protetor. Em relação à situação traumática, na qual o
paciente está desamparado, convergem perigos externos e internos, perigos reais
e exigências instintuais. Quer o ego esteja sofrendo de uma dor que não pára ou
experimentando um acúmulo de necessidades instintuais que não podem obter
satisfação, a situação econômica é a mesma, e o desamparo motor do ego encontra
expressão no desamparo psíquico.
Nesse sentido as fobias desorientadoras da
primeira infância merecem ser mencionadas mais uma vez. [Ver [1].] Fomos
capazes de explicar algumas delas, tais como o medo de ficar sozinho ou no
escuro ou com estranhos, como reações ao perigo de perder o objeto. Outras,
como o medo de animaizinhos, trovoadas etc., talvez pudessem ser explicadas
como traços vestigiais do preparo congênito para fazer face a perigos reais tão
acentuadamente desenvolvidos em outros animais. No homem, só é apropriada
aquela parte dessa herança arcaica que tem referência à perda do objeto. Se as
fobias de infância se tornarem fixadas e ficarem mais fortes e persistirem até
anos depois, a análise revela que o conteúdo delas se associou às exigências
instintuais e veio também representar perigos internos.
C - ANSIEDADE, DOR E LUTO
Sabe-se tão pouco acerca da psicologia dos
processos emocionais que as observações experimentais que estou prestes a fazer
sobre o assunto podem reivindicar um julgamento muito suave. O problema diante
de nós decorre da conclusão à qual chegamos de que ansiedade vem a ser uma reação
ao perigo de uma perda de objeto. Agora já conhecemos uma reação à perda de um
objeto, que é o luto. A questão portanto é: quando essa perda conduz à
ansiedade e quando ao luto? Ao examinar o assunto do luto em ocasião anterior
constatei que havia uma característica dele que continuava absolutamente sem
explicação. Isto era seu estado de dor peculiar. [Cf. p. 132.] E contudo parece
evidente por si mesmo que a separação de um objeto deve ser dolorosa. Assim o
problema torna-se mais complicado: quando a separação de um objeto produz
ansiedade, quando produz luto e quando produz, pode ser, somente dor?
Digamos de imediato que não há qualquer
perspectiva à vista para responder a essas perguntas. Devemos contentar-nos em
traçar certas distinções e esboçar certas possibilidades.
Nosso ponto de partida será novamente a única
situação que acreditamos compreender - a situação da criancinha quando se lhe
apresenta um estranho em vez de sua mãe. A primeira exibirá a ansiedade que
atribuímos ao perigo de perda de objeto. Mas sua ansiedade é indubitavelmente
mais complicada do que isto e merece um exame mais completo. Que ela tem
ansiedade não resta a menor dúvida, mas a expressão de seu rosto e sua reação
de chorar indicam que ela está também sentindo dor. Nela parecem estar reunidas
certas coisas que depois serão separadas. Ela não pode ainda distinguir entre a
ausência temporária e a perda permanente. Logo que perde a mãe de vista
comporta-se como se nunca mais fosse vê-la novamente; e repetidas experiências
consoladoras, ao contrário, são necessárias antes que ela aprenda que o
desaparecimento da mãe é, em geral, seguido pelo seu reaparecimento. A mãe
encoraja esse conhecimento, que é tão vital para a criança, fazendo aquela
brincadeira tão conhecida de esconder dela o rosto com as mãos e depois, para
sua alegria, de descobri-lo de novo. Nessas circunstâncias a criança pode, por
assim dizer, sentir anseio desacompanhado de desespero.
Em conseqüência da incompreensão dos fatos pela
criança, a situação de sentir falta da mãe não é uma situação de perigo mais
uma situação traumática. Ou, para dizê-lo mais corretamente, é uma situação
traumática se acontecer que a criança na época esteja sentindo uma necessidade
que sua mãe seja a pessoa a satisfazer. Transforma-se numa situação de perigo
se essa necessidade não estiver presente no momento. Assim, o primeiro
determinante da ansiedade, que o próprio ego introduz, é perda de percepção do
objeto (que é equacionada com a perda do próprio objeto). Ainda não se trata de
perda de amor. Posteriormente, a experiência ensina à criança que o objeto pode
estar presente mas aborrecido com ela; e então a perda de amor a partir do
objeto se torna um novo perigo e muito mais duradouro e determinante de
ansiedade.
A situação traumática de sentir falta da mãe
difere num aspecto importante da situação traumática de nascimento. No
nascimento não existia qualquer objeto e dessa forma não se podia sentir falta
alguma deste. A ansiedade era a única reação que ocorria. Desde então,
repetidas situações de satisfação criaram um objeto da mãe e esse objeto,
sempre que a criança sente uma necessidade, recebe uma intensa catexia que pode
ser descrita como de ‘anseio’. A dor é assim a reação real à perda de objeto,
enquanto a ansiedade é a reação ao perigo que essa perda acarreta e, por um
deslocamento ulterior, uma reação ao perigo da perda do próprio objeto.
Sabemos também muito pouco sobre a dor. O único
fato do qual temos certeza é que a dor ocorre em primeiro lugar e como uma
coisa regular sempre que um estímulo que incide na periferia irrompe através
dos dispositivos do escudo protetor contra estímulos e passa a atuar como um
estímulo instintual contínuo, contra o qual a ação muscular, que é em geral
efetiva porque afasta do estímulo o ponto que está sendo estimulado, é
impotente. Se a dor provier não de uma parte da pele mas de um órgão interno, a
situação é ainda a mesma. Tudo que aconteceu é que uma parte da periferia
interna ocupou o lugar da periferia externa. A criança obviamente tem ocasião de
sofrer experiências de dor dessa classe, que são independentes das necessidades
de experiência da criança. Esse determinante da geração de dor parece, contudo,
ter muito pouca semelhança com a perda de um objeto. E além disso, o elemento
que é essencial à dor, o estímulo periférico, está de todo ausente da situação
de anseio da criança. Contudo, não pode ser para nada que o uso comum da
palavra tenha criado a idéia de dor interna mental e tenha tratado o sentimento
de perda de objeto como equivalente à dor física.
Quando há dor física, ocorre um alto grau do
que pode ser denominado de catexia narcísica do ponto doloroso. Essa catexia
continua a aumentar e tende, por assim dizer, a esvaziar o ego.Sabe-se que
quando os órgãos internos nos transmitem dor recebemos representações espaciais
e outras representações de partes do corpo que de maneira comum não são
absolutamente representadas em ideação consciente. Ademais, o fato marcante de
que, quando há um desvio psíquico ocasionado por algum outro interesse, mesmo
as dores físicas mais intensas deixam de seguir (não devo dizer ‘permanecem
inconscientes’ nesse caso) pode ser explicado por haver uma concentração de
catexia no representante psíquico da parte do corpo que está emitindo dor.
Penso ser aqui que encontraremos o ponto de analogia que tornou possível levar
sensações de dor até a esfera mental, pois a intensa catexia de anseio que está
concentrada no objeto do qual se sente falta ou que está perdido (uma catexia
que aumenta com firmeza porque não pode ser apaziguada) cria as mesmas
condições econômicas que são criadas pela catexia da dor que se acha
concentrada na parte danificada do corpo. Assim, o fato da acusação periférica
da dor física pode ser deixado de lado. A transição da dor física para a mental
corresponde a uma mudança da catexia narcísica para a catexia de objeto. Uma
representação de objeto que esteja altamente catexizada pela necessidade
instintual desempenha o mesmo papel que uma parte do corpo catexizada por um
aumento de estímulo. A natureza contínua do processo catexial e a
impossibilidade de inibi-lo produzem o mesmo estado de desamparo mental. Se o
sentimento de desprazer que então surge tem o caráter específico de dor (um
caráter que não pode ser descrito mais exatamente) em vez de manifestar-se na
forma reativa de ansiedade, plausivelmente podemos atribuir isso a um fator do
qual ainda não fizemos suficientemente uso em nossas explicações - o alto nível
de catexia e ‘ligação’ que predomina enquanto ocorrem esses processos
queconduzem a um sentimento de desprazer. Conhecemos ainda outra reação
emocional à perda de um objeto, que é o luto. Mas não temos mais qualquer
dificuldade em explicá-la. O luto ocorre sob a influência do teste de
realidade, pois a segunda função exige categoricamente da pessoa desolada que
ela própria deva separar-se do objeto, visto que ele não mais existe. Ao luto é
confiada a tarefa de efetuar essa retirada do objeto em todas aquelas situações
nas quais ele foi o recipiente de elevado grau de catexia. Que essa situação
deva ser dolorosa ajusta-se ao que acabamos de dizer, em vista da catexia de
anseio, elevada e não passível de satisfação, que está concentrada no objeto
pela pessoa desolada durante a reprodução das situações nas quais ela deve
desfazer os laços que a ligam a ele.
APÊNDICE A: REPRESSÃO
E DEFESA
O relato que Freud faz na [1] e [2] da história
de seu uso dos dois termos talvez seja um pouco confusa, e seja como for merece
ser ampliada. Ambos ocorreram muito livremente durante o período de Breuer. O
primeiro aparecimento de ‘repressão (Verdrängung)’ foi na ‘Comunicação
Preliminar’ (1893a), Edição Standard Brasileira, Vol, II, p. 51 IMAGO Editora,
1974, e o de ‘defesa (Abwehr)’ foi no primeiro artigo sobre ‘The
Neuro-Psychoses of Defense (1894a). Nos Estudos sobre a Histeria (1895d),
‘repressão’ apareceu cerca de doze vezes e ‘defesa’ um pouco mais que isso.
Parece ter havido certa discriminação, contudo, entre o emprego dos termos:
‘repressão’ parece ter descrito o processo real, e ‘defesa’ o motivo dele. Não
obstante, no prefácio à primeira edição dos estudos (Edição Standard
Brasileira, Vol. II, p. 37, IMAGO Editora, 1974) os autores parecem haver
equacionado os dois conceitos, porquanto mencionaram sua opinião de que a
‘sexualidade parece desempenhar um papel principal... como motivo para “defesa”
- isto é, para reprimir idéias da consciência’. E, ainda mais explicitamente,
Freud, no primeiro parágrafo de seu segundo artigo sobre ‘The Neuro-Psychoses
of Defense’ (1896b) aludiu ao ‘processo psíquico de “defesa” ou “repressão”’.
Após o período de Breuer - isto é, mais ou
menos a partir de 1897 - houve uma redução na freqüência do uso de ‘defesa’.
Não foi abandonada inteiramente, contudo, e será encontrada várias vezes, por
exemplo, no Capítulo VII da primeira edição de The Psychopathology of Everyday
Life (1910b) e na Seção 7 do Capítulo VII do livro de chistes (1950c). Mas
‘repressão’ já estava começando a predominar, tendo sido quase exclusivamente
empregada no caso clínico de ‘Dora’ (1950e) e nos Três Ensaios (1905d). E logo
depois disto, chamou-se explicitamente a atenção para a mudança, num artigo
sobre sexualidade das neuroses (1906a), datado de junho de 1905. No curso de um
levantamento histórico de seus pontos de vista, e ao tratar do período
pós-Breuer imediato, Freud teve ocasião de mencionar o conceito e escreveu:
‘... “repressão” (como eu começara a dizer, em vez de “defesa”)...’ (Edição
Standard Brasileira, Vol. VII, p. 288, IMAGO Editora, 1972).A ligeira
inexatidão que tinha começado a aparecer nessa frase tornou-se mais acentuada
numa frase paralela em ‘A História do Movimento Psicanalítico’ (1914d), Edição
Standard Brasileira, Vol. XIV, p. 20, IMAGO Editora, 1974. Aqui Freud, mais uma
vez escrevendo sobre o término do período de Breuer, observou: ‘encarava a
própria divisão psíquica como o efeito de um processo de repulsão que naquela
ocasião denominei de “defesa”, e depois, de “repressão”.’
Após 1905 a predominância de ‘repressão’
aumentou ainda mais, até que, por exemplo, na análise do ‘Rat Man’ (1909d),
vamos encontrar (Standard Ed., 10, 196) Freud falando de ‘duas espécies de
repressão’, utilizadas respectivamente em histeria e neurose obsessiva. Este é
um exemplo especialmente simples onde, no esquema revisto sugerido no presente
trabalho, ele teria falado de ‘duas espécies de defesa‘.
Mas não foi muito antes da utilidade de
‘defesa’ como um termo mais abrangente que ‘repressão’ começou discretamente a
surgir - particularmente nos artigos metapsicológicos. Assim, as ‘vicissitudes’
dos instintos, um dos quais somente é ‘repressão’, foram consideradas como
‘modalidades de defesa‘ contra eles (Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, Pp.
147, 153 e 170, IMAGO Editora, 1974), e, mais uma vez, ‘projeção’ foi
mencionada como um ‘mecanismo’ ou ‘meio de defesa’ (ibid., 211 e 255). Somente
dez anos depois, contudo, no presente trabalho, é que se reconheceu
explicitamente a conveniência de distinguir entre o emprego dos dois termos.
APÊNDICE B: LISTA DE
ESCRITOS DE FREUD QUE TRATAM PREDOMINANTEMENTE OU EM GRANDE PARTE DA ANSIEDADE
[O tópico da ansiedade ocorre em um número
muito grande (talvez na maioria) dos escritos de Freud. A relação seguinte
poderá, não obstante, ser de algum uso prático. A data no início de cada
registro é a do ano no qual o trabalho em questão provavelmente foi escrito. A
data no final é a de publicação, e sob essa data maiores pormenores da obra
serão encontrados na Bibliografia e Índice de Autores. Os itens entre colchetes
foram publicados postumamente.]
[1893 Rascunho B. ‘The Aetiology of the
Neuroses’, Seção II. (1950a)]
[1894
Rascunho E. ‘How Anxiety Originates’. (1950a)]
[1894 Rascunho F. ‘Collection III’, Nº 1. (1950
a)]
[1895 (?) Rascunho J. (1950a)]
1894 ‘Obsessions and Phobias’, Seção II. (1895c)
1895
‘On the grounds for Detaching a Particular Syndrome from Neurasthenia under the
description “Anxiety Neurosis”.’ (1895b)
1895
‘A Reply to Criticisms of my Paper on Anxiety Neurosis’. (1895f)
1909
‘Analysis of a Phobia in a Five-Year-Old Boy’. (1909b)
1910 ‘Psicanálise “Silvestre”.’ (1910k)
1914
‘From the History of an Infantile neurosis’. (1918b)
1917 Conferências Introdutórias sobre
Psicanálise, Conferência XXV. (1916-17)
1925 Inibições, Sintomas e Ansiedade. (1926d)
1932 New Introductory Lectures on Psycho-Analysis,
Conferência XXXII (Primeira Parte). (1933a)
A QUESTÃO DA ANÁLISE LEIGA: CONVERSAÇÕES COM UMA
PESSOA IMPARCIAL (1926)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
DIE
FRAGE DER LAIENANALYSE
Unterredungen
mit einem Unparteiischen
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1926
Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 123 Pp.
1928
G.S., 11, 307-84.
1948
G.W., 14, 209-86.
1927 ‘Nachwort zur Frage der Laienanalyse‘, Int. Z.
Psychoanal., 13 (3), 326-32
1928 G.S., 11, 385-94.
1948 G.W., 14, 287-96.
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
The
Problem of Lay-Analyses
1927 Em The Problem of Lay-Analyses, Nova Iorque:
Brentano. Pp. 25-186. (Trad. de A. P. Maerker-Branden; pref. de S. Ferenczi.) O
volume abrange também An Autobiographical Study (ver acima, p. 14).
The Question of Lay-Analysis: an Introduction to
Psycho-Analysis
1947 Londres: Imago Publishing Co. vi + 81 Pp. (Trad. de N.
Procter-Gregg; pref.de Ernest Jones.)
1950
Nova Iorque: Norton. 125 Pp. (Reimpressão da anterior.)
1927 ‘Concluding Remarks on the Question of Lay
Analysis’ Int. J. Psycho-Anal., 8 (3), 392-8. (Trad. não especificada.)
1950 ‘Postcript to a Discussion on Lay Analysis’,
C.P., 5, 205-14. (Trad.
de James Strachey.)
Um resumo do original alemão, sob o título
‘Psychoanalyse und Kurpfuscherei’ (‘Psicanálise e Charlatanismo’), foi incluído
em Almanach 1927, 47-59, publicado em setembro de 1926 mais ou menos na mesma
época que o próprio volume. A presente tradução inglesa da obra principal (com
um subtítulo diferente) é um trabalho inteiramente novo de James Strachey; a
tradução do ‘Pós-Escrito’ é uma reimpressão revista da publicada em 1950.Em
fins da primavera de 1926 foi dado início a um processo, em Viena, contra
Theodor Reik, proeminente membro não-médico da Sociedade Psicanalítica de Viena.
Foi acusado, segundo informações prestadas por alguém que ele viera tratando
analiticamente, de violação de uma antiga lei austríaca contra ‘charlatanismo’
- lei que tornava ilegal que uma pessoa sem um grau médico tratasse de
pacientes. Freud de imediato interveio energicamente. Ele discutiu o caso
privadamente com um funcionário de alta categoria, e passou a preparar o
presente trabalho para publicação imediata. Começou a escrevê-lo no fim de
junho, e antes do fim de julho ele estava em impressão, vindo a lume em
setembro. Em parte, talvez, como resultado de sua intervenção, mas em parte
porque as provas foram insatisfatórias, o promotor público encerrou o processo
após uma investigação preliminar. (Ver o ‘Pós-Escrito’, [1].)
O assunto, contudo, não parou aí. A publicação
do trabalho de Freud situou em primeiro plano as acentuadas diferenças de
opinião sobre a permissibilidade da psicanálise não-médica que existiam no
âmbito das próprias sociedades psicanalíticas. Considerou-se aconselhável,
portanto, ventilar a questão, e uma longa série de opiniões abalizadas (28 ao
todo) de analistas de vários países foi publicada em 1927 nos dois periódicos
oficiais - em alemão no Internationale Zeischrift (Partes 1, 2 e 3 do volume
XIII) e em inglês no International Journal (Partes 2 e 3 do Volume VIII). A
série foi concluída pelo próprio Freud num pós-escrito (impresso adiante,
[1])no qual ele responde aos argumentos dos seus opositores e enunciou
novamente seu próprio caso.
Um relato bem completo dos pontos de vista de
Freud sobre o assunto será encontrado no Capítulo IX (‘Lay-Analysis’) do
terceiro volume da biografia de Freud por Ernest Jones (1957, 309 e segs.).
Desde os primeiros tempos ele se apegou vigorosamente à opinião de que a
psicanálise não devia ser considerada puramente como uma preocupação da
profissão médica. Sua primeira expressão em letra de forma sobre o assunto
parece ter sido em seu prefácio, de 1913, a um livro de Pfister (Freud 19143b);
e em carta (citada por Jones, ibid., 323), escrita bem no fim de sua vida, em
1938, ele declarou que ‘Jamais repudiei esses pontos de vista e insisto neles
ainda mais intensamente do que antes’. Mas foi no trabalho que se segue que
discutiu o assunto mais de perto e plenamente.
Independente, contudo, do exame da questão da
análise leiga, Freud apresentou nas páginas seguintes o que foi talvez seu
relato não técnico mais bem-sucedido da teoria e prática da psicanálise,
escrito no seu estilo mais vivo e leve. A parte teórica, em particular, possui
a vantagem sobre suas obras expositórias mais antigas de haver sido elaborada
após a grande elucidação de seus pontos de vista sobre a estrutura da mente em
O Ego e o Id (1923b).
A QUESTÃO DA ANÁLISE LEIGA:
CONVERSAÇÕES COM UMA PESSOA IMPARCIAL
INTRODUÇÃO
O título deste pequeno trabalho não é de pronto
inteligível. Portanto, eu o explicarei. ‘Leigo’ = ‘Não-médico’; e a questão é
se os não-médicos bem como os médicos devem ter permissão para praticar a
análise. Essa questão tem suas limitações tanto no tempo como no espaço. No
tempo, porque até agora ninguém se preocupou com quem pratica a análise. Na
realidade, as pessoas se têm preocupado pouquíssimo com isto - a única coisa
com a qual estavam concordes era o desejo de que ninguém devia praticá-la.
Várias razões foram dadas para isto, mas se basearam na mesma falta de gosto
fundamental. Assim, a exigência de que somente médicos devem analisar
corresponde a uma atitude nova e aparentemente mais amistosa em relação à
análise - se, isto é, ela puder escapar à desconfiança de ser, afinal de
contas, apenas um derivado ligeiramente modificado da atitude mais antiga.
Admite-se que em certas circunstâncias um tratamento analítico seja
empreendido; mas, se for assim, somente os médicos devem empreendê-lo. O motivo
dessa restrição torna-se assim um assunto de indagação.
A questão está limitada no espaço porque não
surge em todos os países com igual significado. Na Alemanha e nos Estados
Unidos isto não passaria de uma discussão acadêmica, pois naqueles países
qualquer paciente pode submeter-se a tratamento e por quem ele escolher, e
qualquer um que ele escolha pode, como um ‘charlatão’, lidar com quaisquer
pacientes, contanto somente que ele assuma a responsabilidade de suas ações. A
lei não intervém até que seja chamada a sanar algum dano causado ao paciente.
Mas na Áustria, na qual e para a qual escrevo, existe uma lei preventiva, que
proíbe aos não-médicos empreenderem o tratamento de pacientes, sem aguardar o
seu resultado. Dessa forma, aqui a questão de se leigos ( = não-médicos) podem
tratar pacientes pela psicanálise tem um sentido prático. Logo que é levantada,
contudo, parece ser solucionada pela letra da lei. Os neuróticos são pacientes,
os leigos são não-médicos, a psicanálise é um método paramétodo para curar ou
melhorar as perturbações nervosas, e todos esses tratamentos ficam reservados a
médicos. Depreende-se que não se permite aos leigos praticar a análise em
neuróticos, sendo puníveis se não obstante agirem dessa maneira. Sendo a
posição tão simples, dificilmente alguém se aventura a chamar a si a questão da
análise leiga. Ainda assim, há certas complicações, com as quais a lei não se
preocupa, mas que não obstante exigem consideração. Talvez venha a acontecer
que nesse caso os pacientes não sejam como outros, que os leigos não sejam
realmente leigos, e que os médicos não tenham exatamente as mesmas qualidades
que se teria o direito de esperar deles e nos quais suas alegações devem
basear-se. Se isto puder ser provado, haverá fundamentos justificáveis para
exigir que a lei não seja aplicada sem modificação ao caso perante nós.
I
Isto acontecer dependerá das pessoas que não
são obrigadas a estar familiarizadas com as peculiaridades de um tratamento
analítico. Constitui nossa tarefa dar informações sobre o assunto a essas pessoas
imparciais, que presumimos estejam, no momento, ainda em ignorância. É de
lamentar-se que não possamos permitir-lhes a presença como auditório, em um
tratamento dessa espécie. Mas a ‘situação analítica’ não permite a presença de
terceiros. Além disso, as diferentes sessões são de valor muito desigual. Um
ouvinte não autorizado que por acaso presenciasse uma delas em geral não
formaria qualquer impressão útil; ele correria o perigo de não compreender o
que se estava passando entre o analista e o paciente, ou ficaria enfadado. Por
bem ou por mal, portanto, ele deve contentar-se com nossas informações, que
tentaremos tornar tão dignas de confiança quanto possível.
Um paciente, então, pode estar sofrendo de
flutuações em seus estados de ânimo que ele pode controlar, ou de um sentimento
de desalento pelo qual sua energia se sente paralisada porque pensa ser incapaz
de fazer algo adequadamente, ou de um constrangimento entre estranhos. Poderá
perceber, sem compreender a razão disso, que tem dificuldades em executar seu
trabalho profissional, ou na realidade qualquer decisão relativamente
importante ou qualquer empreendimento. Ele poderá um dia ter sofrido de um
ataque aflitivo - desconhecido em sua origem - de sentimentos de ansiedade, e
desde então tornou-se incapaz, sem luta, de caminhar sozinho pela rua, ou de
viajar de trem; talvez tenha tido de desistir de ambos inteiramente. Ou, coisa
bem marcante, seus pensamentos poderão seguir seu próprio curso e se recusarem
a ser dirigidos pela vontade do paciente. Eles perseguem problemas que lhes são
inteiramente indiferentes, mas dos quais não pode livrar-se. Tarefas bem
ridículas lhe são também impostas, tais como contar as janelas das frentes das
casas. E quando tiver realizado ações simples como pôr uma carta no correio ou
desligar um bico de gás, ele se encontra, um momento depois, a duvidar se
realmente agiu assim. Isto poderá não ser mais do que aborrecimento e uma
amolação. Mas seu estado se torna intolerável se súbito verificar ser incapaz
de desviar a idéia de que empurrou uma criança para debaixo das rodas de um
carro ou de que lançou um estranho da ponte dentro d’água, ou se tem de
perguntar a si mesmo se não é o assassino que a polícia está à procura em
relação a um crime que foi descoberto naquele dia. Isto é pura tolice, como ele
próprio sabe; jamais cometeu dano algum contra alguém, mas se fosse realmente o
assassino que está sendo procurado, seu sentimento - seu sentimento de culpa -
não poderia ser mais forte.Ou ainda nosso paciente - e dessa vez vamos
considerá-lo como mulher - pode sofrer de outra forma e em campo diferente. Ela
é pianista, mas os dedos estão dominados pela cãibra e se recusam a servi-la.
Ou quando pensa em ir a uma recepção ela de pronto se torna cônscia de um apelo
da natureza cuja satisfação seria incompatível com uma reunião social. Ela
desistiu, portanto, de freqüentar festas, bailes, teatros ou concertos. Ela se
acha dominada por violentas dores de cabeça ou outras sensações dolorosas em
ocasiões que são as mais inconvenientes. Poderá até ser incapaz de sustentar no
estômago qualquer refeição que venha a ingerir - o que pode, em última análise,
tornar-se perigoso. E, finalmente, constitui um fato lamentável que não possa
tolerar quaisquer agitações, que afinal de contas são inevitáveis na vida. Em
tais ocasiões ela sofre um desmaio, muitas vezes acompanhado por espasmos
musculares que recordam estados patológicos sinistros.
Outros pacientes, além disso, sofrem de
perturbações num campo específico no qual a vida emocional converge com
exigências de natureza corpórea. Se são homens, verificam ser incapazes de dar
expressão física aos seus sentimentos mais ternos para com o sexo oposto,
enquanto em relação aos objetos menos amados talvez possam ter todas as reações
sob seu domínio. Ou seus sentimentos sensuais ligam-nos a pessoas que desprezam
e das quais gostariam de livrar-se; ou esses mesmos sentimentos impõem
exigências a eles cuja realização eles próprios acham repulsiva. Se são
mulheres, sentem-se impedidas pela ansiedade ou repulsa ou por obstruções
desconhecidas quanto ao atendimento das exigências da vida sexual; ou, se se
entregaram ao amor, constatam ter-lhes sido negada a fruição que a natureza
proporcionou como recompensa por tal atendimento.
Todas essas pessoas reconhecem estar doentes e
recorrem a médicos, por meio dos quais as pessoas esperam que perturbações
nervosas como essas sejam eliminadas. Os médicos também formulam as categorias
nas quais se acham divididos esses males. Eles os diagnosticam, cada um de
acordo com seu próprio ponto de vista, sob nomes diferentes: neurastenia,
psicastenia, fobias, neurose obsessiva, histeria. Examinam os órgãos que
produzem os sintomas, o coração, o estômago, os intestinos, a genitália, e
concluem que estão sãos. Recomendam interrupções no modo de vida habitual do
paciente, exercícios de fortalecimento, tônicos, e por esses meios ocasionam
melhorias habituais - ou absolutamente nenhum resultado. Eventualmente, os
pacientes vêm a saber que há pessoas interessadas de modo bem especial no
tratamento de tais males e iniciam com elas uma análise.
Durante essa indagação sobre os sintomas dos
neuróticos, a Pessoa Imparcial, que imagino estar presente, vem mostrando
sinais de impaciência.Nesse ponto, contudo, ela se torna atenta e interessada.
‘Então agora’, diz ela ‘saberemos o que o analista faz com o paciente a quem o
médico foi incapaz de ajudar’.
Nada acontece entre eles, salvo que conversam
entre si. O analista não faz uso de qualquer instrumento - nem mesmo para
examinar o paciente - nem receita quaisquer remédios. Se mesmo for possível,
deixa até o paciente em seu ambiente e no seu modo de vida habitual durante o
tratamento. Essa não é uma condição necessária, naturalmente, e talvez nem
sempre seja praticável. O analista concorda em fixar um horário com o paciente,
faz com que ele fale, ouve o que ele diz, por sua vez conversa com ele e faz
com que ele ouça.
As feições da Pessoa Imparcial agora revelam
sinais de alívio e relaxamento inegáveis, mas também traem claramente certo
desprezo. É como se ela estivesse pensando: ‘Nada mais do que isto? Palavras,
palavras, palavras, como diz o príncipe Hamlet.’ E sem dúvida ela também está
pensando na fala zombeteira de Mefistófeles sobre com que conforto se pode ir
passando com palavras - versos que nenhum alemão jamais esquecerá.
‘Assim é uma espécie de mágica’, comenta ela:
‘O senhor fala e dissipa seus males.’
Isto mesmo. Seria mágica se surtisse efeito um
pouco mais rapidamente. Um atributo essencial de um mágico é a rapidez -
poder-se-ia dizer a subitaneidade - do sucesso. Mas os tratamentos analíticos
levam meses e mesmo anos: mágica tão lenta perde seu caráter miraculoso. E
incidentalmente não desprezemos a palavra. Afinal de contas, ela é um
instrumento poderoso; é o meio pelo qual transmitimos nossos sentimentos a
outros, nosso método de influenciar outras pessoas. As palavras podem fazer um
bem indizível e causar terríveis feridas. Sem dúvida ‘no começo foi a ação’ e a
palavra veio depois; em certas circunstâncias ela significou um progresso da
civilização quando os atos foram amaciados em palavras. Mas originalmente a
palavra foi magia - um ato mágico; e conservou muito de seu antigo poder.
A Pessoa Imparcial continua: ‘Suponhamos que o
paciente não esteja mais bem preparado para compreender o tratamento analítico
do que eu; então como o senhor vai fazê-lo acreditar na magia da palavra ou da
fala que deve libertá-lo de seus sofrimentos?’Algum preparo deve naturalmente
ser-lhe proporcionado, havendo uma maneira simples de fazê-lo. Convidá-lo a ser
inteiramente sincero com o seu analista, nada refrear intencionalmente que lhe
venha à cabeça, e portanto pôr de lado toda reserva que o possa impedir de
informar sobre certos pensamentos ou lembranças. Cada um está cônscio de que
existem certas coisas em si que não estaria absolutamente disposto a contar a
outras pessoas ou que consideraria inteiramente fora de cogitação revelar. São
elas suas ‘intimidades’. Essa pessoa também não tem qualquer idéia - e isto
representa um grande progresso no autoconhecimento psicológico - de que há
outras coisas que alguém não se importaria de admitir para consigo: coisas que
alguém gosta de ocultar de si próprio e que por esse motivo interrompe e
expulsa de seus pensamentos se, apesar de tudo, vierem à tona. Talvez ela
própria observe que um problema psicológico muito marcante começa a aparecer
nessa situação - um pensamento seu sendo mantido em segredo para seu próprio eu
(self). É como se seu próprio eu (self) não fosse mais a unidade que ela sempre
considerou que fosse, como se houvesse algo mais também nela que pudesse
enfrentar esse eu (self). Ela pode tornar-se obscuramente cônscia de um
contraste entre um eu (self) e uma vida mental no sentido mais lato. Se agora
ela aceita a exigência feita pela análise de que dirá tudo, facilmente se
tornará acessível a uma expectativa de que ter relações e trocas de pensamento
com alguém sob condições inusitadas talvez possa também levar a resultados
inusitados.
‘Compreendo’, diz nossa Pessoa Imparcial. ‘O
senhor presume que todo neurótico tem algo que o oprime, algum segredo. E
fazendo-o contar-lhe a respeito disto o senhor alivia sua opressão e lhe faz
bem. Isto, naturalmente, é o princípio da confusão, que a Igreja Católica
utiliza desde tempos imemoriais a fim de assegurar seu domínio sobre as mentes
das pessoas.’
Devemos responder: ‘Sim e não!’ A confissão sem
dúvida desempenha seu papel na análise como uma introdução a ela, poderíamos
dizer. Mas está muito longe de constituir a essência da análise ou de
explicar-lhe os efeitos. Na confissão o pecador conta o que sabe; na análise o
neurótico tem mais a dizer. Nem ouvimos falar que confissão tenha desenvolvido
força suficiente para eliminar sintomas patológicos reais.
‘Então, afinal de contas, eu não compreendo’,
retruca nosso interlocutor. ‘O que possivelmente o senhor quer dizer por
“dizendo mais do que ele sabe”? Mas posso muito bem acreditar que como analista
o senhor consegue uma influência mais acentuada sobre seus pacientes do que um
padre confessor sobre seus penitentes, visto que os contatos do senhor com ele
são muito mais longos, mais intensos e também mais individuais, e visto que
osenhor emprega essa maior influência para desviá-lo de seus pensamentos doentios,
para que, pela conversa, ele se livre de seus temores, e assim por diante. Por
certo seria estranho se fosse possível por tais meios controlar também
fenômenos puramente mecânicos, tais como vômitos, diarréia e convulsões; mas
sei que uma influência como esta é de fato bem possível se uma pessoa for
levada a um estado de hipnose. Pelo trabalho que o senhor tem com o paciente
provavelmente consegue provocar uma relação hipnótica dessa natureza com ele -
uma ligação sugestiva com o senhor mesmo - muito embora o senhor talvez tenha
essa intenção; e nesse caso os resultados miraculosos do seu tratamento são o
efeito de sugestão hipnótica. Mas, que eu saiba, o tratamento hipnótico atua
com muito maior rapidez do que a sua análise, a qual, conforme me diz, dura
meses e anos.’
Nossa Pessoa Imparcial não pode nem ser tão
ignorante nem tão perplexa como de início pensamos. Há sinais inegáveis de que
ela está tentando compreender a psicanálise com a ajuda do seu conhecimento
anterior, de que está tentando ligá-la com algo que já conhece. Encontra-se
agora diante de nós a difícil tarefa de tornar-lhe claro que ela não será
bem-sucedida nisto: que a análise é um procedimento sui generis, algo novo e
especial, que só pode ser compreendida com o auxílio de novas compreensões
internas (insights) - ou hipóteses, se isto soar melhor. Mas ela ainda está
aguardando nossas respostas a suas últimas observações.
O que se diz sobre a influência pessoal do
analista certamente merece grande atenção. Uma influência existe e desempenha
relevante papel na análise - mas não o mesmo papel que no hipnotismo. Deve ser
possível convencê-lo de que as situações nos dois casos são bem diferentes.
Talvez seja bastante ressaltar que não devemos utilizar essa influência
pessoal, o fator de ‘sugestão’, para suprimir os sintomas da doença, como
ocorre com a sugestão hipnótica. Ademais, seria um erro crer que esse fator é o
veículo e promotor do tratamento em toda sua extensão. No seu início, sem
dúvida. Mas depois ele se opõe às nossas intenções analíticas e nos força a
adotar as contramedidas mais exageradas. E eu gostaria de mostrar por um
exemplo quão longe estão da técnica da análise o desviar os pensamentos de um
paciente e pela conversa afastá-lo dos problemas. Se um paciente nosso estiver sofrendo
de um sentimento de culpa, como se ele houvesse perpetrado um crime grave, não
recomendamos que ele despreze seus escrúpulos de consciência e não frise sua
reconhecida inocência; ele próprio muitas vezes tentou fazê-lo sem êxito. O que
fazemos é recordar-lhe que um sentimento tão forte e persistente deve, afinal
de contas, estar baseado em algo real, que talvez possa ser possível
descobrir.{#V20_P186} ‘Surpreender-me-ia’, comenta a Pessoa Imparcial, ‘se o
senhor fosse capaz de aliviar seus pacientes concordando com o sentimento de
culpa deles dessa maneira. Mas quais são suas intenções analíticas? e que faz o
senhor com seus pacientes?’
II
Se devo dizer algo de inteligível ao leitor,
sem dúvida terei de dizer-lhe alguma coisa sobre uma teoria psicológica que não
é conhecida ou que não é apreciada fora dos círculos analíticos. Será fácil
deduzir dessa teoria o que desejamos de nossos pacientes e como obtê-lo. Eu lhe
exporei isto dogmaticamente, como se fosse uma estrutura teórica completa. Mas
não suponha ele que ela surgiu como essa estrutura, como um sistema filosófico.
Nós a desenvolvemos lentamente, lutando com todos os pequenos detalhes da
mesma, temo-la modificado sem cessar, mantendo um contato contínuo com a
observação, até que ela finalmente adquiriu uma forma na qual parece ser
suficiente para nossas finalidades. Apenas há poucos anos tive de revestir essa
teoria em outros termos. Nem, naturalmente, posso garantir-lhe que a forma como
ela é expressa hoje continue a ser defendida. A ciência, como se sabe, não é
uma revelação; muito depois dos seus primórdios ainda lhe faltam os atributos
de determinação, imutabilidade e infalibilidade pelos quais o pensamento humano
tão profundamente anseia. Mas tal como ela é, é tudo que podemos ter. Se quiser
ainda ter em mente que a nossa ciência é muito jovem, não chegando quase a ser
tão velha quanto o século, e que ela se interessa pelo que seja talvez o
material mais difícil que possa ser o assunto de pesquisa humana, facilmente
será capaz de adotar a atitude correta no tocante à minha exposição. Mas
interrompa-me sempre que se sentir inclinado, se não puder seguir-me ou se
desejar outras explicações.
‘Eu o interrompi antes mesmo de haver começado.
O senhor diz que pretende expor-me uma nova psicologia: mas devo ter pensado
que a psicologia não era nenhuma nova ciência. Tem havido bastantes psicologias
e psicólogos, e ouvi falar em grandes realizações nesse campo quando estava na
faculdade.’
Não devo nem sonhar em discuti-las. Mas se o
senhor examinar o assunto mais detidamente terá de classificar essas grandes
realizações como pertencendo antes à fisiologia dos órgãos dos sentidos. A
teoria da vida mental não poderia ser desenvolvida, porque estava inibida por
uma única incompreensão essencial. O que ela abrange hoje, como é ensinada na
faculdade? Independente dessas valiosas descobertas na fisiologia dos sentidos,
grande número de classificações e definições de nossos processos mentais que,
graças ao uso lingüístico, se tornou o patrimônio comum de toda pessoa educada.
Isto não era suficiente para dar uma visão de nossa vida mental. O senhor não
observou que todo filósofo, todo escritor de imaginação, todo historiador e
todo biógrafo compõem sua própria psicologia para si, formulam suas próprias
hipóteses específicas concernentes às interligações e finalidades dos atos
mentais - tudo mais ou menos plausível e tudo igualmente indigno de confiança?
Existe evidente falta de qualquer fundamento comum. E é por esse motivo também
que no campo da psicologia não há, por assim dizer, qualquer respeito e
qualquer autoridade, Nesse campo cada um pode ‘correr sem governo’ conforme lhe
aprouver. Se o senhor levantar uma questão de física ou de química, qualquer
pessoa sabedora de que não possui ‘conhecimento técnico’ algum calará a boca.
Mas se o senhor aventurar-se numa asserção psicológica, deve estar preparado
para fazer face a julgamento e contradição de todos os setores. Nesse campo,
aparentemente, não existe ‘conhecimento técnico’ algum. Mas isto me surpreende
como um título legal inadequado. Conta-se a história de uma pessoa a quem, ao
candidatar-se a um emprego como ama de crianças, foi feita a pergunta se sabia
cuidar de bebês. ‘Naturalmente’, retrucou ela, ‘ora, afinal de contas, eu
própria já fui bebê.’
‘E o senhor alega que descobriu esse
“fundamento comum” da vida mental, que foi desprezado por todo psicólogo, a
partir de observações de pessoas doentes?’
A fonte dos nossos achados não me parece
privá-los do seu valor. A embriologia, para citar um exemplo, não mereceria ser
digna de fé se não pudesse dar uma explicação clara da origem das deformações
inatas. Já lhe falei de pessoas cujos pensamentos seguem seu próprio curso de
modo que elas são obrigadas a preocupar-se com problemas aos quais são
inteiramente indiferentes. Você pensa que a psicologia acadêmica jamais poderia
prestar a menor contribuição no sentido de explicar uma anormalidade como essa?
E, afinal de contas, todos temos a experiência, à noite, de os nossos
pensamentos seguirem o seu próprio curso e criarem coisas que não
compreendemos, que nos intrigam e que são suspeitamente rememorativas de
produtos patológicos. Nossos sonhos, quero dizer. As pessoas comuns sempre têm
firmemente acreditado que os sonhos têm um sentido e um valor - que significam
alguma coisa. A psicologia acadêmica jamais foi capaz de nos informar qual é
esse significado. Ela nada pode inferir dos sonhos. Se tentasse produzir
explicações, estas seriam não-psicológicas - como remontá-las a estímulos
sensoriais ou a uma profundidade desigual de sono em diferentes partes do
cérebro, e assim por diante. Mas é justo dizer que uma psicologia que não pode
explicar os sonhos é também inútil para a compreensão da vida mental normal, e
que ela não pode reivindicar a denominação de ciência.
‘O senhor está-se tornando agressivo; dessa
forma evidentemente atingiu um ponto sensível. Ouvi dizer, é verdade, que na
análise grande valor éatribuído aos sonhos, que eles são interpretados etc. Mas
também soube que a interpretação dos sonhos é deixada ao capricho dos
analistas, e que eles próprios jamais deixariam de discutir a maneira de
interpretar os sonhos e a justificativa para tirar conclusões dos mesmos. Se
isto for assim, o senhor não deve sublinhar de maneira tão acentuada a vantagem
que a análise conquistou sobre a psicologia acadêmica.’
Existe realmente grande dose de verdade no que
o senhor diz. É certo que a interpretação dos sonhos chegou a ter importância
incomparável tanto para a teoria como para a prática da análise. Se pareço ser
agressivo, isto é apenas uma maneira de defender-me. E ao pensar em todo o mal
que alguns analistas têm causado com a interpretação de sonhos, quase perco a
coragem e repito o pronunciamento pessimista do nosso grande satirista Nestroy,
quando este diz que cada grande passo à frente é apenas a metade do que parece
ser de início. Mas o senhor já verificou que os homens fazem tudo para
confundir e distorcer aquilo de que lançam mão? Com a ajuda de um pouco de
previsão e autodisciplina a maior parte dos perigos da interpretação de sonhos
pode ser evitada com certeza. Mas o senhor há de concordar que nunca chegarei à
minha exposição se nos deixarmos desviar dessa maneira.
‘Sim. Se bem compreendi, o senhor quis falar-me
sobre o postulado fundamental da nova psicologia.’
Não foi com isso que eu desejava começar. Minha
finalidade era deixá-lo ouvir falar sobre os quadros que formamos da estrutura
do aparelho mental no curso dos nossos estudos analíticos.
‘O que o senhor quer dizer pelo “aparelho
mental”? e de que, pergunto eu, é ele construído?’
Logo tornar-se-á claro o que é o aparelho
mental; mas peço-lhe que não me pergunte de que material é ele construído. Isto
não é assunto de interesse psicológico. A psicologia pode ser tão indiferente a
ele como, por exemplo, a óptica pode ser para a questão de se as paredes de um
telescópio são feitas de metal ou de papelão. Deixaremos inteiramente de lado a
linha material de abordagem, mas não a espacial, pois imaginamos o aparelho
desconhecido que serve às atividades da mente como sendo realmente um
instrumento de várias partes (que denominamos de ‘instâncias’), cada uma das
quais desempenha uma função particular e tem uma relação espacial fixa umas com
asoutras: ficando compreendido que por relação espacial - ‘em frente de’ e
‘atrás’, ‘superficial’ e ‘profundo’ - simplesmente queremos dizer em primeiro
lugar uma representação da sucessão regular das funções. Será que me fiz claro?
‘Quase que não. Talvez eu compreenda isto
depois. Mas, em qualquer caso, eis aqui uma estranha anatomia de alma - uma
coisa que, afinal de contas, absolutamente não existe mais para os cientistas.’
O que o senhor espera? É uma hipótese como
tantas outras nas ciências: as mais antigas sempre foram um tanto toscas.
‘Aberta à revisão’, podemos dizer em tais casos. Parece-me aqui desnecessário
recorrer ao ‘como se’ que se tornou tão popular. O valor de uma ‘ficção’ dessa
espécie (como o filósofo Vaihinger a denominaria) depende de quanto se pode
alcançar com sua ajuda.
Mas prosseguindo. Pondo-nos a par dos
conhecimentos cotidianos, reconhecemos nos seres humanos uma organização mental
interpolada entre seus estímulos sensoriais e a percepção das suas necessidades
somáticas, por um lado, e seus atos motores, por outro, e que serve de mediador
entre eles com vistas a uma finalidade particular. Chamamos essa organização de
seu ‘Ich‘ [‘ego’; literalmente, ‘eu’]. Ora, não há novidade alguma quanto a
isso. Cada um de nós faz essa suposição sem ser filósofo, e alguns até mesmo
apesar de serem filósofos. Mas isto, em nossa opinião, não esgota a descrição
do aparelho mental. Além desse ‘eu’, reconhecemos outra região mental, mais
impositiva e mais obscura que o ‘eu’, e a isto denominamos de ‘Es‘ [‘id’;
literalmente, ‘it‘*]. A relação entre os dois deve ser nossa preocupação imediata.
Provavelmente o senhor protestará por termos
escolhido pronomes para descrevermos nossas duas instâncias ou províncias, em
vez de dar-lhes nomes gregos bombásticos. Na psicanálise, contudo, gostamos de
nos manter em contato com o modo popular de pensar e preferimos tornar seus
conceitos cientificamente úteis de preferência a rejeitá-los. Não existe mérito
algum nisto. Somos obrigados a assumir essa linha, pois nossas teorias devem
ser compreendidas por nossos pacientes, que amiúde são muito inteligentes,mas
nem sempre eruditos. O impessoal ‘it‘ está imediatamente ligado com certas
formas de expressões empregadas pelas pessoas normais. ‘Isto (it) me
trespassou’, dizem as pessoas; ‘havia alguma coisa em mim naquele momento mais
forte do que eu.’ ‘C’était plus fort que moi.’
Em psicologia só podemos descrever as coisas
com a ajuda de analogias. Nada existe de peculiar nisto; é também o caso
alhures. Mas temos que estar constantemente a modificar essas analogias, pois
nenhuma delas nos dura bastante. Em conseqüência, ao tentar tornar clara a
relação entre o ego e o id, devo pedir-lhe que imagine o ego como uma espécie
de fachada do id, como uma frontaria, como uma camada externa e cortical deste.
Podemos apegar-nos a essa última analogia. Sabemos que as camadas corticais
devem suas características peculiares à influência modificadora do meio externo
com que confinam. Assim, supomos que o ego é a camada do aparelho mental (do
id) que foi modificada pela influência do mundo externo (da realidade). Isto
mostrará como na psicanálise adotamos maneiras especiais de contemplar as
coisas seriamente. Para nós o ego é realmente algo superficial e o id algo mais
profundo - contemplados de fora, naturalmente. O ego está entre a realidade e o
id, que é aquilo verdadeiramente mental.
‘Ainda não farei pergunta alguma quanto a como
tudo isto pode ser conhecido. Mas diga-me em primeiro lugar: o que o senhor
ganha com a distinção entre um ego e um id? O que o leva a proceder assim?’
Sua pergunta indica-me o caminho certo a
trilhar, pois a coisa importante e valiosa é saber que o ego e o id diferem
grandemente um do outro em vários aspectos. As normas que regem o curso dos
atos mentais são diferentes no ego e no id; o ego persegue diferentes
finalidades e por outros métodos. Muito se poderia dizer sobre isto; mas talvez
o senhor se contentará com uma nova analogia e com um exemplo. Pense na
diferença entre o ‘front’ e ‘atrás das linhas’, como eram as coisas durante a
guerra. Não nos surpreendíamos então que algumas coisas no front fossem
diferentes do que eram atrás das linhas, e que muitas coisas que eram
permitidas atrás das linhas tinham de ser proibidas no front. A influência
determinante era, naturalmente, a proximidade do inimigo; no caso da vida
mental é a proximidade do mundo externo. Época houve em que ‘fora’, ‘estranho’
e ‘hostil’ eram conceitos idênticos. E agora chegamos ao exemplo. No id não há conflitos;
as contradições e antíteses persistem nele lado a lado indiferentemente, sendo
freqüentemente ajustados pela formação de conciliações. Em circunstâncias
semelhantes, o ego sente um conflito que deve ser resolvido; e a decisão está
em um anseio de ser abandonado em favor do outro. O ego é uma organização
caracterizada por uma tendência muito marcante no sentido da unificação, da
síntese. Essa característica falta ao id; está, como poderíamos dizer, ‘toda em
pedaços’; seus diferentes anseios perseguem suas próprias finalidades
independentemente e sem levar em conta uns aos outros.
‘E se uma região mental tão importante “atrás
das linhas” existe, como pode o senhor explicar ter sido ela desprezada até a
ocasião da análise?’
Isto nos leva de volta a uma de suas perguntas
anteriores,ver em [[1]]. A psicologia barrara seu próprio acesso à região do
id, insistindo num postulado que é bastante plausível mas insustentável: a
saber, que todos os atos mentais são conscientes para nós - que ser consciente
é o critério do que é normal, e que, se há processos em nosso cérebro que não
são conscientes, não merecem ser chamados de atos mentais e não são de qualquer
interesse para a psicologia.
‘Mas eu devia ter pensado que isto era óbvio.’
Sim, e isto é que os psicólogos pensam. Não
obstante, facilmente se pode mostrar ser falso - isto é, ser uma distinção
inteiramente inapropriada. A auto-observação mais superficial revela que nos
podem ocorrer idéias que não podem ter-se verificado sem preparação. Mas o
senhor não experimenta nada dessas preliminares do seu pensamento, embora elas
também devam, por certo, ter sido de natureza mental; tudo que lhe entra na
consciência é o resultado pronto para usar. Ocasionalmente o senhor pode tornar
consciente essas estruturas de pensamento preparatórias em retrospectiva, como
uma reconstrução.
‘Provavelmente nossa atenção foi distraída, de
modo que deixamos de notar os preparativos.’
Evasões! O senhor não pode dessa maneira chegar
ao fato de que em sua pessoa podem ocorrer atos de natureza mental, e amiúde
muito complicados, dos quais sua consciência nada sabe e o senhor também não.
Ou o senhor está preparado para supor que uma dose maior ou menor de sua
‘atenção’ é bastante para transformar um ato não mental num mental? Mas de que vale
discutir? Existem experimentos hipnóticos nos quais a existência da tais
pensamentos não conscientes é irrefutavelmente demonstrada a qualquer um que
deseja saber.
‘Não me retratarei, mas creio que finalmente o
compreendo. O que o senhor chama de “ego” é consciência; e o seu “id” é o
denominado subconsciente, sobre o qual as pessoas tanto falam hoje em dia. Mas
por que o disfarce com os novos nomes?’
Não é disfarce. Os outros nomes não são de
valia alguma. E não tente dar-me literatura em vez de ciência. Se alguém fala
de subconsciência, não sei dizer se ele tem em mente o termo topograficamente -
para indicar algo que está na mente abaixo da consciência - ou qualitativamente
- para indicar outra consciência, uma substância, por assim dizer. Essa pessoa
provavelmente não está esclarecida sobre nada disso. A única antítese digna de
confiança é entre o consciente e o inconsciente. Mas seria grave erro julgar
que essa antítese coincide com a distinção entre o ego e id. Naturalmente seria
magnífico se fosse tão simples assim: nossa teoria teria trânsito fácil. Mas as
coisas não são tão simples. O verdadeiro é que tudo que acontece no id é e
permanece inconsciente, e que os processos no id, e somente eles, podem
tornar-se conscientes. Mas nem todos eles são, nem sempre, nem necessariamente;
e grandes partes do ego podem continuar permanentemente inconscientes.
O tornar-se consciente de um processo mental
constitiu um caso complicado. Não posso deixar de dizer-lhe - mais uma vez,
dogmaticamente - nossas hipóteses a respeito disto. O ego, como o senhor se
recordará, é a camada externa, periférica do id. Ora, cremos que na superfície
mais externa desse ego há uma instância dirigida imediatamente para o mundo
externo, um sistema, um órgão, através de cuja excitação somente ocorre o
fenômeno que denominamos de consciência. Esse órgão pode ser igualmente bem
excitado de fora - recebendo assim ( com a ajuda dos órgãos do sentido) os
estímulos do mundo exterior - e de dentro - tornando-se assim cônscio, em
primeiro lugar, das sensações no id, e então também dos processos no ego.
‘Isto está ficando cada vez pior e eu o
compreendo cada vez menos. Afinal de contas, aquilo para o que o senhor me
convidou foi um debate da questão sobre se leigos (= não-médicos) devem
empreender tratamentos analíticos. Qual é o ponto principal, então, de todas
esses exames de teorias ousadas e obscuras que o senhor não me pode convencer
que sejam justificadas?’
Sei que não posso convencê-lo. Isto está além
de qualquer possibilidade e por esse motivo além de minha finalidade. Quando
ministramos aos nossos alunos instrução teórica em psicanálise, podemos ver
quão pouca impressão lhes estamos causando, para começar. Eles absorvem as
teorias da análise tão friamente quanto outras abstrações com as quais são
alimentados. Poucos deles talvez desejam ficar convencidos, mas não há qualquer
vestígio de que estejam. Mas também exigimos que todo aquele que quiser
praticar a análise em outras pessoas se submeta ele próprio a uma análise. É
somente no curso dessa ‘auto-análise’ (como é confusamente denominada), quando
eles realmente têm a experiência de que sua própria pessoa é afetada - ou
antes, sua própria mente - pelos processos afirmados pela análise, que adquirem
as convicções pelas quais são ulteriormente orientados como analistas.Como
então poderia esperar convencê-lo, a Pessoa Imparcial, da correção das nossas
teorias, quando só posso pôr diante do senhor um relato abreviado e portanto
ininteligível das mesmas, sem confirmá-las pelas próprias experiências do
senhor?
Estou agindo com uma finalidade diferente. A
questão em debate entre nós não é, no mínimo, se a análise é sensata ou
insensata, se ela está certa em suas hipóteses ou se incidiu em erros
grosseiros. Estou formulando nossas teorias perante o senhor visto que essa é a
melhor maneira de tornar-lhe claro qual o âmbito de idéias abrangido pela
análise, com base em quais hipóteses ela aborda um paciente e o que faz com
ele. Dessa forma uma luz bem definida será lançada sobre a questão da análise
leiga. E não fique alarmado. Se o senhor me acompanhou até este ponto já passou
pelo pior. Tudo que se segue lhe será mais fácil. - Mas agora, com sua licença,
farei uma pausa para tomar alento.
III
‘Espero que o senhor queira dizer-me como, com
base nas teorias da psicanálise, a origem de uma doença neurótica pode ser
imaginada.’
Tentarei fazê-lo. Mas para esse fim devemos
estudar nosso ego e nosso id de um novo ângulo, do ângulo dinâmico - vale
dizer, levando em conta as forças em ação neles e entre eles. Até agora nos
contentamos com uma descrição do aparelho mental.
‘Meu único temor é que ela possa tornar-se
ininteligível novamente!’
Espero que não. Logo o senhor se orientará
nela. Pois bem, presumimos que as forças que impulsionam o aparelho mental em
atividade são produzidas nos órgãos corporais como uma expressão das
necessidades somáticas principais. O senhor deve recordar-se das palavras do
nosso poeta-filósofo: ‘A fome e o amor [são o que move o mundo].’
Incidentalmente, um par de forças formidáveis! Damos a essas necessidades
corporais, até onde representam uma instigação à atividade mental, o nome de
‘Triebe‘ [instintos], uma palavra por cuja causa somos invejados por muitas
línguas modernas. Bem, esses instintos enchem o id: toda a energia do id, expressando-o
em breves palavras, se origina deles. Nem as forças do ego têm qualquer outra
origem; provêm daquelas do id. O que, então, desejam esses instintos?
Satisfação - isto é, o estabelecimento de situações nas quais as necessidades
corporais possam ser extintas. Uma diminuição da tensão da necessidade é
sentido pelo nosso órgão da consciência como agradável; um aumento dela logo é
sentido como desprazer. Dessas oscilações surge a série de sentimentos de
prazer-desprazer, de acordo com a qual todo o aparelho mental regula sua
atividade. Nesse sentido falamos de uma ‘dominância do princípio de prazer’.
Se as exigências instintuais do id não
encontrarem satisfação alguma, surgem condições intoleráveis. A experiência
logo revela que essas situações só podem ser estabelecidas mediante a ajuda do
mundo externo. Nesse ponto a parte do id que está dirigida para o mundo externo
- o ego - começa a funcionar. Se toda a força impulsora que põe o veículo em
movimento for derivada do id, o ego, por assim dizer, se encarrega da direção,
sem a qual meta alguma pode ser alcançada. Os instintos no id pressionam por
satisfação imediata a todo custo, e dessa forma nada alcançam nem chegam mesmo
a acarretar dano apreciável. Constitui tarefa do ego resguardar-se contra tais contratempos,
para servir de medianeiro entre as reivindicações do id e as objeções do mundo
externo. Ele leva a efeito sua atividade em duas direções. Por um lado, observa
o mundo externo com o auxílio do seu órgão de sentido, o sistema de
consciência, a fim de apanhar o momento favorável para satisfação sem dano; e ,
por outro, influencia o id, refreia suas ‘paixões’, induz seus instintos a
adiar sua satisfação, e na realidade, se for reconhecida a necessidade, a
modificar seus objetivos ou, em troca de alguma compreensão, a desistir deles.
Até onde ele domestica os impulsos do id dessa forma, ele substitui o princípio
de prazer, que anteriormente era o único decisivo, pelo que se conhece como o
‘princípio de realidade’, que, embora persiga os mesmos objetos finais, leva em
conta as condições impostas pelo mundo externo real. Posteriormente, o ego
aprende que existe ainda outra maneira de obter satisfação além da adaptação ao
mundo externo que descrevi. É também possível intervir no mundo externo
modificando-o, e nele estabelecer intencionalmente as condições que tornam
possível a satisfação. Essa atividade então se torna a função mais elevada do
ego; decisões quanto a quando é mais conveniente controlar as paixões e
curvar-se diante da realidade, e quando é mais apropriado ficar ao lado delas e
lutar contra o mundo externo - tais decisões compõem toda a essência da
sabedoria mundial.
‘E o id atura ser dominado assim pelo ego,
apesar de ser, se é que eu o compreendo bem, a parte mais forte?’
Sim, tudo correrá bem se o ego estiver de posse
de toda a sua organização e eficiência, se tiver acesso a todas as partes do id
e puder exercer sua influência sobre elas, pois não existe qualquer oposição
natural entre o ego e o id; eles se pertencem, e em condições saudáveis não
podem na prática ser distinguidos um do outro.
‘Isto parece muito bem, mas não posso ver como
em tal relação ideal possa haver o menor lugar para uma perturbação
patológica.’
O senhor tem razão. Enquanto o ego e suas
relações com o id atenderem essas condições ideais, não haverá qualquer
distúrbio neurótico. O ponto no qual a doença faz sua irrupção é inesperado,
embora quem não esteja familiarizado com patologia geral fique surpreendido em
encontrar uma confirmação do princípio de que são os desenvolvimentos e
diferenciações mais importantes que trazem em si as sementes da doença, da
falha de função.
‘O senhor está-se tornando erudito demais. Não
posso acompanhá-lo.’
Devo retroagir um pouco mais. Um pequeno
organismo vivo é uma coisa verdadeiramente infeliz e impotente, não é assim?
comparado com o mundo externo intensamente poderoso, repleto como está de
influências destrutivas. Um organismo primitivo, que não tenha desenvolvido uma
organização apropriada do ego, encontra-se à mercê de todos esses ‘traumas’.
Ele vive pela ‘cega’ satisfação de seus desejos instintuais e muitas vezes
perece por causa disto. A diferenciação de um ego é, acima de tudo, um passo no
sentido da autopreservação. Nada, é verdade, pode ser aprendido da sua
destruição, mas se alguém sobreviveu com sorte a um trauma poderá observar a
abordagem de situações semelhantes e dar sinal do perigo por uma repetição
abreviada das impressões que experimentou em relação com o trauma - por um
afeto de ansiedade. Essa reação à percepção do perigo introduz agora uma
tentativa de fuga, que pode ter o efeito de poupar a vida até que se tenha
tornado bastante forte para fazer face aos perigos do mundo externo de maneira
mais ativa - mesmo agressivamente, talvez.
‘Tudo isto está muito longe do que o senhor
prometeu relatar-me.’
O senhor não tem idéia alguma de como eu estou
perto de cumprir minha promessa. Mesmo em organismos que depois se desenvolvem
numa eficiente organização do ego, o ego deles é débil e pouco se diferencia, para
começar, de seu id, durante seus primeiros anos de infância. Imagine agora o
que acontecerá se esse ego impotente experimentar uma exigência instintual do
id ao qual ele gostaria de opor resistência (porque sente que satisfazê-lo é
perigoso e provocaria uma situação traumática, um choque com o mundo externo),
mas que ele não pode controlar, porque ainda não possui bastante força para
fazê-lo. Em tal caso o ego trata do perigo instintual como se ele fosse
externo; faz uma tentativa de fuga, afasta-se dessa parte do id e o deixa
entregue ao seu destino, depois de retirar dele todas as contribuições que em
geral presta aos impulsos instintuais. O ego, como costumamos dizer, institui
uma repressão desses impulsos instintuais. Por enquanto isto tem o efeito de
desviar o perigo, mas não se pode confundir o interno e o externo impunemente.
Não se pode fugir de si mesmo. Na repressão o ego está acompanhando o princípio
de prazer, que em geral ele tem o hábito de corrigir, estando destinado a
sofrer dano como vingança. Isto está no fato de o ego haver permanentemente
estreitado sua esfera de influência. O impulso instintual reprimido agora está
isolado, abandonado a si mesmo, inacessível, mas também não influenciável. Ele
segue seu próprio caminho. Mesmo depois, em geral, quando o ego se tornou mais
forte, ainda não pode suspender a repressão; sua síntese fica prejudicada, uma
parte do id permanece terreno proibido ao ego. Nem o impulso instintual isolado
permanece ocioso; ele compreende como ser compensado por lhe ser negada
satisfação normal; produz derivados psíquicos que lhe tomam o lugar; vincula-se
a outros processos que por influência dele também arranca do ego; e finalmente
irrompe no ego e na consciência sob a forma de um substituto
irreconhecivelmente distorcido, criando o que denominamos de um sintoma. De
imediato a natureza de uma perturbação neurótica se torna clara para nós: por
um lado, um ego que é inibido em sua síntese, que não tem qualquer influência
sobre partes do id, que deve renunciar a algumas de suas atividades a fim de
evitar novo choque com o que foi reprimido, e que se exaure no que, na maior
parte, são atos vãos de defesa contra sintomas, os derivados dos impulsos
reprimidos; por outro lado, um id no qual os instintos individuais se tornaram
independentes, perseguem seus objetivos independentemente dos interesses da
pessoa como um todo e doravante obedecem às leis somente da psicologia que
domina nas profundezas do id. Se observarmos toda a situação chegaremos a uma
fórmula simples quanto à origem de uma neurose: o ego faz uma tentativa de
suprimir certas partes do id de maneira inapropriada; essa tentativa falhou e o
id tirou sua vingança. Uma neurose é assim o resultado de um conflito entre o
ego e o id, no qual o ego se envolveu porque, como revela uma investigação
cuidadosa, ele deseja a todo custo reter sua adaptabilidade em relação com o
mundo externo real. A divergência verifica-se entre o mundo externo e o id; e é
porque o ego, leal a sua natureza mais íntima, toma o partido do mundo externo
que ele se torna envolvido num conflito com seu id. Mas observe que o que cria
o determinante da doença não é o fato desse conflito - pois discordâncias dessa
natureza entre a realidade e o id são inevitáveis, sendo uma das principais
tarefas do ego servir de mediador nelas -, mas a circunstância de o ego haver
feito uso do instrumento ineficiente de repressão para lidar com o conflito.
Mas isto por sua vez se deve ao fato de que o ego, na ocasião em que se
incumbiu da tarefa, era não desenvolvido e impotente. Todas as repressões
decisivas se verificam na primeira infância.
‘Que assunto notável! Seguirei seu conselho e
não farei críticas, visto que o senhor deseja apenas mostrar-me aquilo em que a
psicanálise crê a propósito da origem da neurose, de modo que o senhor venha a
dizer como ela se dispõe a combatê-la. Eu teria várias perguntas a fazer-lhe e
depois as formularei. Mas no momento sinto-me tentado, dessa vez, a levar
adiante a sua seqüência de pensamento e a aventurar-me numa teoria própria. O senhor
expôs a relação entre o mundo externo, o ego e o id, e formulou como sendo
determinante de uma neurose que o ego em sua dependência do mundo externo luta
contra o id. Não é concebível o caso oposto de o ego, num conflito dessa
espécie, permitir a si mesmo ser arrastado para fora pelo id e renunciar à sua
consideração pelo mundo externo? O que acontece num caso como este? pelas
minhas idéias leigas de natureza da insanidade diria que tal decisão por parte
do ego poderia ser o determinante da insanidade. Afinal de contas, uma fuga da
realidade dessa espécie parece ser a essência da’insanidade.Sim. Eu próprio
pensei nessa possibilidade, e na realidade creio que ela atende aos fatos -
embora para provar a verdadeira suspeita exigisse o exame de algumas considerações
altamente complicadas. As neuroses e psicoses estão, como é evidente,
intimamente relacionadas, mas devem, não obstante, diferir em algum aspecto
decisivo. Isto bem poderia ser o partido tomado pelo ego num conflito dessa
espécie. Em ambos os casos o id conservaria sua característica de cega
inflexibilidade.
‘Muito bem, prossiga! Quais os indícios dados
pela sua teoria sobre o tratamento das doenças?’
É fácil agora descrever nossa finalidade
terapêutica. Tentamos restaurar o ego, livrá-lo de suas restrições, e dar-lhe
de volta o domínio sobre o ego que ele perdeu devido às suas primeiras
repressões. É para esse único fim que efetuamos a análise, toda nossa técnica
está dirigida para essa finalidade. Temos de procurar as repressões que foram
estabelecidas e instigar o ego a corrigi-las com nossa ajuda e a lidar com os
conflitos melhor do que mediante uma tentativa de fuga. Visto que essas
repressões pertencem bem aos primeiros anos da infância, o trabalho de análise
nos leva também de volta àquele período. Nosso caminho a essas situações de
conflito, que na maior parte foram esquecidas e que tentamos reviver na
lembrança do paciente, nos é mostrado pelos seus sintomas, sonhos e associações
livres. Estes devem, contudo, ser em primeiro lugar interpretados - traduzidos
-, pois, sob a influência da psicologia do id, assumiram formas de expressão
estranhas à nossa compreensão. Podemos presumir que quaisquer associações,
pensamentos e lembranças que o paciente seja incapaz de comunicar-nos sem lutas
internas estão de alguma maneira vinculados ao material reprimido ou são seus
derivados. Ao estimular o paciente a desprezar suas resistências relatando
essas coisas, estamos educando seu ego a superar sua inclinação no sentido de
tentativas de fuga e a tolerar uma abordagem ao que é reprimido. No fim, se a
situação da repressão puder ser reproduzida com êxito em sua memória, sua
obediência será brilhantemente recompensada. Toda a diferença entre sua idade
então e agora atua a seu favor, e a coisa da qual seu ego infantil fugiu
aterrorizado muitas vezes parecerá ao seu ego adulto e fortalecido nada mais
que uma brincadeira de criança.
IV
‘Tudo o que o senhor me relatou até agora foi
psicologia. Muitas vezes soou estranho, difícil ou obscuro; mas sempre foi - se
é que posso dizê-lo assim - “puro”. Até agora muito pouco tenho sabido, sem
dúvida, sobre psicanálise; mas não obstante chegou aos meus ouvidos o rumor de
que o senhor se ocupa principalmente com coisas que não têm qualquer direito a
esse predicado. O fato de o senhor não haver ainda aflorado nada dessa espécie
faz-me sentir que está deliberadamente ocultando algo. E há outra dúvida que
não posso reprimir. Afinal de contas, como o senhor mesmo diz, as neuroses são
perturbações da vida mental. É possível, então, que coisas tão importantes não
desempenhem absolutamente qualquer papel nessas perturbações profundas?”
Então o senhor julga que uma consideração tanto
do que é mais baixo quanto do que é mais alto tenha faltado às nossas
apreciações até este momento? O motivo disto é que não consideramos
absolutamente até agora, por esta vez, desempenhar eu próprio o papel de um
interruptor que retém a marcha da conversa. Falei-lhe tanto de psicologia
porque desejava que o senhor ficasse com a impressão aplicada - e, além disso,
de uma psicologia que é desconhecida fora da análise. Um analista deve,
portanto, antes de tudo, ter aprendido essa psicologia, essa psicologia
profunda ou psicologia do inconsciente, ou pelo menos tanto dela quanto se
conhece nos dias que correm. Necessitaremos disto como uma base para nossas
conclusões ulteriores. Mas agora, que foi o senhor quis dizer com sua alusão a
‘pureza’?
‘Bem, geralmente se informa que nas análises os
fatos mais íntimos - e os mais sórdidos - da vida sexual são trazidos à tona
para apreciação em todos os seus detalhes. Se for assim - não fui capaz de
depreender dos seus debates psicológicos que seja necessariamente assim - isto
seria um forte argumento para que se restringisse esses tratamentos a médicos.
Como se poderia sonhar em permitir tais perigosas liberdades a pessoa de cujo
caráter não se tivesse qualquer garantia?’
É verdade que o médicos desfrutam de certos
privilégios na esfera do sexo: é-lhes até mesmo permitido examinar os órgãos
genitais das pessoas - embora isto não lhes fosse permitido no Oriente e embora
alguns reformadores idealistas (o senhor sabe quem eu tenho em mente) tenham
disputado esse privilégio. Mas o senhor quer saber em primeiro lugar se é assim
em análise e por que deve ser assim. - Sim, é assim.
E deve ser assim, em primeiro lugar porque a
análise está inteiramente fundamentada em completa franqueza. As circunstâncias
financeiras, por exemplo, são discutidas com igual detalhe e imparcialidade:
dizem-se coisas que são ocultadas de qualquer cidadão, mesmo se ele não for
concorrente ou um coletor de impostos. Não discutirei - na realidade, eu
próprio insistirei com energia - que essa obrigação à imparcialidade também
impõe grave responsabilidade moral ao analista. E deve ser assim, em segundo lugar,
porque os fatores da vida sexual desempenham um papel extremamente importante,
dominante e talvez mesmo específico entre as causas e fatores precipitantes das
doenças neuróticas. Que mais pode a análise fazer se não manter-se perto do seu
tema, do material apresentado pelo paciente? O analista jamais induz o paciente
até o terreno do sexo. Ele não lhe diz antecipadamente: ‘Estaremos lidando com
as intimidades de sua vida sexual!’ Ele lhe permite que comece o que tem a
dizer onde lhe aprouver, e tranqüilamente aguarda até que o próprio paciente
aborde fatos sexuais. Sempre costumava advertir meus alunos: ‘Nossos
antagonistas nos disseram que nos defrontaremos com casos nos quais o fator do
sexo não desempenha papel algum. Tenhamos o cuidado de não introduzi-lo em
nossas análises e de assim estragar nossa oportunidade de encontrar tal caso.’
Mas até agora nenhum de nós teve essa boa sorte.
Estou cônscio, naturalmente, de que nosso
reconhecimento da sexualidade se tornou - quer confessadamente, quer não - o
motivo mais forte da hostilidade de outras pessoas em relação à análise. Poderá
isto abalar nossa confiança? Isto simplesmente nos revela como é neurótica toda
nossa vida civilizada, visto que pessoas manifestamente normais não se
comportam de forma muito diferente das neuróticas. Numa época em que a
psicanálise foi solenemente levada a julgamento perante as sociedades cultas da
Alemanha - hoje as coisas se tornaram inteiramente mais tranqüilas -, um dos
oradores alegou possuir autoridade peculiar porque, assim disse ele, chegou
mesmo a permitir que seus pacientes falassem: para finalidades de diagnósticos,
claramente e para pôr à prova as asserções dos analistas. ‘Mas’, acrescentou
ele, ‘se começarem a falar sobre assuntos sexuais fecho-lhes as bocas.’ Que
pensa disto como um método de demonstração? A sociedade erudita aplaudiu o
orador calorosamente em vez de sentir-se, com razão, envergonhada do seu
relato. Só a triunfante certeza proporcionada pela consciência de preconceitos
sustentados em comum pode explicar a falta de pensamento lógico do orador. Anos
depois alguns daqueles que na épocatinham sido meus partidários cederam à
necessidade de libertar a sociedade humana do julgo da sexualidade que a
psicanálise estava procurando impor-lhe. Um deles explicou que o que é sexual
não significa absolutamente sexualidade, mas algo mais, algo abstrato e
místico. E outro chegou a declarar que a vida sexual é meramente uma das
esferas na qual os seres humanos procuram por uma ação sua necessidade
imperiosa de poder e dominação. Eles têm sido acolhidos com grandes aplausos,
pelo menos no momento.
‘Aventurar-me-ei de certa maneira, dessa vez, a
tomar partido neste ponto. Surpreendi-me como sendo extremamente ousado afirmar
que a sexualidade não é necessidade natural e primitiva dos seres vivos, mas
uma expressão de algo mais. Só se precisa considerar o exemplo dos animais.’
Isto não faz diferença alguma. Não há qualquer
mistura, por mais absurda, que a sociedade de bom grado não esteja disposta a
engolir se for anunciada como um antídoto à temida predominância da
sexualidade.
Confesso, além disso, que a aversão que o
senhor mesmo tem traído de atribuir ao fator da sexualidade um papel tão
relevante na causação da neurose - confesso que isto quase não me parece
compatível com a sua tarefa como uma Pessoa Imparcial. O senhor não teme que
essa antipatia possa interferir em fazer um julgamento justo?
‘Lamento ouvi-lo dizer isto. Sua confiança em
mim parece estar abalada. Mas nesse caso por que não escolheu outro como sua
Pessoa Imparcial?’
Porque essa outra pessoa não teria pensado em
nada diferente do senhor. Mas se ela tivesse sido preparada desde o começo para
reconhecer a importância da vida sexual, todos teriam exclamado: ‘Ora, essa não
é nenhuma Pessoa Imparcial, é um dos seus partidários!’ Não, estou longe de
abandonar a expectativa de ser capaz de influenciar suas opiniões. Devo
admitir, contudo, que do meu ponto de vista essa situação é diferente daquela
com a qual lidamos antes. No tocante aos nossos debates psicológicos, trata-se
para mim de uma questão de indiferença se o senhor acredita ou não em mim,
contanto somente que tenha a impressão de que aquilo que nos preocupa são
problemas puramente psicológicos. Mas aqui, quanto à questão da sexualidade,
deveria não obstante contentar-me se o senhor fosse acessível à compreensão de
que seu motivo mais forte de contradição é precisamente a arraigada hostilidade
de que partilha com tantas outras pessoas.
‘Mas afinal de contas não possuo a experiência
que lhe deu inabalável certeza.’
Muito bem. Posso agora continuar com minha
exposição. A vida sexual não é simplesmente algo apimentado; constitui também
sério problema científico. Muito havia de novo a ser aprendido sobre ela,
muitas coisas estranhas a serem explicadas. Acabo de dizer-lhe que a análise
tem de remontar aos primeiros anos da infância do paciente, porque foi então
que ocorreram as repressões decisivas, enquanto seu ego era débil. Mas
certamente na infância não existe qualquer vida sexual? Com certeza ela só
começa na puberdade? Pelo contrário. Temos de aprender que os impulsos
instintuais sexuais acompanham a vida a partir do nascimento, sendo
precisamente a fim de desviar esses instintos que o ego infantil institui
repressões. Uma coincidência notável, não é? que as criancinhas já devem estar
lutando contra a força da sexualidade, do mesmo modo como o orador da sociedade
erudita iria fazer depois, e posteriormente ainda meus seguidores que
estabeleceram suas próprias teorias. Como isto acorre? A explicação geral seria
que nossa civilização se acha inteiramente estruturada às expensas da
sexualidade; mas há muito mais a ser dito sobre o assunto.
A descoberta da sexualidade infantil é uma
daquelas da quais temos motivo de nos sentirmos envergonhados [por causa de sua
evidência]. Alguns pediatras, assim parece, sempre tiveram conhecimento disto,
e algumas enfermeiras de crianças. Homens hábeis, que se denominam a si
próprios psicólogos de crianças, logo falaram em tons de censura de uma
‘profanação da inocência da infância’. Mais uma vez, o sentimento em vez do
argumento! Fatos dessa espécie são de ocorrência cotidiana em entidades
políticas. Um membro da oposição ergue-se e denuncia certo desacerto
administrativo no serviço público, no exército, no judiciário e assim por
diante. Diante disto outro membro, preferivelmente do governo, declara que tais
afirmações constituem uma afronta ao sentimento de honra do organismo político,
do exército, da dinastia, ou mesmo da nação. Não passam assim de inverdades.
Sentimentos como estes não podem tolerar quaisquer afrontas.
A vida sexual das crianças naturalmente é
diferente da dos adultos. A função sexual, desde seus primórdios até a forma
definitiva na qual nos é tão familiar, passa por um complicado processo de
desenvolvimento. Desenvolve-se juntamente, a partir de numerosos instintos
componentes, com diferentes finalidades e passa por várias fases de organização
até que finalmente entra a serviço da reprodução. Nem todos os instintos
componentes são igualmente úteis para o resultado final; devem ser desviados,
remodelados e em parte suprimidos. Tal curso de desenvolvimento de grande
alcance nem sempre é percorrido sem uma lacuna; ocorrem inibições no seu
desenvolvimento, fixações parciais nas primeiras fases de desenvolvimento. Se depoissurgirem
obstáculos ao exercício da função sexual, o anseio sexual - a libido, como o
denominamos - é capaz de retornar a esses pontos mais antigos de fixação. O
estado da sexualidade das crianças e de suas transformações até a maturidade
também nos deu a chave de uma compreensão do que se conhece como as perversões
sexuais, que as pessoas sempre costumavam descrever com todos os sinais
indispensáveis de repulsa, mas cuja origem jamais foram capazes de explicar.
Todo o tópico é de interesse incomum, mas para as finalidades de nossa conversa
não faz muito sentido dizer-lhe mais a respeito do mesmo. A fim de nos
orientarmos nele, carecemos de conhecimentos anatômicos e fisiológicos, não
podendo todos eles, infelizmente, ser adquiridos em escolas de medicina. Mas
uma familiaridade com a história da civilização e com a mitologia é igualmente
indispensável.
‘Depois de tudo isto, ainda não posso formar um
quadro da vida sexual das crianças.’
Então abordarei ainda mais o assunto; seja como
for, não me é fácil afastar-me dele. Dir-lhe-ei, então, que o fato mais notável
sobre a vida sexual da crianças, segundo me parece, passa por todo seu
desenvolvimento mais amplo nos cinco primeiros anos de vida. A partir desse
ponto até a puberdade estende-se o que se conhece como período de latência.
Durante ele a sexualidade normalmente não avança mais; pelo contrário, os
anseios sexuais diminuem de vigor e são abandonadas e esquecidas muitas coisas
que a criança fazia e conhecia. Nesse período da vida, depois que a primeira
eflorescência da sexualidade feneceu, surgem atitudes do ego como a vergonha, a
repulsa e a moralidade, que estão destinadas a fazer frente à tempestade
ulterior da puberdade e a alicerçar o caminho dos desejos sexuais que se vão
despertando. Esse ‘desencadeamento bifásico’, como é denominado, da vida sexual
muito tem a ver com a gênese das doenças neuróticas. Parece ocorrer somente nos
seres humanos, e talvez seja um dos determinantes do privilégio humano de
tornar-se neurótico. A pré-história da vida sexual foi tão desprezada antes da
psicanálise como, em outro setor, os antecedentes da vida mental consciente. O
senhor com razão suspeitará de que os dois estão intimamente ligados.
Há muito a dizer, com relação ao que nossas
expectativas não nos prepararam, sobre o conteúdo, manifestações e realizações
desse período inicial da sexualidade. Por exemplo, o senhor sem dúvida ficará
surpreendido em saber como amiúde meninos de pouca idade têm medo de ser
devoradospelo pai. (E talvez também se surpreenda por eu incluir esse medo
entre os fenômenos da vida sexual.) Mas gostaria de lembrar-lhe o conto
mitológico, do qual é possível que ainda se recorde dos seus dias de escola, de
como o deus Cronos engoliu os filhos. Como isto lhe deve ter soado estranho
quando o ouviu pela primeira vez! Mas suponho que nenhum de nós pensou nisto
naquela época. Hoje podemos também recordar grande número de contos de fadas
nos quais aparece algum animal voraz como um lobo, e o reconheceremos como um
disfarce do pai. Esta é a oportunidade de assegurar-lhe que foi somente através
do conhecimento da sexualidade infantil que se tornou possível compreender a
mitologia e o mundo dos contos de fadas. Aqui então algo foi alcançado como um
subproduto de estudos analíticos.
O senhor ficará não menos surpreendido em saber
que as crianças do sexo masculino sofrem do medo de ser roubadas do seu órgão
sexual pelo pai, de modo que esse medo de ser castrado exerce poderosíssima
influência sobre o desenvolvimento do seu caráter e na decisão do rumo a ser
seguido por sua sexualidade. E mais uma vez aqui a mitologia poderá dar-lhe a
coragem de crer na psicanálise. O mesmo Cronos que devorou os filhos também
emasculou seu pai Uranos, e depois ele próprio foi emasculado como vingança por
seu filho Zeus, que fora salvo pela astúcia de sua mãe. Se o senhor se tiver
sentido inclinado a supor que tudo o que a psicanálise informa sobre a
sexualidade inicial das crianças provém da imaginação perturbada dos analistas,
deve pelo menos admitir que sua imaginação criou o mesmo produto que as
atividades imaginativas do homem primitivo, cujos mitos e contos de fadas são o
precipitado. A alternativa mais amável, e provavelmente também o ponto de vista
mais pertinente, seria que na vida mental das crianças, hoje em dia, podemos
ainda detectar os mesmos fatores arcaicos que em geral outrora dominavam nos
dias primevos da civilização humana. Em seu desenvolvimento mental, a criança
estaria repetindo a história de sua raça de uma forma abreviada, do mesmo modo
como a embriologia de há muito reconheceu ser este o caso do desenvolvimento
somático.
Outra característica da sexualidade infantil
inicial é que o órgão sexual feminino propriamente dito ainda não desempenha
nela qualquer papel: a criança ainda não o descobriu. A ênfase recai
inteiramente no órgão masculino, todo o interesse da criança está dirigido para
a questão de se ele se acha presente ou não. Sabemos menos acerca da vida
sexual de meninas do que de meninos. Mas não é preciso envergonharmo-nos dessa
distinção; afinal de contas, a vida sexual das mulheres adultas é um
‘continente negro’ paraa psicologia. Mas aprendemos que as meninas sentem
profundamente falta de um órgão sexual que seja igual em valor ao masculino;
elas se consideram por causa disso inferiores, e essa ‘inveja do pênis’ é a
origem de todo um grande número de reações femininas características.
Também é característico das crianças que suas
duas necessidades excretórias sejam catexizadas [carregadas] de interesse
sexual, que é mais uma vez obliterada na prática de fazer chistes. Para nós
pode parecer um fato desagradável, mas leva muito tempo para que as crianças
desenvolvam sentimentos de repugnância. Isto não é discutido nem mesmo por
pessoas que de outra forma insistem sobre a pureza seráfica da mente da
criança.
Nada, contudo, merece mais atenção do que o
fato de as crianças regularmente dirigirem seus desejos sexuais para os seus
parentes mais próximos - em primeiro lugar, portanto, para o pai e a mãe, e
depois para seus irmãos e irmãs. O primeiro objeto do amor de um menino é sua
mãe, e de uma menina seu pai (exceto até onde uma disposição bissexual inata
favorece a presença simultânea da atitude contrária). Sente-se o outro genitor
como um rival perturbador, e não infreqüentemente é encarado com forte
hostilidade. O senhor deve compreender-me bem. O que quero dizer não é que a
criança deseja ser tratada por seu genitor predileto simplesmente com a espécie
de afeição que nós adultos gostamos de considerar como a essência da relação pai-filho.
Não, a análise não nos deixa dúvida alguma de que os desejos da criança se
estendem, além de tal afeição, a tudo que compreendemos por satisfação sensual
- até onde, vale dizer, o permitem os poderes de imaginação da criança. É fácil
ver que a criança jamais adivinha os fatos reais das relações sexuais; ela os
substitui por outras idéias oriundas de sua própria experiência e sentimentos.
Em geral seus desejos culminam na intenção de dar à luz ou, de alguma maneira
indefinível, de procriar um bebê. Também os meninos, em sua ignorância, não se
excluem do desejo de dar à luz uma criança. Damos a toda essa estrutura mental
a denominação de ‘complexo de Édipo’, segundo a conhecida lenda grega. Com o
término do período sexual inicial ele deve normalmente ser abandonado, deve
desintegrar-se radicalmente e ser transformado, estando os resultados dessa
transformação destinados a importantes funções na vida mental ulterior. Mas em
geral isso não se efetua de maneira bastante radical, caso em que a puberdade acarreta
uma revivescência do complexo, que pode ter graves conseqüências.
Estou surpreendido por o senhor ainda estar
calado. Isto dificilmente quer dizer que consente. - Ao afirmar que a primeira
escolha de uma criança é, para empregar o termo técnico, uma escolha
incestuosa, a análise sem dúvida mais uma vez fere os sentimentos mais sagrados
da humanidade, epode muito bem estar preparada para uma quantidade
correspondente de descrença, contradição e ataque. E estes ela tem recebido com
abundância. Nada a tem danificado mais na abalizada opinião dos seus
contemporâneos do que sua hipótese do complexo de Édipo como uma estrutura
universalmente vinculada ao destino humano. O mito grego, incidentalmente, deve
ter tido o mesmo significado; mas a maioria dos homens hoje em dia, eruditos
igualmente, prefere crer que a Natureza estabeleceu em nós uma aversão inata
como salvaguarda contra a possibilidade de incesto.
Mas vamos em primeiro lugar convocar a história
em nosso auxílio. Quando Caio Júlio César aportou no Egito, encontrou a jovem
rainha Cleópatra (que logo iria tornar-se tão importante para ele) casada com o
irmão dela ainda mais jovem, Ptolomeu. Numa dinastia egípcia nada havia de
peculiar nisso; os Ptolomeus, que eram de origem grega, haviam simplesmente continuado
com o costume que fora praticado por seus antecessores, os antigos faraós, por
alguns milhares de anos. Isto, todavia, era meramente um incesto entre irmão e
irmã, que mesmo na época atual não é julgado tão rigorosamente. Voltemos assim
à nossa principal testemunha em assuntos concernentes aos tempos primevos - a
mitologia. Ela nos informa que os mitos de cada povo, e não somente dos gregos,
estão repletos de casos amorosos entre pais e filhas e mesmo entre mães e
filhos. A cosmologia, não menos que a genealogia de raças reais, está
fundamentada no incesto. Para que finalidade o senhor supõe que essas lendas
foram criadas? Para estigmatizar deuses e reis como criminosos? para
imputar-lhes a repulsa da raça humana? De preferência, por certo, porque os
desejos incestuosos constituem um legado humano primordial e jamais foram
plenamente superados, de modo que sua realização ainda era concedida aos deuses
e aos seus descendentes quando a maioria dos seres humanos comuns já era
obrigada a renunciar a tais desejos. Está em completa harmonia com essas lições
da história e da mitologia o fato de encontrarmos desejos ainda presentes a
atuantes na infância do indivíduo.
‘Eu poderia considerar erroneamente que o
senhor tivesse tentado ocultar de mim tudo isso sobre a sexualidade infantil.
Parece-me muitíssimo interessante, particularmente por causa de sua ligação com
a pré-história humana.’
Temia que pudesse afastar-nos para muito longe
de nossa finalidade. Mas talvez, afinal de contas, seja útil.
‘Agora me diga, então, que certeza pode o
senhor oferecer para os seus achados analíticos sobre a vida sexual das
crianças? Sua convicção baseia-se unicamente em pontos de concordância com a
mitologia e a história?’Oh, de modo algum. Ela tem como base a observação direta.
O que aconteceu foi isto. Tínhamos começado por inferir o conteúdo da infância
sexual a partir da análise de adultos - isto é, cerca de vinte a quarenta anos
depois. Posteriormente, procedemos a análises sobre as próprias crianças, e não
deixou de ser uma grande vitória quando assim fomos capazes de confirmar nelas
tudo que tínhamos podido adivinhar, apesar da quantidade do que havia ficado
encoberto e distorcido no intervalo.
‘O quê? O senhor submeteu criancinhas à
análise? crianças com menos de seis anos? isso pode ser feito? E não é muito
arriscado para as crianças?
Pode muito bem ser feito. Quase não se pode
acreditar no que se passa numa criança de quatro ou cinco anos de idade. As
crianças têm uma mente muito ativa nessa idade; seu período sexual prematuro é
também um período de florescimento intelectual. Tenho a impressão de que com o
início do período de latência elas se tornam mentalmente inibidas também, mais
estúpidas. Também a partir dessa época muitas crianças perdem seu encanto
físico. E, no tocante ao dano causado pela análise prematura, posso
informar-lhe que a primeira criança na qual se aventurou o primeiro
experimento, há quase vinte anos, desde então se desenvolveu num jovem saudável
e capaz, que atravessou a puberdade de maneira irrepreensível, apesar de alguns
graves traumas psíquicos. Talvez seja de se esperar que as coisas não sejam
piores para as outras ‘vítimas’ da análise prematura. Muito daquilo que é de
interesse está ligado a essas análises infantis; é possível que no futuro elas
se tornem ainda mais importantes. Do ponto de vista da teoria, seu valor é
indubitável, proporcionando informações destituídas de ambigüidade sobre
problemas que permanecem insolúveis nas análises de adultos; e dessa forma
protegem o analista de erros que poderiam ter para ele conseqüências graves.
Surpreendemos os fatores que levam à formação de uma neurose enquanto se acham
realmente em ação e não podemos então confundi-los. No interesse da criança, é
verdade, a influência analítica deve ser combinada com medidas educacionais. A
técnica ainda tem de receber sua confirmação. Mas o interesse prático é
despertado pela observação de que grande número de nossas crianças passa por
uma fase claramente neurótica no curso de seu desenvolvimento. Visto termos aprendido
a observar com maior agudeza, somos tentados a afirmar que a neurose nas
crianças não é a exceção mas a regra, como se ela quase não pudesse ser evitada
na trilha desde a disposição inata da infância até a sociedade civilizada. Na
maioria dos casos essa fase neurótica da infância é superada espontaneamente.
Mas será que ela não pode também regularmente deixar seus vestígios no adulto
saudável comum? Por outro lado, naqueles que se tornam neuróticos depois, nunca
deixamos deencontrar elos com a doença na infância, embora na época não tenha
sido necessário ser muito observável. De forma precisamente análoga os médicos
hoje, creio, sustentam a opinião de que cada um de nós passou por uma investida
de tuberculose em sua infância. É verdade que no caso das neuroses o fator de
imunização não atua, mas somente o fator de predisposição.
Voltemos a sua pergunta sobre a certeza.
Ficamos de maneira geral bem convictos, pelo exame direto das crianças, de que
tínhamos razão em nossa interpretação daquilo que os adultos nos relataram
sobre sua infância. Em grande número de casos, contudo, outra espécie de
confirmação tornou-se possível. O material da análise de alguns pacientes
permitiu-nos reconstruir certos acontecimentos externos, certos eventos
impressionantes de seus anos de infância, dos quais não conservaram qualquer
lembrança consciente. Acidentes felizes, informações de pais ou de amas
ofereceram depois provas irrefutáveis de que essas ocorrências realmente se
verificaram. Isto, naturalmente, não aconteceu com freqüência, mas quando se
verificou, foi com esmagadora impressão. A reconstrução correta, o senhor
precisa saber, de tais experiências esquecidas da infância tem sempre grande
efeito terapêutico, permitam ou não confirmação objetiva. Esses eventos devem sua
importância, naturalmente, ao fato de terem ocorrido numa idade tão prematura,
numa época em que podiam ainda produzir um efeito traumático sobre o ego
frágil.
‘E que espécie de eventos podem ser esses, que
têm de ser descobertos pela análise?’
De várias espécies. Primeiramente, impressões
capazes de influenciar permanentemente a vida sexual que desabrocha da criança
- tais como observações de atividades sexuais entre adultos, ou experiências
sexuais suas com um adulto ou outra criança (fatos que não são raros); ou,
ainda, o ouvir por acaso conversas, compreendidas na época ou
retrospectivamente, das quais a criança pensou poder tirar conclusões sobre
assuntos misteriosos ou fantásticos; ou, ainda, observações ou ações da própria
criança que dão prova de atitudes significativas de efeito ou inimizade para
com outras pessoas. É de especial importância numa análise induzir uma
lembrança da atividade sexual esquecida do próprio paciente como criança e
também da intervenção dos adultos que acabaram com a mesma.
‘Isso me dá a oportunidade de trazer à baila
uma pergunta que há muito desejava formular. Qual é, então, a natureza dessa
“atividade sexual” das crianças numa tenra idade, que, como o senhor diz, foi
desprezada antes dos dias da análise?’
Constitui um fato estranho que a parte regular
e essencial dessa atividade sexual não tenha sido desprezada. Ou antes, ela não
é de forma alguma estranha, pois foi impossível desprezá-la. Os impulsos
sexuais das crianças encontram suas principais expressões na autogratificação
pela fricção de seus próprio órgãos genitais, ou, mais precisamente, da porção
masculina deles. A distribuição extraordinariamente ampla dessa forma de
‘travessura’ infantil sempre foi conhecida dos adultos, e foi considerada como
grave pecado e severamente punida. Mas por favor não me pergunte como as
pessoas podiam reconciliar essas observações das inclinações imorais das
crianças - porque as crianças o fazem, como elas próprias dizem, porque lhes dá
prazer - com a teoria de sua pureza e não-sensualidade inatas. O senhor tem de
fazer com que nossos adversários solucionem esse enigma. Nós temos um problema
mais importante diante de nós. Que atitude devemos adotar em relação à
atividade sexual da primeira infância? Sabemos a responsabilidade na qual estamos
incorrendo se a suprimirmos; mas não nos aventuramos a deixá-la seguir seu
curso sem restrição. Entre as raças num baixo nível de civilização, e entre as
camadas inferiores das raças civilizadas, a sexualidade das crianças parece ter
recebido livre rédea. Isso provavelmente oferece poderosa proteção contra o
subseqüente desenvolvimento de neuroses no indivíduo. Mas isso ao mesmo tempo
não envolve uma extraordinária perda de aptidão para realizações culturais?
Muito há para sugerir que aqui estamos diante de uma nova Sila e Caríbdis.
Mas se os interesses que são estimulados pelo
estudo da vida sexual dos neuróticos criam uma atmosfera favorável ao estímulo
da lascívia - isso é uma questão que eu me aventuro a deixar ao seu próprio
julgamento.
V
‘Creio que compreendo sua finalidade. O senhor
deseja demonstrar-me que espécie de conhecimento se faz necessário a fim de
praticar a análise, de modo que eu possa ser capaz de julgar se somente os
médicos devem ter o direito de praticá-la. Bem, até agora surgiu muito pouco
que tem a ver com a medicina: muito de psicologia e um pouco de biologia ou de
ciência sexual. Mas talvez não tenhamos chegado ao fim?’
Certamente não. Ainda existem lacunas a ser
preenchidas. Posso fazer um pedido? Quer descrever-me como o senhor imagina um
tratamento analítico? - da mesma forma como se o senhor mesmo tivesse de
proceder a um.
‘Uma bela idéia, sem dúvida! Não, não tenho a
menor intenção de resolver nossa controvérsia por uma experiência dessa
espécie. Mas apenas para ser agradável, farei o que o senhor pede - a
responsabilidade será sua. Muito bem. Suporei que o paciente me procura e se
queixa dos seus males. Prometo-lhe recuperação ou melhoria se ele seguir minhas
instruções. Estimulo-o a dizer-me com toda franqueza tudo que ele sabe e que
lhe ocorre, e que não se desvie dessa intenção mesmo se algumas coisas lhe
sejam desagradáveis de dizer. Assimilei a regra de maneira apropriada?’
Assimilou. O senhor deve acrescentar: ‘mesmo se
o que lhe ocorrer lhe parecer destituído de importância ou de sentido.’
‘Acrescentarei isso. Logo ele começa a falar e
eu a ouvir. E então? Infiro do que ele me diz a espécie de impressões,
experiências e desejos que reprimiu porque se defrontou com eles numa época em
que seu ego ainda estava fraco e tinha medo deles em vez de enfrentá-los.
Quando ele tiver aprendido isso de mim, voltará às antigas situações e com
minha ajuda ele se sai melhor. As limitações às quais seu ego estava vinculado
então desaparecem, e ele fica curado. Está certo?’
Bravo! bravo! vejo mais uma vez que as pessoas
serão capazes de acusar-me de eu haver transformado num analista alguém que não
é médico. O senhor apreendeu tudo de maneira admirável.
‘Nada mais fiz senão repetir o que ouvi do
senhor - como se fosse algo que eu tivesse aprendido de cor. Seja como for, não
posso formar quadro algum de como deva fazê-lo e estou inteiramente
desorientado para compreender por que uma tarefa como essa deva levar uma hora
por dia durante tantos meses. Afinal de contas, uma pessoa comum em geral não
teve tantas experiências assim, o que foi reprimido na infância é provavelmente
o mesmo em cada caso.’Quando realmente se pratica a análise aprendem-se as
espécies de coisas além disso. Por exemplo: o senhor não acharia absolutamente
que fosse um assunto simples deduzir do que o paciente lhe conta as
experiências que ele esqueceu e os impulsos instituais que reprimiu. Ele diz
algo que no começo significa tão pouco para o senhor como para ele. O senhor
terá de resolver contemplar o material que ele lhe entrega em obediência à
regra de uma maneira bem especial: como se fosse minério, talvez, do qual seu
teor de metal precioso tem de ser extraído por um processo específico.
Estar-se-á também preparado para trabalhar muitas toneladas de minério que podem
conter o pouco material valioso que se procura. Aqui devemos ter um primeiro
motivo do prolongado caráter do tratamento.
‘Mas como se trabalha com essa matéria-prima -
para manter seu símile?’
Presumindo-se que as observações e associações
do paciente são apenas distorções do que se procura - alusões, por assim dizer,
das quais se tem de adivinhar o que se acha oculto detrás delas. Numa palavra,
esse material, quer consista em lembranças, associações ou sonhos, tem
primeiramente de ser interpretado. O senhor fará isso, naturalmente, observando
as expectativas que formou quando ouvia, graças ao seu conhecimento especial.
“’Interpretar!” Que palavra sórdida! Não gosto
do seu som; ele me rouba toda a certeza. Se tudo depender de minha
interpretação, quem pode garantir que eu interpreto certo? Assim, afinal de
contas, tudo é deixado ao meu capricho?’
Um momento! As coisas não são assim tão más.
Por que o senhor escolhe excluir seus próprios processos mentais da norma da
lei que reconhece nos de outras pessoas? Quando o senhor atingiu certo grau de
autodisciplina e possui certo conhecimento à sua disposição, suas
interpretações serão independentes de suas características pessoais e atingirão
o alvo. Não estou afirmando que a personalidade do analista seja uma questão de
indiferença para essa parte da tarefa dele. Uma espécie de agudeza em ouvir o
que está inconsciente e reprimido, que não está na posse igualmente de todos,
tem seu papel a desempenhar. E aqui, antes de tudo, somos levados à obrigação
do analista de tornar-se capaz, por uma profunda análise dele próprio, da
recepção sem preconceitos do material analítico. Algo, é verdade, ainda
permanece de fora: alguma coisa comparável à ‘equação pessoal’ nas observações
astronômicas. Esse fator individual sempre desempenhará um papel mais
significativo na psicanálise do que alhures. Uma pessoa anormal pode tornar-se
um médico cuidadoso; como analista ele será prejudicado pela sua própria
anormalidade de ver os quadros da vida mental não distorcidos. Vistoser impossível
demonstrar a qualquer um sua própria anormalidade, o consenso geral em questão
de psicologia profunda será particularmente difícil de ser alcançado. Alguns
psicólogos, na verdade, julgam que ele é inteiramente impossível e que todo
tolo tem o igual direito de externar sua estultície como sabedoria. Confesso
que sou mais otimista a respeito disso. Afinal de contas, nossas experiências
revelam que acordos razoavelmente satisfatórios podem ser alcançados mesmo na
psicologia. Todo campo de pesquisa tem sua dificuldade particular que devemos
tentar eliminar. E, além disso, mesmo na arte interpretativa da análise muito
existe que pode ser aprendido como qualquer outro material de estudo: por
exemplo, em relação com o método peculiar de representação indireta através de
símbolos.
‘Bem, não tenho mais qualquer desejo de
empreender um tratamento analítico mesmo na minha imaginação. Quem pode dizer
quais as outras surpresas que eu poderia encontrar?’
O senhor tem toda a razão em abandonar a idéia.
Está vendo como se fariam necessárias muito mais formação e prática. Quando
tiver achado uma interpretação certa, encontra-se à frente outra tarefa. O
senhor tem de esperar o momento exato no qual pode comunicar sua interpretação
ao paciente com alguma perspectiva de êxito.
‘Como se pode sempre reconhecer o momento
certo?’
Isto é uma questão de tato, que pode tornar-se
mais requintada com a experiência. O senhor estará cometendo grave erro se, num
esforço talvez de encurtar a análise, lançar suas interpretações na cabeça do
paciente logo que as houver encontrado. Dessa maneira o senhor obterá dele
expressões de resistência, rejeição e indignação, mas não permitirá que seu ego
domine seu material reprimido. A fórmula é: esperar até que o paciente tenha
chegado tão perto do material reprimido que ele tenha apenas mais alguns passos
na dianteira da interpretação que o senhor propuser.
‘Creio que nunca aprenderia a fazer isso. E se
adotar essas precauções ao fazer minha interpretação, o que vem depois?’
Será então seu destino fazer uma descoberta
para a qual não estava preparado.
‘E o que pode ser isso?’
Que o senhor se enganou com seu paciente; que
não pode contar no mínimo com a colaboração e a condescendência dele; que ele
está pronto a colocar toda dificuldade possível em seu trabalho comum - numa
palavra, que ele não tem absolutamente qualquer desejo de ficar curado.
‘Ora veja só! Isso é a coisa mais louca que o
senhor já me contou. E também não acredito nela. O paciente que está sofrendo
tanto, que se queixatão comovedoramente de seu males, que está fazendo um
sacrifício tão grande para o tratamento - o senhor diz que ele não tem qualquer
desejo de ficar curado! Mas naturalmente o senhor não está dando um significado
exato às suas palavras.’
Acalme-se! Realmente confirmo o que digo. O que
falei foi a verdade - não toda a verdade, sem dúvida, mas uma parte muito digna
de nota dela. O paciente deseja ser curado - mas ele também deseja não ser. Seu
ego perdeu sua unidade, e por esse motivo sua vontade também não tem qualquer
unidade. Se isto não fosse assim, ele não seria nenhum neurótico.
“’Fosse eu sagaz, e não seria o Tell!”
Os derivados do que é reprimido irromperam em
seu ego e ali se estabeleceram; e o ego tem tão pouco controle sobre as
tendências daquela fonte quanto sobre o que é realmente reprimido, e em geral
nada sabe a respeito delas. Esses pacientes, na realidade, são de uma natureza
peculiar e criam dificuldades com as quais não estamos habituados a lidar.
Todas as nossas instituições sociais são estruturadas para pessoas com um ego
unido e normal, que se pode classificar de bom ou mau, que ou cumpre sua função
ou é inteiramente eliminado por uma influência esmagadora. Daí a alternativa
jurídica: responsável ou irresponsável. Nenhuma dessas distinções se aplica a
neuróticos. Deve-se admitir que há dificuldade em adaptar as exigências sociais
a sua condição psicológica. Isto foi experimentado em larga escala durante a
última guerra. Os neuróticos que burlavam o serviço militar eram simuladores ou
não? Eram e não eram. Se eram tratados como simuladores e sua doença era
tornada altamente incômoda, eles se recuperavam; se depois de serem
ostensivamente restabelecidos eram enviados de volta às forças armadas,
imediatamente se refugiavam mais uma vez na doença. Nada podia ser feito com
eles. E o mesmo se aplica aos neuróticos na vida civil. Eles se queixam da
doença mas a exploram com todas as suas forças; e se alguém tenta afastá-la
deles, defendem-na como a proverbial leoa com seus filhotes. Contudo, não faria
sentido algum recriminá-los por essa contradição.
‘O melhor plano, porém, não seria deixar de
administrar a esses doentes tratamento, qualquer que fosse ele, mas deixá-los
entregues à sua sorte? Não penso que valha a pena despender esforços tão
grandes com cada um deles como o senhor me leva a supor que faz.’
Não posso aprovar sua sugestão.
Indubitavelmente constitui uma atitude mais adequada aceitar as complicações da
vida de preferência a lutar contra elas. Talvez seja verdade que nem todo
neurótico que tratamos valha o sacrifício de uma análise, mas existem alguns
indivíduos muito valiosostambém entre eles. Devemos fixar nós mesmos a meta de
que o menor número possível de seres humanos ingresse na vida civilizada com
tal aparelho mental defeituoso. E para essa finalidade devemos reunir muita
experiência e aprender a compreender muitas coisas. Toda análise pode ser
instrutiva e proporcionar-nos um acervo de nova compreensão inteiramente à
parte do valor pessoal do paciente individual.
‘Mas se um impulso volitivo formou-se no
paciente que deseja reter a doença, o primeiro deve ter suas razões e motivos e
ser capaz, de alguma forma, de justificar-se. Mas é impossível compreender por
que alguém deseja estar doente ou o que poderá obter disso.’
Oh, isso não é tão difícil de compreender.
Penso nos neuróticos de guerra, que não têm de servir precisamente porque são
doentes. Na vida civil a doença pode ser utilizada como uma tela para encobrir
a incompetência na profissão de alguém ou na concorrência com outras pessoas,
enquanto na família pode servir de meio para sacrificar os outros membros e
extorquir provas do amor destes, ou para impor a vontade sobre eles. Tudo isso
se acha razoavelmente perto da superfície; nós o resumimos na expressão ‘ganho
proveniente da doença’. É curioso, contudo, que o paciente - isto é, seu ego -
nada saiba de toda a concatenação desses motivos e das ações que eles envolvem.
Combate-se a influência dessas tendências compelindo-se o ego a tomar
conhecimento delas. Mas há outros motivos, que se acham situados ainda mais
profundamente, para que alguém se apegue à doença, com os quais não é tão fácil
lidar. Mas esses não podem ser compreendidos sem uma nova viagem pela teoria
psicológica.
‘Queira continuar. Um pouco mais de teoria não
fará diferença alguma agora.’
Quando lhe descrevi a relação entre o ego e o
id, suprimi uma parte importante da teoria do aparelho mental, pois fomos
obrigados a presumir que dentro do próprio ego uma instância específica
tornou-se diferenciada, sendo ela designada como superego. Esse superego ocupa
uma posição especial entre o ego e o id. Ele pertence ao ego e partilha do seu
alto grau de organização psicológica; mas tem uma vinculação particularmente
íntima com o id. É de fato um precipitado das primeiras catexias do objeto do
id e é o herdeiro do complexo de Édipo após o seu falecimento. Esse superego
pode confrontar-se com o ego e tratá-lo como um objeto; e ele muitas vezes o
trata com grande aspereza. É tão importante para o ego continuar em boas
relações com o superego como com o id. Desavenças entre o ego e o superego são
de grande importância na vida mental. O senhor já terá adivinhado que o
superego é o veículo do fenômeno que chamamos de consciência. A saúdemental
muito depende de o superego ser normalmente desenvolvido - isto é, de haver-se
tornado suficientemente impessoal. E é isso precisamente o que não ocorre nos
neuróticos cujo complexo de Édipo não passou pelo processo correto de
transformação. O superego deles ainda se confronta com seu ego como um pai
rigoroso se defronta com um filho: e sua moralidade atua de maneira primitiva
devido ao ego ser punido pelo superego. A doença é empregada como um
instrumento para essa ‘autopunição’, e os neuróticos têm de comportar-se como
se fossem governados por um sentimento de culpa que, a fim de ser satisfeito,
precisa ser punido pela doença.
‘Isso realmente parece muito misterioso. A
coisa mais estranha a respeito disso é que aparentemente mesmo essa poderosa
força da consciência do paciente não alcança sua consciência.’
Sim, estamos apenas começando a apreciar a
significação de todas essas circunstâncias importantes. Eis por que minha
descrição estava destinada a ser tão obscura. Mas agora posso continuar.
Descrevemos todas as forças que se opõem ao trabalho de recuperação como sendo
as ‘resistências’ do paciente. O ganho proveniente da doença é uma dessas
resistências. O ‘sentimento de culpa inconsciente’ representa a resistência do
superego; é o fator mais poderoso, e o mais temido por nós. Encontramos ainda
outras resistências durante o tratamento. Se o ego durante o período inicial
estabeleceu uma repressão por medo, então este persiste e se manifesta como uma
resistência se o ego se aproxima do material reprimido. E finalmente, como o
senhor pode imaginar, é provável que haja dificuldades se se esperar que um
processo instintual que tenha seguido um caminho específico durante décadas de
súbito siga uma nova trilha que acabe de ser aberta para ele. Isso poderia ser
denominado de resistência do id. A luta contra todas essas resistências
constitui nosso principal trabalho durante um tratamento analítico; a tarefa de
fazer interpretações não é nada em comparação com ela. Mas como resultado dessa
luta e da superação das resistências, o ego do paciente fica tão alterado e
fortalecido que podemos antecipar com tranqüilidade seu futuro comportamento
quando o tratamento estiver terminado. Por outro lado, pode-se compreender
agora por que são necessários tratamentos tão prolongados. A extensão do
caminho de desenvolvimento e a riqueza do material não são os fatores
decisivos. É mais uma questão de o caminho estar desimpedido. Um exército pode
ficar retido durante semanas numa extensão de terreno que na época de paz um
trem expresso percorre em poucas horas - se o exército tiver de superar ali a
resistência do inimigo. Essas batalhas exigem tempo também na vida mental.
Infelizmente sou obrigado a dizer-lhe que todos os esforços no sentido de
acelerar o tratamento analítico de formaapreciável até agora malograram. A
melhor maneira de encurtá-lo parece ser levá-lo a efeito de acordo com as
regras.
‘Se jamais senti desejo de caçar furtivamente
em seu parque de caça e tentar analisar alguém, o que o senhor me diz sobre as
resistências me teria curado disso. Mas o que dizer da influência pessoal
especial que afinal de contas o senhor próprio admitiu? Isto não entra em ação
contra as resistências?’
Foi bom o senhor me perguntar sobre isso. Essa
influência pessoal é a nossa ama dinâmica mais poderosa. É o novo elemento que
introduzimos na situação e por meio do qual a tornamos fluida. O teor
intelectual de nossas explicações não pode fazê-lo, pois o paciente, que
partilha de todos os preconceitos do mundo que o cerca, precisa acreditar em
nós tão pouco quanto o fazem os nossos críticos científicos. O neurótico põe-se
a trabalhar porque tem fé no analista e neste crê porque adquire uma atitude
emocional especial para com a figura do analista. Também as crianças só
acreditam nas pessoas às quais estão ligadas. Já lhe disse,ver em [[1]] que uso
fazemos dessa influência ‘sugestiva’ particularmente grande. Não para suprimir
os sintomas - isso distingue o método analítico de outros processos
psicoterapêuticos -, mas como uma força motora a fim de induzir o paciente a
superar suas resistências.
‘Muito bem, e se isso suceder, tudo então não
correrá bem?’
Sim, deve. Mas surge uma complicação
inesperada. Talvez constitua a maior surpresa do analista constatar que a
relação emocional que o paciente adota para com ele é de natureza bem peculiar.
O primeiro médico que tentou uma análise - não fui eu - defrontou-se com esse
fenômeno e não soube o que fazer dele, pois essa relação emocional, para
expressá-lo de maneira simples, é da natureza do apaixonar-se. Estranho, não é?
Especialmente quando se leva em conta que o analista nada faz para provocá-la
mas, pelo contrário, antes se mantém à distância do paciente, falando
humanamente, e o cerca de certo grau de reserva - quando se aprende, além
disso, que essa estranha relação de amor despreza tudo o mais que seja
realmente propício e toda variação quanto a atração pessoal, idade, sexo ou
classe. Esse amor é de natureza realmente compulsiva. Não que essa
característica precise estar ausente do apaixonar-se espontâneo. Como se sabe,
o contrário ocorre freqüentemente. Mas na situação analítica surge com inteira
regularidade sem haver qualquer explanação racional para isso. Ter-se-ia
pensado que a relação do paciente com o analista nada mais exigia senão certa
dose de respeito, confiança, gratidão e simpatia humana. Em vez disso, existe
esse apaixonar-se, que, ele próprio, dá a impressão de ser um fenômeno
patológico.‘Eu teria pensado da mesma maneira que isso seria favorável às suas
finalidades analíticas. Se alguém está apaixonado, ele é dócil, e tudo fará no mundo
para o bem de outra pessoa.’
Sim. É favorável para começar. Mas quando esse
apaixonar-se se tornou mais profundo, toda a sua natureza vem à luz, grande
parte da qual é incompatível com a tarefa de análise. O amor do paciente não se
satisfaz com ser obediente; torna-se exigente, exige satisfações afetuosas e
sensuais, exclusivismo, torna-se ciumento e revela cada vez mais claramente seu
lado oposto, sua disposição de tornar-se hostil e vingativo se não puder
alcançar seus fins. Ao mesmo tempo, como todo o apaixonar-se, expulsa todo o
outro material mental; extingue o interesse pelo tratamento e recuperação - em
suma, não pode haver dúvida alguma de que tomou o lugar da neurose e que nosso
trabalho teve o resultado de eliminar uma forma de doença por outra.
‘Isso realmente parece um caso perdido! O que
pode ser feito quanto a isso? A análise teria de ser abandonada. Mas se, como o
senhor diz, a mesma coisa acontece em todos os casos, seja como for seria
impossível levar a efeito qualquer análise.’
Começaremos utilizando a situação a fim de
aprendermos algo dela. O que aprendermos talvez poderá então ajudar-nos a
dominá-la. Não constitui fato extremamente digno de nota que conseguimos
transformar toda neurose, qualquer que seja seu conteúdo, numa condição de amor
patológico?
Nossa convicção de que uma parte da vida
erótica que tenha sido anormalmente empregada se acha na base das neuroses deve
ser inabalavelmente fortalecida por essa experiência. Com essa descoberta
estamos mais uma vez numa posição firme e podemos aventurar-nos a tornar esse
próprio amor objeto de análise. E podemos fazer outra observação. O amor
analítico não se manifesta em todos os casos tão clara e ruidosamente como
tentei descrevê-lo. Por que não? Logo poderemos ver. À medida que as facetas
puramente sensuais e hostis do seu amor tentam revelar-se, a oposição do
paciente a elas é despertada. Ele luta contra elas e tenta reprimi-las perante
nossos próprios olhos. O paciente está repetindo com o analista, sob a forma de
apaixonar-se, experiências mentais pelas quais já passou antes; ele transferiu
para o analista atitudes mentais que estavam prontas nele e intimamente
associadas com sua neurose. Ele também está repetindo diante dos nossos olhos
suas antigas ações defensivas; ele gostaria mais de repetir em sua relação com
o analista toda a história daquele período esquecido de sua vida. Assim, o que
ele nos está mostrando é o núcleo da história íntima de sua vida: ele o está
reproduzindo de forma tangível, como se ele realmente estivesse acontecendo, em
vez de recordar-se dele. Dessa maneira, o enigma do amortransferencial é
solucionado e a análise pode seguir seu caminho - com a ajuda da nova situação
que lhe parecera uma grande ameaça.
‘Isso é muito engenhoso. E é tão fácil
convencer o paciente de que ele não está apaixonado, mas somente obrigado a
levar à cena uma revivescência de uma antiga peça?’
Tudo agora depende disso. E toda a habilidade
para lidar com a ‘transferência’ é dedicada a ocasioná-la. Como o senhor está vendo,
as exigências da técnica analítica alcançam seu máximo nesse ponto. Aqui se
podem cometer os erros mais graves ou os maiores êxitos podem ser registrados.
Seria estultície tentar fugir às dificuldades suprimindo-se ou
negligenciando-se a transferência; qualquer outra coisa mais que se tivesse
feito no tratamento não mereceria o nome de análise. Despachar o paciente logo
que as inconveniências da sua neurose de transferência surgem não seria mais
sensato, e além disso seria covardia. Seria como se alguém houvesse invocado
espíritos e deles fugisse logo que aparecessem. Algumas vezes, é verdade, nada
mais é possível. Existem casos nos quais não podemos dominar a transferência
desencadeada e a análise tem de ser interrompida; mas devemos pelo menos ter lutado
com os espíritos maus com o máximo de nossas forças. Ceder às exigências da
transferência, atender aos desejos do paciente no sentido de satisfação
afetuosa e sensual, é não só com justiça proibido por considerações morais como
também é inteiramente ineficaz como um método técnico para alcançar a
finalidade da análise. Um neurótico não pode ser curado por lhe ser permitido
reproduzir estereótipos incorretos e inconscientes que nele estão à mão. Se nos
empenharmos em conciliações com ele mediante a oferta de satisfações parciais
em troca de sua colaboração ulterior na análise, devemos ter cuidado para não
incidirmos na situação ridícula do clérigo que devia converter um agente de
seguros enfermo. O doente continuou não convertido mas o clérigo despediu-se
segurado. A única saída possível da situação de transferência é remontá-la ao
passado do paciente, como ele realmente a experimentou ou como ele a imaginou
através da atividade realizadora de desejos de sua imaginação. E isto exige do
analista muita habilidade, paciência, calma e abnegação própria.
‘E onde o senhor supõe que o neurótico
experimentou o protótipo do seu amor transferencial?’
Em sua infância: em geral, em sua relação com
um dos seus pais. O senhor deve lembrar-se da importância que tivemos de
atribuir a esses primeiros laços emocionais. Assim, aqui o círculo se fecha.‘O
senhor finalmente acabou? Estou-me sentindo um pouco perplexo com tudo o que
ouvi do senhor. Queira dizer-me apenas mais uma coisa: como e onde se pode
aprender o que é necessário para praticar-se a análise?’
No momento existem dois institutos nos quais se
ministra instrução sobre psicanálise. O primeiro foi fundado em Berlim pelo Dr.
Max Eitingon, que é membro da Sociedade local. O segundo é mantido pela
Sociedade Psicanalítica de Viena às suas próprias expensas e com considerável
sacrifício. O papel desempenhado pelas autoridades limita-se, no presente, às
muitas dificuldades que antepõem ao novo empreendimento. Um terceiro instituto
de formação está sendo agora inaugurado em Londres pela Sociedade dessa cidade,
sob a direção do Dr. Ernest Jones. Nesses institutos os próprios candidatos são
submetidos à análise, recebem instrução teórica mediante conferências sobre
todos os assuntos que são importantes para eles, e desfrutam da supervisão de
analistas mais velhos e mais experimentados quando lhes é permitido fazer suas
primeiras experiências com casos relativamente brandos. Calcula-se um período
de cerca de dois anos para essa formação. Mesmo após esse período,
naturalmente, o candidato é apenas um principiante e não ainda um mestre. O que
ainda se necessita deve ser adquirido pela prática e por uma troca de idéias
nas sociedades psicanalíticas nas quais membros jovens e velhos se reúnem. O
preparo para a atividade analítica de modo algum é fácil e simples. O trabalho
é árduo, grande a responsabilidade. Mas qualquer um que tenha sido analisado,
que tenha dominado o que pode ser ensinado em nossos dias sobre a psicologia do
inconsciente, que esteja familiarizado com a ciência da vida sexual, que tenha
aprendido a delicada técnica da psicanálise, a arte da interpretação, de
combater resistências e de lidar com a transferência - qualquer um que tenha
realizado tudo isso não é mais um leigo no campo da psicanálise. Ele é capaz de
empreender o tratamento de perturbações neuróticas e ainda poderá com o tempo
alcançar nesse campo o que quer que se possa exigir dessa forma de terapia.
VI
‘O senhor despendeu grande dose de esforço ao
mostrar-me o que é a psicanálise e que espécie de conhecimento se faz
necessário a fim de praticá-la com certa perspectiva de êxito. Muito bem.
Ouvi-lo não pode ter-me causado mal algum. Mas não sei que influência o senhor
espera que suas explicações tenham em meu julgamento. Vejo diante de mim um
caso que nada tem de inusitado a esse respeito. As neuroses são uma espécie
específica de doença e a análise é um método específico de tratá-las - um ramo
especializado da medicina. Constitui regra em outros casos, bem como para um
médico que tenha escolhido um ramo especial da medicina, não se satisfazer com
a educação que é confirmada pelo seu diploma: particularmente se ele pretende
fixar-se numa cidade razoavelmente grande, uma cidade que, somente ela, possa
oferecer um meio de vida a especialistas. Qualquer um que deseje ser cirurgião
tenta trabalhar por alguns anos numa clínica cirúrgica, e de forma semelhante o
mesmo se verifica com oculistas, laringologistas, e assim por diante - para não
dizer nada de psiquiatras, que talvez jamais sejam capazes de afastar-se de uma
instituição ou um sanatório do Estado. E o mesmo acontecerá no caso de
psicanalistas: qualquer um que se resolva em favor desse novo ramo
especializado da medicina, quando concluídos seus estudos, fará os dois anos de
especialização que o senhor mencionou num instituto de formação, se realmente
este exigir tanto tempo. Ele também compreenderá depois que lhe será vantajoso
manter contato com seus colegas numa sociedade psicanalítica, e tudo correrá
bem. Não posso ver onde haja lugar nisso para a questão da análise leiga.’
Um médico que faz o que o senhor prometeu em
seu nome será bem acolhido por todos nós. Quatro quintos daqueles que eu
reconheço como meus alunos são, de qualquer maneira, médicos. Mas permita-me
ressaltar-lhe como as relações de médicos com a análise se desenvolveram
realmente e como provavelmente continuarão a desenvolver-se. Os médicos não têm
qualquer reivindicação histórica pela posse única da análise. Pelo contrário,
até recentemente fizemos face à mesma com tudo aquilo que pudesse prejudicá-la,
desde o ridículo mais frívolo à calúnia mais grave. O senhor responderá com
razão que isso pertence ao passado e não precisa afetar o futuro. Concordo, mas
temo que o futuro será diferente do que o senhor previu.
Permita-me dar à palavra ‘charlatão’ o
significado que ela deve ter em vez do significado jurídico. De acordo com a
lei, charlatão é qualquer um que trata pacientes sem possuir um diploma oficial
que prove que ele é medico. Eu preferiria outra definição: charlatão é todo
aquele que efetua um tratamento sem possuir o conhecimento e a capacidade
necessários para tanto. Firmando-me nessa definição, aventuro-me a afirmar que
- não somente nos países europeus - os médicos formam um contingente
preponderante de charlatões na análise. Eles com grande freqüência praticam o
tratamento analítico sem o terem aprendido e sem compreendê-lo.
De nada vale o senhor argumentar que isso é
inconsciente e que não pode acreditar que os médicos sejam capazes disso; que
afinal de contas um médico sabe que um diploma de médico não é uma carta de
corso e que um paciente não é um fora-da-lei; e que se deve sempre admitir que
um médico está agindo de boa fé mesmo que talvez esteja laborando em erro.
Os fatos ficam; esperaremos que possam ser
explicados como o senhor pensa. Tentarei explicar-lhe como se torna possível a
um médico agir em relação com a psicanálise de uma forma que ele cuidadosamente
evitaria em todos os outros campos.
A primeira consideração é que na escola de
medicina um médico recebe uma formação que é mais ou menos o oposto do que ele
necessitaria como preparo para a psicanálise. Sua atenção foi dirigida para
fatos objetivamente verificáveis de anatomia, de física e de química, de cuja
apreciação correta e influência adequada depende o êxito do tratamento médico.
O problema da vida é trazido para seu campo de visão até onde nos tenha sido
explicado pelo jogo das forças que também podem ser observadas na natureza
inanimada. Seu interesse não é despertado no lado mental dos fenômenos vitais;
a medicina não se preocupa com o estudo das funções intelectuais superiores,
que se situa na esfera de outra faculdade. Supõe-se que só a psiquiatria lide
com as perturbações das funções mentais; mas sabemos de que maneira e com quais
finalidades ela o faz. Ela procura os determinantes somáticos das perturbações
mentais e os trata como outras causas de doença.
A psiquiatria tem razão de agir dessa forma e a
educação médica é claramente excelente. Se for descrita como unilateral,
deve-se primeiro descobrir o ponto de vista a partir do qual se está
transformando essa característica numa censura. Em si toda ciência é
unilateral. Tem de ser assim, visto que ela se restringe a assuntos, pontos de
vista e métodos específicos. É uma insensatez, na qual eu não tomaria parte,
lançar uma ciência contra a outra. Afinal de contas, a física não diminui o
valor da química; ela não pode ocupar seu lugar mas, por outro lado, não pode
ser substituída por ela. A psicanálise é, por certo, bem particularmente
unilateral, por ser a ciência doinconsciente mental. Não devemos, portanto,
contestar às ciências médicas seu direito de serem unilaterais.
Só encontraremos o ponto de vista que estamos
procurando se passarmos da medicina científica para a terapêutica prática. Uma
pessoa doente é um organismo complicado. Ela poderá lembrar-nos que até mesmo
os fenômenos mentais, que são tão difíceis de apreender, não devem ser apagados
do quadro da vida. Os neuróticos, realmente, constituem uma complicação
indesejável, um estorvo tanto para a terapêutica como para a jurisprudência e o
serviço militar. Mas existem e são uma preocupação particular da medicina. A
educação médica, contudo, nada faz, literalmente nada, para compreendê-los e
tratá-los. Em vista da estreita ligação entre as coisas que distinguimos como
físicas e mentais, podemos antecipar o dia em que os caminhos do conhecimento
e, esperemos, da influência serão desbravados, conduzindo da biologia e da
química orgânicas para o campo de fenômenos neuróticos. Esse dia ainda parece
distante, e no momento essas doenças nos são inacessíveis pela direção da
medicina.
Seria tolerável se a educação médica apenas
deixasse de proporcionar aos médicos orientação no campo das neuroses. Mas ela
faz mais do que isso: dá-lhes uma atitude falsa e prejudicial. Os médicos cujo
interesse não foi despertado pelos fatores psíquicos da vida estão mais que
prontos para formar uma estimativa deficiente dos mesmos e ridicularizá-los
como não científicos. Por essa razão, são incapazes de aceitar algo de
realmente sério que tenha a ver com eles e não reconhecem as obrigações
provenientes deles. Portanto, caem na falta de respeito do leigo pela pesquisa
psicológica e tornam sua própria tarefa fácil para eles próprios. - Sem dúvida
os neuróticos têm de ser tratados, visto serem pessoas enfermas e procurarem o
médico, devendo-se estar sempre pronto para fazer-se experiência com algo novo.
Mas por que arcar com o fardo de uma preparação tediosa? Nós nos arranjaremos
muito bem; quem pode dizer se o que ensinam nos institutos analíticos é de
alguma valia? - Quanto menos tais médicos compreenderem do assunto, mais
aventurosos se tornam. Só um homem que realmente sabe é modesto, pois ele sabe
quão insuficiente é o seu conhecimento.
A comparação que o senhor apresentou para
tranqüilizar-me, entre a especialização na análise e em outros ramos da
medicina, não é, então, aplicável. Para a cirurgia, a oftalmologia, e assim por
diante, a própria escola de medicina oferece uma oportunidade de educação
ulterior. Os institutos analíticos são em pequeno número, recentes e
destituídos de autoridade. As escolas de medicina não os reconheceram e deles
não tomam qualquer conhecimento. O jovem médico, que teve de confiar tanto em
seus mestresque pouca ocasião teve de educar seu julgamento, prazerosamente
aproveita o momento propício para desempenhar o papel de crítico por exceção
num campo no qual ainda não há qualquer autoridade reconhecida.
Existem também outras coisas que favorecem seu
apreciamento como um charlatão analítico. Se ele tentasse efetuar operações na
vista sem suficiente preparo, o fracasso de suas extrações de cataratas e
iridectomias e a ausência de pacientes logo poriam termo à sua arriscada
empresa. A prática de análise é relativamente segura para ele. O público é
estragado pelo resultado médio bem-sucedido de operações na vista e espera do
cirurgião a cura. Mas se um ‘especialista em nervos’ deixar de restaurar seus
pacientes, ninguém fica surpreendido. As pessoas não foram inutilizadas por
êxitos na terapia das neuroses; o especialista em nervos pelo menos ‘muito se
preocupou com elas’. Realmente, não há muito que possa ser feito; a natureza
deve ajudar, ou o tempo. Com as mulheres temos primeiro a menstruação, depois o
casamento e posteriormente a menopausa. Finalmente a morte constitui uma
verdadeira ajuda. Além disso, o que o analista médico tem feito com seu
paciente neurótico é tão insignificante que nenhuma censura lhe pode ser feita.
Ele não tem feito uso de quaisquer instrumentos ou medicamentos; ele tem apenas
conversado com ele e tentado persuadi-lo ou dissuadi-lo de alguma coisa.
Certamente isto não pode causar mal algum, especialmente se ele evita abordar
assuntos aflitivos ou inquietantes. O analista médico, que tem evitado qualquer
ensinamento rigoroso, sem dúvida não terá omitido a tentativa de aperfeiçoar a
análise, de extrair-lhe as presas venenosas e de torná-la agradável para o
paciente. E será prudente que ele pare por aí, pois se ele realmente se
aventurar a invocar resistências e depois não souber fazer-lhes face, poderá
realmente tornar-se impopular.
A honestidade obriga-me a admitir que a
atividade de um analista não formado causa menos mal aos seus pacientes do que
a de um cirurgião inábil. O possível dano limita-se ao fato de o paciente ter
sido levado a uma despesa inútil e de ter suas possibilidades de recuperação
eliminadas ou diminuídas. Além disso, a reputação da terapia analítica foi
reduzida. Tudo isso é muito indesejável, mas não tem comparação alguma com os
perigos que advêm do bisturi de um charlatão cirúrgico. Segundo me parece, não
se devem temer agravamentos severos ou permanentes de uma condição patológica,
mesmo com um emprego não especializado da análise. Em confronto com os traumas
da vida que provocaram a doença, um pouco de imperícia por parte do médico não
tem qualquer importância. Simplesmente ocorre que a tentativa inadequada de
curar não causou bem algum ao paciente.‘Ouvi seu relato sobre o charlatão
médico na análise sem interrompê-lo, embora formasse a impressão de que o
senhor se acha dominado por uma hostilidade contra a profissão médica, para
cuja explicação histórica o senhor mesmo apontou o caminho. Mas admitirei uma
única coisa: se as análises têm de ser levadas a efeito, isto deve ser efetuado
por pessoas que foram formadas inteiramente para esse mister. E o senhor não
pensa que com o tempo os médicos que se dediquem à análise tudo farão para
obter essa formação?’
Temo que não. Enquanto a atitude da escola
médica em relação ao instituto de formação analítica continuar inalterada, os médicos
acharão a tentação de tornarem as coisas mais fáceis para eles próprios grande
demais.
‘Mas parece que o senhor fica sistematicamente
a fugir de qualquer pronunciamento direto sobre a questão da análise leiga. O
que penso agora é que, em vista de ser impossível manter uma observação dos
médicos que querem analisar, o senhor está propondo, como vingança, por assim
dizer, puni-los, privando-os do monopólio da análise e abrindo de par em par as
portas dessa atividade médica também a leigos.’
Não posso dizer se o senhor adivinhou meus
motivos de maneira correta. Talvez eu possa mais adiante apresentar-lhe provas
de uma atitude menos parcial. Mas ponho ênfase na exigência de quem ninguém
deve praticar a análise se não tiver adquirido o direito de fazê-lo através de
uma formação específica. Se essa pessoa é ou não um médico, a mim me parece sem
importância.
‘Então que propostas definitivas tem a fazer?’
Ainda não fui até esse ponto e não poderei
dizer se chegarei lá. Gostaria de examinar outra questão com o senhor, e antes
de tudo aflorar um ponto especial. Diz-se que as autoridades, por instigação da
profissão médica, desejam proibir inteiramente a prática da análise por leigos.
Tal proibição também afetaria os membros não-médicos da Sociedade Psicanalítica,
que têm desfrutado de excelente formação e se aperfeiçoado grandemente pela
prática. Se a proibição fosse efetivada, nós nos encontraríamos numa posição na
qual grande número de pessoas ficariam impedidas de executar uma atividade que
podemos com segurança nos sentir convictos de que podem efetuar muito bem, ao
passo que a mesma atividade está franqueada a outras pessoas para as quais não
há qualquer garantia semelhante. Essa não é precisamente a espécie de resultado
ao qual a legislação deva conduzir. Contudo, esse problema especial não é muito
importante nem muito difícil de solucionar. Diz respeito apenas a um pequeno
número de pessoas, que não pode ser seriamente prejudicado. Elas provavelmente
emigrarão para aAlemanha, onde nenhuma legislação as impedirá de encontrar
reconhecimento pela sua proficiência. Se se desejar poupá-las disto e abrandar
a severidade da lei, isto facilmente pode ser feito com base em alguns
precedentes bem conhecidos. Sob a monarquia austríaca com freqüência acontecia
ser dada permissão a notórios charlatães, ad personam [pessoalmente], para
levarem a efeito atividades médicas em certos campos, porque as pessoas estavam
convencidas da verdadeira capacidade deles. Os interessados eram na sua maior
parte curandeiros camponeses, e sua recomendação parece ter sido feita
regularmente por um dos arquiduques que outrora eram tão numerosos; mas deve
ser possível que isso também seja feito no caso de citadinos e com base em uma
garantia diferente e meramente técnica. Essa proibição teria efeitos mais
importantes sobre o instituto de formação analítica de Viena, que daí por
diante seria incapaz de aceitar quaisquer candidatos, para formação, de
círculos não médicos. Assim, mais uma vez em nosso país uma linha de atividade
intelectual seria suprimida, a qual se permite que se desenvolva livremente em
outras partes. Sou a última pessoa a reivindicar qualquer competência para
julgar leis e regulamentos. Mas posso compreender que dar ênfase à nossa lei
sobre charlatanismo não leva em direção à abordagem das condições na Alemanha a
que tanto se visa hoje, e que a aplicação dessa lei ao caso da psicanálise traz
em si algo de anacrônico, visto que na época de sua promulgação ainda não havia
essa coisa que se chama análise e que a natureza peculiar das doenças
neuróticas ainda não era reconhecida.
Agora chego a uma questão cujo exame me parece
mais importante. A prática da psicanálise é um assunto que deve, em geral,
ficar sujeito à interferência oficial, ou seria mais conveniente deixá-lo
seguir seu desenvolvimento natural? Certamente não chegarei a qualquer decisão
sobre esse ponto aqui e agora, mas tomarei a liberdade de pôr o problema diante
do senhor para sua consideração. Em nosso país desde antigamente um verdadeiro
furor prohibendi [paixão por proibições] tem constituído a regra, uma tendência
a manter as pessoas sob tutela, a interferir e a proibir, o que, como todos
sabemos, não tem dado frutos particularmente bons. Em nossa nova Áustria
republicana, parece, as coisas ainda não mudaram muito. Imagino que o senhor
terá algo de importante a dizer para a solução do caso da psicanálise ora em
consideração por nós; não sei se o senhor tem o desejo ou a influência com que
opor-se a essas tendências burocráticas. Seja como for, não lhe pouparei meus pensamentos
desautorizados sobre o assunto. Em minha opinião, uma pletora de regularmentos
e proibições prejudica a autoridade da lei. Pode-se observar que onde há
somente poucas proibições elas são cuidadosamente observadas, mas onde alguém é
acompanhado de proibições a cada passo, esse alguém se sente realmente tentado
a desprezá-las. Além disso, não significa que alguém seja realmente um
anarquista se estiver preparado para compreender que as leis e os regulamentos
não podem, a partir de sua origem, alegar possuir o atributo de serem sagrados
e não infringíveis, que são muitas vezes inadequadamente elaborados e ofendem
nosso sentimento de justiça, ou o farão após certo tempo, e que, em vista da
lerdeza das autoridades, amiúde não existe outro meio de corrigir tais leis
impróprias senão violando-as ousadamente. Além disso, se se deseja manter o
respeito pelas leis e regulamentos é aconselhável nada promulgar onde não pode
facilmente ser mantida uma vigilância no sentido de serem obedecidos ou
transgredidos. Grande parte do que citei acima sobre a prática da análise por
médicos poderia ser repetido aqui no tocante à análise autêntica por leigos que
a lei vem procurando suprimir. O curso de uma análise é muito modesto, não
empregando nem medicamentos nem instrumentos, e consiste apenas em conversa e
numa troca de informações; não será fácil provar que um leigo esteja praticando
‘análise’, se ele afirmar que está simplesmente dando estímulo e explicações e
tentando estabelecer uma influência humana saudável sobre pessoas que estão à
procura de assistência mental. Por certo não seria possível proibir isso
meramente porque os médicos algumas vezes fazem a mesma coisa. Nos países de
língua inglesa as práticas da Ciência Cristã tornaram-se muito difundidas: uma
espécie de negação dialética dos males da vida, baseada num apelo às doutrinas
da religião cristã. Não hesito em afirmar que esse procedimento representa uma
aberração lamentável do espírito humano; mas quem nos Estados Unidos ou na
Inglaterra sonharia em proibi-lo e torná-lo punível? As autoridades estão assim
tão certas do caminho correto para a salvação que elas se aventuram a impedir
que cada um tente ‘ser salvo segundo a sua própria maneira’. E admitindo-se que
muitas pessoas, se entregues a si próprias, correm para o perigo e fracassam,
não seria melhor que as autoridades marcassem cuidadosamente os limites das
regiões que devem ser consideradas como proibidas, e quanto ao restante, até
onde possível, permitir que os seres humanos sejam educados pela experiência e
influência mútua? A psicanálise é algo tão novo no mundo, a massa da humanidade
é tão pouco instruída sobre ela, a atitude da ciência oficial paracom ela é
ainda tão vacilante, que me parece precipitado intervir em seu desenvolvimento
com regulamentos legislativos. Deixemos que os próprios pacientes descubram que
lhes é prejudicial procurar assistência mental junto a pessoas que não
aprenderam a proporcioná-la. Se explicarmos isto a eles e os advertirmos contra
tal fato, teremos poupado a nós mesmos a necessidade de proibi-lo. Nas
principais estradas da Itália as torres de cabos de alta-tensão trazem a
inscrição sucinta e impressionante: ‘Chi tocca, muore [Quem tocar, morre].’
Isso está perfeitamente calculado para regular o comportamento de transeuntes
em relação a quaisquer fios que estejam pendentes. Os avisos alemães
correspondentes exibem uma verbosidade desnecessária e ofensiva: ‘Das Berühren
der Leitungsdrähte ist, weil lebensgefährlich, strengstens verboten [Tocar as
linhas de transmissão é, por ser perigoso à vida, rigorosamente proibido].’
Qualquer um que tenha amor à vida fará a proibição para si mesmo; e qualquer um
que deseja matar-se dessa maneira não pedirá permissão.
‘Mas há casos que podem ser citados como
precedentes legais contra a permissão da análise leiga; quero dizer, a
proibição de leigos praticarem o hipnotismo e a proibição recentemente baixada
contra a realização de sessões espíritas ou a fundação de sociedades
espíritas.’
Não posso dizer que seja admirador dessas
medidas. A segunda é uma invasão indisfarçada de supervisão policial em
detrimento da liberdade intelectual. Estou acima da suspeição de ter muita
crença naquilo que se conhece como ‘fenômenos ocultos’ ou de sentir qualquer
desejo de que sejam reconhecidos. Mas proibições como essas não sufocarão o
interesse das pessoas por esse mundo supostamente misterioso. Poderão, pelo
contrário, ter causado grande dano e ter fechado a porta a uma curiosidade
imparcial que poderia haver chegado a um julgamento que nos teria libertado
dessas possibilidades vexatórias. Mais uma vez, contudo, isso somente se aplica
à Áustria. Em outros países, pesquisas ‘parapsíquicas’ não encontram quaisquer
obstáculos legais. O caso do hipnotismo é algo diferente do da análise. O
hipnotismo é a evocação de um estado mental anormal e é utilizado por leigos,
nos dias que correm, somente com a finalidade de espetáculos públicos. Se a
terapia hipnótica tivesse mantido seus inícios muito promissores, ter-se-ia
chegado a uma posição semelhante à da análise. E incidentalmente a história do
hipnotismo oferece um precedente para o da análise em outra direção. Quando eu
era um jovem conferencista de neuropatologia, os médicos invectivavam
ardorosamente o hipnotismo, declaravam que ele era um logro, um logro do demônio
e um procedimento altamente perigoso. Hoje eles monopolizaram esse mesmo
hipnotismo e dele fazem uso, sem hesitações, como um método de exame; para
alguns especialistas de nervos ele ainda constitui seu principal instrumento
terapêutico.
Mas já lhe disse que não tenho qualquer
intenção de fazer propostas que se baseiem na decisão quanto a se o controle
legal ou o deixar que as coisas sigam o seu curso deva ser preferido em matéria
de análise. Sei que isto é uma questão de princípio, sendo que sobre a resposta
a ela as inclinações das pessoas de autoridade terão mais influência do que
argumentos. Já estabeleci o que me parece falar em favor de uma política de
laissez faire. Se a outra decisão for adotada - para uma política de
intervenção ativa - então parece que em qualquer caso uma medida imperfeita e
injusta de proibir implacavelmente a análise por não-médicos será um resultado
insuficiente. Algo mais terá de ser considerado nesse caso: terão de ser
lançadas condições sob as quais a prática da análise será permitida a todos
aqueles que procurem dela fazer uso, terá de ser estabelecida uma autoridade da
qual se possa aprender o que é a análise e que espécie de preparo se faz
necessário para isso, e as possibilidades de instrução em análise terão de ser
estimuladas. Devemos portanto, ou deixar as coisas em paz ou estabelecer ordem
e clareza; não devemos precipitar-nos numa situação complicada com uma única
proibição isolada proveniente mecanicamente de um regulamento que se tornou
inadequado.
VII
‘Sim, mas os médicos! os médicos! Não posso
induzi-lo a penetrar no verdadeiro tema de nossas conversações. O senhor ainda
continua a esquivar-se de mim. Trata-se de se devemos ou não dar aos médicos o
direito de praticarem a análise - e isto em nada me afeta, depois de haverem
preenchido certas condições. A maioria dos médicos não consiste em charlatães
em análise como o senhor os representou. O senhor mesmo afirma que a grande
maioria dos seus alunos e seguidores são médicos. Chegou ao meu conhecimento que
eles estão longe de partilhar seu ponto de vista sobre a questão da análise
leiga. Sem dúvida posso presumir que seu alunos concordam com suas exigências
no sentido de suficiente preparo e assim por diante; e contudo esses alunos
julgam coerente vedar a prática da análise a leigos. É isso mesmo? e em caso
afirmativo, como o senhor o explica?
Estou vendo que o senhor está bem informado.
Sim, de fato. Nem todos, é verdade, mas boa proporção dos meus colegas não
concorda comigo em relação a esse ponto, sendo favoráveis a que os médicos
tenham o direito exclusivo ao tratamento analítico de neuróticos. Isto lhe
mostrará que divergências de opinião são permitidas mesmo em nosso campo. O
partido que eu tomo é bem conhecido e a contradição sobre o assunto da análise
leiga não interfere em nossa boa compreensão. Como posso explicar-lhe a atitude
desses meus alunos? Não sei ao certo; penso que deve ser a força do sentimento
profissional. O curso do desenvolvimento deles tem sido diferente do meu, eles
ainda não se sentem à vontade em seu isolamento dos colegas, gostariam de ser
aceitos pela ‘profissão’ como tendo plenos direitos, e estão preparados, em
troca, por essa tolerância, para fazer um sacrifício num ponto cuja importância
vital não lhes é evidente. Talvez possa ser de outra forma; imputar motivos de
concorrência a eles seria não somente acusá-los de sentimentos baixos, mas
também atribuir-lhes uma estranha miopia. Estão sempre prontos a introduzir
outros médicos na análise, e de um ponto de vista material deve ser-lhes
indiferente ter de partilhar os pacientes disponíveis com colegas médicos ou
com leigos. Mas algo diferente provavelmente desempenha seu papel. Esses meus
alunos podem ser influenciados por certos fatores que garantem a um médico
indubitável vantagem sobre um leigo na prática analítica.
‘Garantir-lhe uma vantagem? Aí está. Então
finalmente o senhor está admitindo a vantagem? Isto deve resolver a
questão.’Não me é difícil admiti-lo, o que poderá revelar-lhe que não tenho
assim um preconceito tão arraigado como o senhor supõe. Deixei de mencionar
essas coisas porque sua discussão mais uma vez tornaria necessárias
considerações teóricas.
‘Em que está pensando agora?’
Primeiramente há a questão do diagnóstico.
Quando se submete à análise um paciente que sofre do que se descreve como
perturbações nervosas, deseja-se de antemão estar certo - até agora,
naturalmente, conforme a certeza possa ser alcançada - de que ele se presta a
essa espécie de tratamento, de que se pode ajudá-lo por esse método. Isso, contudo,
é o caso apenas se ele realmente tiver uma neurose.
‘Eu teria pensado que isso seria reconhecível a
partir dos fenômenos, dos sintomas dos quais ele se queixa.’
É aí que surge uma nova complicação. Ela nem
sempre pode ser reconhecida como uma certeza absoluta. O paciente poderá exibir
o quadro externo de uma neurose e, contudo, poderá ser algo mais - o início de
uma doença mental incurável ou a fase preliminar de um processo destrutivo no
cérebro. A distinção - o diagnóstico diferencial - nem sempre é fácil e nem
pode ser feita imediatamente em cada fase. A responsabilidade de tal decisão só
pode, naturalmente, ser empreendida por um médico. Como eu disse, nem sempre é
fácil para ele. A doença pode ter uma aparência inocente por considerável
tempo, até que por fim, afinal de contas, apresenta o seu mau caráter. Na
realidade, constitui um dos temores comuns dos neuróticos que eles venham a
tornar-se insanos. Contudo, se um médico se tiver enganado por algum tempo com
um caso dessa espécie ou tiver estado incerto a respeito dele, nenhum mal foi
provocado e nada de desnecessário foi feito. Nem realmente o tratamento
analítico desse caso teria causado qualquer dano, embora tivesse sido exposto
como um desperdício desnecessário. E além disso certamente haveria muitas
pessoas que culpariam a análise pelo infeliz resultado. Injustamente, sem
dúvida, mas tais ocasiões devem ser evitadas.
‘Mas isso parece um caso perdido. Atinge as
raízes de tudo o que o senhor me disse sobre a natureza e a origem de uma
neurose.’
De modo algum. Simplesmente conforma mais uma
vez o fato de que os neuróticos são uma praga e um estorvo para todos os
interessados - inclusive os analistas. Mas talvez eu elucide sua confusão se
enunciar minha nova informação em termos mais corretos. Provavelmente seria
mais correto dizer dos casos com os quais estamos agora lidando que eles
desenvolveram realmente uma neurose, não sendo ela, no entanto, psicogênica mas
somatogênica - que suas causas não são mentais, mas físicas. O senhor
compreende?‘Sem dúvida, compreendo. Mas não posso harmonizar isso com a outra
faceta, a psicológica.’
Isso pode ser resolvido, contudo, se se tiver
em mente as complexidades da substância viva. Em que achamos a essência de uma
neurose? No fato de que o ego, a organização superior do aparelho mental
(elevada através da influência do mundo externo), não é capaz de cumprir com
sua função de mediador entre o id e a realidade, de que na sua debilidade ela
recua de certas partes instituais do id e, a fim de compensar isto, tem de
aturar as conseqüências de sua renúncia sob a forma de restrições, sintomas e
formações reativas malsucedidas.
Uma debilidade do ego dessa espécie é
encontrada em todos nós na infância e eis por que as experiências dos primeiros
anos da infância são de importância tão grande para a vida ulterior. Sob o
fardo extraordinário desse período da infância - temos em poucos anos de
abarcar a enorme distância de desenvolvimento entre os homens primitivos da
idade da pedra e os participantes da civilização contemporânea, e, ao mesmo
tempo e em particular, temos de desviar os impulsos instituais do período
sexual inicial -, sob esse fardo, portanto, nosso ego procura refúgio na
repressão e fica exposto a uma neurose da infância, cujo precipitado ele
carrega consigo até a maturidade como uma disposição a uma doença nervosa
ulterior. Tudo agora depende de como o organismo em crescimento é tratado pelo
destino. Se a vida tornar-se muito árdua, se o abismo entre reivindicações
instituais e as exigências da realidade tornar-se grande demais, o ego poderá
falhar em seus esforços para reconciliar os dois, e mais prontamente, quanto
mais for inibido pela disposição trazida por ele na infância. O processo de
repressão é então repetido, os instintos separam-se violentamente do domínio do
ego, encontram suas satisfações substitutivas pelos caminhos da regressão e o
pobre ego tornou-se desamparadamente neurótico.
Apeguemo-nos firmemente apenas a isto: o ponto
nodal e o pivô de toda a situação é a força relativa da organização do ego.
Acharemos então fácil concluir nosso levantamento etiológico. Como o que pode
ser denominado de causas normais da doença neurótica, já conhecemos a
debilidade do ego infantil, a tarefa de lidar com os primeiros impulsos sexuais
e os efeitos das experiências mais ou menos fortuitas da infância. Não é
possível, contudo, que ainda outros fatores desempenhem seu papel, proveniente
da época anterior ao início da vida da criança? Por exemplo, uma força e
insubordinação inatas da vida instintual no id, que desde o começo atribuem ao
ego tarefas por demais árduas para ele? Ou uma debilidade de desenvolvimento
especial do ego devida a razões desconhecidas? Tais fatores devem,
naturalmente,adquirir uma importância etiológica, em alguns casos
transcendente. Invariavelmente temos de lidar com a força instintual do id; se
ela se tiver desenvolvido de forma excessiva, as perspectivas de nossa terapia
são precárias. Ainda sabemos muito pouco a respeito das causas da uma inibição
de desenvolvimento do ego. Esses então seriam os casos de neurose com uma base
essencialmente constitucional. Sem alguns de tais fatores favoráveis
constitucionais e congênitos uma neurose, sem dúvida, dificilmente pode
ocorrer.
Mas se a relativa debilidade do ego for o fator
decisivo para a gênese de uma neurose, também deve ser possível que uma doença
física ulterior produza uma neurose, contanto que ela possa acarretar um
enfraquecimento do ego. E isto, mais uma vez, é verificado muito amiúde. Uma
perturbação física dessa espécie pode afetar a vida instintual no id e aumentar
a força dos instintos além do limite até o qual o ego é capaz de lidar com
eles. O modelo normal de tais processos talvez seja a alteração, nas mulheres,
causada pelos distúrbios da menstruação e da menopausa. Ou ainda, uma doença
somática geral, na realidade uma doença orgânica do órgão central nervoso,
poderá atacar as condições nutritivas do aparelho mental e compeli-lo a reduzir
seu funcionamento e paralisar suas operações mais delicadas, uma das quais é a
manutenção da organização do ego. Em todos esses casos surge aproximadamente o
mesmo quadro da neurose; esta tem sempre o mesmo mecanismo psicológico, mas,
como vemos, uma etiologia mais variada e muitas vezes muito complexa.
‘O senhor agora está me agradando mais. Finalmente
começou a falar como médico. E agora espero que o senhor admita que um assunto
tão complicado como uma neurose só possa ser manejado por um médico.’
Temo que o senhor esteja indo além do alvo. O
que vimos examinando era um ponto de patologia, aquilo em que estamos
interessados na análise é um procedimento terapêutico. Admito - não, insisto -
que em todo caso que esteja em consideração para análise o diagnóstico será
estabelecido em primeiro lugar pelo médico. A maior parte das neuroses que nos
ocupam é felizmente de natureza psicogênica e não dá motivo para suspeitas
patológicas. Uma vez que o médico tenha firmado isto, pode confiantemente
passar o tratamento a um analista leigo. Em nossas sociedades analíticas as
coisas sempre foram arranjadas dessa maneira. Graças ao estreito contato entre
os membros médicos e não-médicos, erros tais que pudessem ser temidos foram
inteiramente evitados. Há uma contingência ulterior, aliás, na qual o analista
tem de pedir a ajuda do médico. No curso de um tratamento analítico, sintomas -
na maior parte das vezes físicos - poderão surgir, havendodúvida se devem ser
considerados como pertencentes à neurose ou se devem ser relacionados como uma
doença orgânica independente que interveio. A decisão sobre esse ponto deve, mais
uma vez, ser deixada ao médico.
‘De modo que mesmo durante o curso de uma
análise um analista leigo não pode passar sem um médico. Um novo argumento
contra sua aptidão.’
Não. Nenhum argumento contra analistas leigos
pode ser arquitetado a partir dessa possibilidade, pois em tais circunstâncias
um analista médico não agiria de maneira diferente.
‘Não compreendo isso.’
Há uma regra técnica de que um analista, se
surgirem sintomas dúbios como esse durante o tratamento, não os submeterá ao
seu próprio julgamento mas os encaminhará a um médico que esteja ligado à
análise - um médico consultor, talvez -, mesmo se o próprio analista for médico
e até mesmo bem versado em seus conhecimentos médicos.
‘E por que se deve elaborar uma regra que me
parece tão desnecessária?’
Não é desnecessária; de fato, existem várias
razões para ela. Em primeiro lugar, não constitui um bom plano que uma
combinação de tratamento orgânico e psíquico seja levada a efeito pela mesma
pessoa. Em segundo lugar, a relação na transferência pode tornar
desaconselhável ao analista examinar o paciente fisicamente. E em terceiro, o
analista tem todos os motivos para duvidar se ele está desprovido de
preconceitos, visto seus interesses estarem tão intensamente dirigidos para os
fatores psíquicos.
‘Compreendo agora sua atitude para com a
análise leiga de maneira bem clara. O senhor deliberou que deve haver analistas
leigos. E visto que não pode contestar a impropriedade deles quanto à sua
tarefa, está reunindo tudo o que pode para desculpá-los e tornar-lhes a vida
mais fácil. Mas não posso nem de longe compreender por que deva haver analistas
leigos, que, afinal de contas, podem apenas ser terapeutas de segunda classe.
Estou pronto, no que me toca, a abrir uma exceção no caso dos poucos leigos que
já foram formados como analistas; mas outras não devem ser criadas e os
institutos de formação devem ser submetidos à obrigação de não aceitarem mais
leigos para formação.’
Estou de acordo com o senhor, se puder ser
demonstrado que todos os interesses em jogo serão atendidos por essa restrição.
O senhor há de concordar que esses interesses são de três espécies: o dos
pacientes, o dos médicos e - último em ordem mas não em importância - o da
ciência, querealmente abrange os interesses de todos os futuros pacientes.
Vamos examinar esses três pontos juntos?
Para o paciente, portanto, é uma questão de
indiferença se o analista for um médico ou não, contanto somente que o perigo
de sua condição ser mal compreendida fique excluído pelo relatório médico
necessário antes do início do tratamento e em algumas ocasiões possíveis
durante o curso do mesmo. Para ele é incomparavelmente mais importante que o
analista deva possuir qualidades pessoais que o tornem digno de confiança, e
que ele deva ter adquirido o conhecimento e a compreensão, bem como a
experiência, que, somente estes, possam tornar-lhe possível cumprir sua tarefa.
Poder-se-ia pensar que a autoridade de um analista seria prejudicada se o
paciente soubesse que ele não é médico e que não pode, em certas situações, passar
sem o apoio de um médico. Naturalmente jamais deixamos de informar os pacientes
sobre a qualificação de seu analista, e temos sido capazes de nos convencer de
que os preconceitos profissionais não encontram eco neles, estando prontos para
aceitar uma cura de qualquer direção da qual provenha - o que, incidentalmente,
a profissão médica de há muito descobriu, para sua profunda mortificação. Nem
os analistas leigos que praticam a análise em nossos dias são um bando casual
de rebotalho, mas pessoas de educação acadêmica, doutores em filosofia,
educadores, juntamente com algumas mulheres de grande experiência na vida e
marcante personalidade. A análise, à qual todos os candidatos num instituto de
formação analítica têm de submeter-se, é ao mesmo tempo o melhor meio de formar
um opinião sobre sua aptidão pessoal para o desempenho de sua exigente
profissão.
Agora quanto ao interesse dos médicos. Não
julgo que esse interesse possa lucrar com a incorporação da psicanálise à
medicina. O currículo médico já dura cinco anos e os exames finais avançam até
o sexto ano. De poucos em poucos anos são feitas novas exigências ao aluno, sem
o cumprimento das quais o cadebal deste para o futuro teria que ser declarado
insuficiente. O acesso à profissão médica é muito difícil e a clínica não é nem
muito satisfatória nem muito remuneradora. Se alguém apoiar a exigência, por
certo plenamente justificada, de que os médicos devem também familiarizar-se
com a parte mental da doença, e se por causa disto se ampliar a instrução médica
a ponto de abranger certo preparo para a análise, isto implica ulterior
sobrecarga do currículo e um correspondente prolongamento do período letivo.
Não sei se os médicos ficarão satisfeitos com essa conseqüência de sua
reivindicação em relação à análise. Mas dificilmente se pode fugir a esse fato.
E isto num período em que as condições da existência material se deterioram de
tal forma para as classes das quais os médicos são recrutados,um período no
qual a geração mais jovem se vê compelida a provar suas necessidades por si
mesma com a maior brevidade possível na vida.
Talvez, no entanto, o senhor escolha não
sobrecarregar os estudos médicos com o preparo para a prática analítica, mas
julgue mais conveniente que os futuros analistas sigam sua formação necessária
somente após a conclusão dos seus estudos médicos. Talvez diga que a perda de
tempo que isso implica não seja de importância prática alguma, visto que,
afinal de contas, um jovem com menos de trinta anos de idade jamais gozará da
confiança dos seus pacientes, a qual é um sine qua non para proporcionar
assistência mental. Sem dúvida talvez se dissesse como resposta que um médico
recém-saído da faculdade e que se dedique a doenças físicas não pode esperar
ser tratado pelos seus pacientes também com grande respeito e que um jovem
analista poderia muito bem preencher seu tempo trabalhando numa clínica
psicanalítica para pacientes externos sob a supervisão de profissionais
experimentados.
Mas o que me parece mais importante é que com
essa sua proposta o senhor está dando apoio a um desperdício de energia para o
qual, nestes tempos difíceis, realmente não posso encontrar qualquer
justificativa econômica. O tratamento analítico, é verdade, cruza o campo da
educação médica, mas um não inclui o outro. Se - o que pode parecer fantástico
hoje em dia - alguém tivesse de fundar uma faculdade de psicanálise, nesta
teria de ser ensinado muito do que já é lecionado pela escola de medicina:
juntamente com a psicologia profunda, que continua sempre como a principal
disciplina, haveria uma introdução à biologia, o máximo possível de ciência da
vida sexual e familiarização com a sintomatologia da psiquiatria. Por outro
lado, a instrução analítica abrangeria ramos de conhecimento distantes da medicina
e que o médico não encontra em sua clínica: a história da civilização, a
mitologia, a psicologia da religião e a ciência da literatura. A menos que
esteja bem familiarizado nessas matérias, um analista nada pode fazer de uma
grande massa de seu material. À guisa de compensação, a grande massa do que é
ensinado nas escolas de medicina não lhe é de utilidade alguma para suas
finalidades. Um conhecimento de anatomia dos ossos tarsianos, da constituição
dos carboidratos, do curso dos nervos cranianos, uma compreensão de tudo o que
a medicina trouxe à luz sobre as causas excitantes bacilares da doença e os
meios de combatê-las, sobre reações do soro e sobre neoplasmas - todo esse
conhecimento, que é indubitavelmente do mais alto valor em si, não obstante não
lhe é de nenhuma conseqüência; não lhe interessa; nem o ajuda diretamente a
compreender uma neurose e a curá-la, nem contribuir para um aguçamento daquelas
faculdades intelectuais às quaissua ocupação faz as maiores exigências. Não se
pode objetar que o caso é o mesmo quando um médico segue algum outro ramo
especial de medicina - a odontologia, por exemplo: nesse caso, também, ele
poderá não precisar de parte daquilo em que precisa ser aprovado nos exames e
muito terá que aprender além disso, em relação ao que sua escolaridade não o
preparou. Mas os dois casos não podem ser colocados no mesmo pé de igualdade.
Na odontologia os grandes princípios da patologia - as teorias da inflamação,
da supuração, da necrose e do metabolismo dos órgãos corporais - ainda
conservam sua importância. Mas a experiência de um analista está em outro
mundo, com outros fenômenos e outras leis. Por mais que a filosofia possa
ignorar o abismo entre o físico e o mental, ele ainda existe para a nossa
experiência imediata e ainda mais para os nossos empreendimentos práticos.
É injusto e inconveniente tentar compelir uma
pessoa que deseja libertar alguém do tormento de uma fobia ou de uma obsessão a
seguir a estrada indireta do currículo médico. Nem esse esforço terá qualquer
êxito, a menos que resulte inteiramente na supressão da análise. Imagine uma
paisagem na qual dois caminhos levam ao topo de uma colina de onde se
descortina um panorama - um curto e reto, o outro longo, sinuoso e tortuoso.
Tenta-se impedir o caminho curto mediante um aviso proibitório, talvez porque
passa por alguns canteiros de flores que se deseja proteger. A única
possibilidade que se tem de a proibição ser respeitada é se o caminho curto for
íngreme e difícil, enquanto o mais longo for uma subida suave. Se, contudo,
esse não for o caso, pode-se imaginar o uso da proibição e o destino dos
canteiros! Temo que se conseguirá compelir os leigos a estudarem medicina tão
pouco quanto serei capaz de induzir os médicos a aprenderem análise, pois o
senhor conhece a natureza humana tão bem quanto eu.
‘Se o senhor tiver razão, de que o tratamento
analítico não pode ser efetuado sem formação especial, mas que o currículo
médico não pode suportar ainda mais o fardo de um preparo para ele, e que os
conhecimentos médicos são, em grande medida, desnecessários para um analista,
como chegaremos ao médico ideal que esteja à altura de todas as tarefas de sua
vocação?’
Não posso prever a maneira de sair dessas
dificuldades, nem é da minha alçada ressaltá-la. Compreendo apenas duas coisas
- primeiro que a análise constitui um estorvo para o senhor e que a melhor
coisa seria que ela não existisse, embora os neuróticos, sem dúvida, constituam
também um estorvo; e em segundo lugar, que os interesses de todos os que se
preocupam com esse assunto seriam por enquanto atendidos se os médicos pudessem
resolver tolerar uma classe de terapeutas que os aliviariam do tédio de tratar
asneuroses psicogênicas enormemente comuns, enquanto ficariam em permanente
contato com eles em benefício dos pacientes.
‘Essa é a última palavra sobre o assunto? ou
tem algo mais a dizer?’
Sim, realmente. Eu quis apresentar um terceiro
interesse - o da ciência. O que tenho a dizer sobre isso pouco lhe interessará;
mas, por comparação, é de toda a importância para mim.
Pois não consideramos absolutamente conveniente
para uma psicanálise ser devorada pela medicina e encontrar seu último lugar de
repouso num livro de texto de psiquiatria sob a epígrafe ‘Métodos de
Tratamento’, juntamente com procedimentos tais como sugestão hipnótica,
auto-sugestão e persuasão, que, nascidas da nossa ignorância, têm de agradecer
a indolência e a covardia da humanidade por seus efeitos efêmeros. Merece
melhor destino e, pode-se esperar, o terá. Como uma ‘psicologia profunda’, uma
teoria do inconsciente mental, pode tornar-se indispensável a todas as ciências
que se interessam pela evolução da civilização humana e suas principais
instituições como a arte, a religião e a ordem social. Em minha opinião ela já
proporcionou a essas ciências considerável ajuda na solução de seus problemas.
Mas essas são apenas pequenas contribuições em confronto com o que poderia ser
alcançado se historiadores da civilização, psicólogos da religião, filósofos e
assim por diante concordassem em manejar o novo instrumento de pesquisa que
está a seu serviço. O emprego da análise para o tratamento das neuroses é
somente uma das suas aplicações; o futuro talvez demonstre que não é o mais
importante. Seja como for, seria errôneo sacrificar todas as outras aplicações
a essa única, só porque diz respeito ao círculo de interesses médicos.
Pois aqui uma perspectiva ulterior estende-se
adiante, a qual não pode ser invadida com impunidade. Se os representantes das
várias ciências mentais devem estudar a psicanálise a fim de ser capazes de
aplicar seus métodos e ângulos de abordagem ao seu próprio material, não lhes
será suficiente parar de repente nos achados que são formulados na literatura
analítica. Eles devem aprender a análise da única maneira possível -
submetendo-se eles próprios a uma análise. Os neuróticos que necessitam de
análise contariam assim com a companhia de uma segunda classe de pessoas, que
aceitam a análise por motivos intelectuais, mas que sem dúvida também acolherão
o aumento da capacidade que incidentalmente alcancem. Para efetuar essa análise
far-se-á necessário grande número de analistas, para os quais qualquer
conhecimento médico terá particularmente pouca importância. Mas esses
‘analistas didatas’ - vamos chamá-los assim - precisarão ter tido uma educação especificamente
cuidadosa. Se se quiser que ela nãofique tolhida, eles devem receber a
oportunidade de colher experiência de casos instrutivos e informativos; e visto
que pessoas saudáveis, às quais também falta o motivo da curiosidade, não se
apresentam para análise, é mais uma vez somente com os neuróticos que será
possível aos analistas didatas - sob cuidadosa supervisão - ser educados para a
sua atividade não-médica subseqüente. Tudo isso, contudo, requer certa dose de
liberdade de movimento, não sendo compatível com restrições mesquinhas.
Talvez o senhor não creia nesses interesses
puramente teóricos da psicanálise ou não possa permitir-lhes que afetem a
questão prática da análise leiga. Então deixe-me adverti-lo de que a
psicanálise tem ainda outra esfera de aplicação, que se acha fora do âmbito da
lei sobre charlatanismo e com relação à qual os médicos quase não farão
reivindicação. Refiro-me à aplicação à educação de crianças. Se uma criança
começa a mostrar sinais de um desenvolvimento indesejável, se se tornar
mal-humorada, indócil e desatenta, o pediatra e mesmo o médico da escola nada
poderão fazer por ela, mesmo se a criança apresenta sintomas neuróticos claros,
tais como nervoso, perda de apetite, vômitos ou insônia. Um tratamento que
combine a influência analítica com medidas educacionais, levado a efeito por
pessoas que não se envergonhem de interessar-se pelos assuntos próprios do
mundo da criança, e que compreendam como orientar-se na vida mental de uma
criança, pode ocasionar duas coisas ao mesmo tempo: a eliminação dos sintomas
neuróticos e a reversão da mudança de caráter que havia começado. Nosso
reconhecimento da importância dessas neuroses obscuras das crianças, como sendo
o que alicerça a disposição para graves doenças mais adiante na vida, ressalta
essas análises infantis como excelente método de profilaxia. A análise
indubitavelmente ainda tem seus inimigos. Não sei se estes dispõem de meios ao
seu alcance para paralisar as atividades desses analistas educacionais ou
educadores analíticos. Não penso que seja muito provável; mas nunca se pode
estar muito certo.
Além disso, voltando à nossa questão do
tratamento analítico dos neuróticos adultos, mesmo aí anda não esgotamos todas
as linhas de abordagem. Nossa civilização nos impõe uma pressão quase
intolerável e exige um corretivo. Será demasiado fantástico esperar que a
psicanálise, apesar de suas finalidades, possa estar destinada à tarefa de
preparar a humanidade para tal corretivo? Talvez mais uma vez um
norte-americano tenha a idéia de gastar algum dinheiro para que os ‘assistentes
sociais’ do seu país sejam formadosanaliticamente e para transformá-los num
grupo de auxiliares a fim de combaterem as neuroses da civilização.
‘Ah! uma nova espécie de Exército da Salvação!’
Por que não? Nossa imaginação sempre obedece a
padrões. A corrente daqueles ansiosos por aprender, que então fluirá para a
Europa, será obrigada a passar por Viena, pois aqui o desenvolvimento da
análise poderá ter sucumbido a um trauma prematuro de proibição. O senhor está
sorrindo? Não estou dizendo isso como um suborno em seu apoio. De modo algum.
Sei que o senhor não me conhece, nem posso garantir que isso me venha a
acontecer. Mas de uma coisa eu sei. De forma alguma é tão importante qual a
decisão que o senhor possa adotar no tocante à questão da análise leiga. Isso
poderá ter um efeito local. Mas as coisas que realmente importam - as
possibilidades na psicanálise de desenvolvimento interno - jamais poderão ser
afetadas por regulamentos e proibições.
PÓS-ESCRITO (1927)
Logo após eu ter escrito o pequeno volume que
constituiu o ponto de partida da presente apreciação, houve uma acusação de
charlatanismo apresentada contra um membro não-médico de nossa Sociedade, o Dr.
Theodor Reik, nos tribunais de Viena. Em geral se sabe, penso eu, que depois de
todos os trâmites preliminares terem sido concluídos e grande número de
pareceres técnicos terem sido recebidos, a acusação foi abandonada. Não creio
que isso tenha sido resultado do meu livro. Sem dúvida o argumento da procuradoria
foi muito fraco, e a pessoa que apresentou a acusação como a parte agravada
demonstrou ser uma testemunha indigna de confiança. De modo que a anulação do
processo contra o Dr. Reik provavelmente não deverá ser considerada como um
julgamento ponderado dos tribunais de Viena sobre a questão geral da análise
leiga. Quando tracei a figura da ‘Pessoa Imparcial’ que foi meu interlocutor em
meu opúsculo, tive diante de minha mente um dos nossos altos funcionários. Este
foi um homem com quem eu próprio conversara sobre o caso de Reik e a quem, a
pedido dele, escrevera um parecer confidencial sobre o assunto. Eu sabia que
não tinha conseguido convertê-lo aos meus pontos de vista, e foi por isso que
fiz com que meu diálogo com a Pessoa Imparcial terminasse também sem acordo.
Nem esperei que conseguisse êxito na obtenção
de unanimidade da atitude dos próprios analistas em relação ao problema da
análise leiga. Qualquer um que compare os pontos de vista expressos pela
Sociedade Húngara nessa apreciação com os do grupo de Nova Iorque talvez
conclua que meu livro não produziu efeito algum e que cada um persiste em sua
opinião anterior. Mas também não creio nisso. Penso que muitos dos meus colegas
modificaram seu extremo parti pris e que a maioria aceitou minha opinião de que
o problema da análise leiga não deve ser solucionado nos mesmos moldes do uso
tradicional, mas que decorre de uma nova situação e, portanto, exige novo
julgamento.
Além disso, a forma que dei a todo o exame
parece que contou com aprovação. Minha tese principal foi no sentido de que a
questão importante não é se um analista possui um diploma médico, mas se ele
recebeu a formação especial necessária à prática da análise. Isto serviu de
ponto de partida para uma discussão, que foi avidamente adotada, quanto a qual
é a formação mais adequada para um analista. Meu ponto de vista foi eainda
continua sendo o de que não é a formação prescrita pela universidade para
futuros médicos. O que se conhece como educação médica parece-me uma maneira
árdua e indireta de abordagem da profissão da análise. Sem dúvida ela oferece a
um analista muito do que lhe é indispensável. Mas ela o sobrecarrega de muitas
outras coisas que ele jamais utilizará, havendo o perigo de desviar seu
interesse e todo seu modo de pensamento da compreensão dos fenômenos psíquicos.
Um esquema de formação para analistas ainda tem de ser criado. Deve ele
abranger elementos das ciências mentais, da psicologia, da história e do estudo
da evolução. Há tanto a ser ensinado em tudo isso que é justificável omitir do
currículo qualquer coisa que não tenha relação direta alguma com a prática da
análise e somente sirva indiretamente (como qualquer outro estudo) de formação
para o intelecto e para os poderes de observação. É fácil fazer face a essa
sugestão objetando-se que as escolas analíticas dessa natureza não existem e
que eu estou simplesmente estabelecendo um ideal. Um ideal, sem dúvida. Mas um
ideal que pode e deve ser concretizado. E em nossos institutos de formação,
apesar de todas as suas insuficiências próprias de seus verdes anos, essa
concretização já teve início.
Não terá escapado aos meus leitores que naquilo
que afirmei presumi como axiomático algo que é ainda violentamente debatido no
exame. Presumi, vale dizer, que a psicanálise não é um ramo especializado da
medicina. Não vejo como é possível discutir isso. A psicanálise é uma parte da
psicologia; não da psicologia médica no velho sentido, não da psicologia de
processos mórbidos, mas simplesmente da psicologia. Certamente não é o todo da
psicologia, mas sua subestrutura e talvez mesmo todo o seu alicerce. A
possibilidade de sua aplicação a finalidades médicas não nos deve desorientar.
A eletricidade e a radiologia também têm sua aplicação médica, mas a ciência à
qual ambas pertencem é, não obstante, a física. Nem a situação delas pode ser
afetada por argumentos históricos. Toda a teoria da eletricidade teve sua
origem numa observação de um preparado muscular nervoso; contudo, ninguém
sonharia hoje em considerá-la como parte da fisiologia. Argumenta-se que a
psicanálise foi, afinal de contas, descoberta por um médico no curso dos seus
esforços para assistir seus pacientes. Mas isto claramente não está nem nesse
ponto nem naquele. Além disso, o argumento histórico é uma faca de dois gumes.
Poderíamos acompanhar a história e recordar a inamistosidade e mesmo a
animosidade com que a profissão médica tratou a análise bem desde o começo.
Isso pareceria implicar que ela não pode fazer quaisquer reivindicações à
análise no momento atual. E embora eu não aceite essaimplicação, ainda sinto
certas dúvidas quanto a se o presente cortejar da psicanálise pelos médicos
está baseado, do ponto de vista da teoria da libido, na primeira ou na segunda
subfases de Abraham - se desejam tomar posse de seu objeto com a finalidade de
destruí-lo ou de preservá-lo.
Gostaria de considerar o argumento histórico
por mais um momento. Visto que é em mim pessoalmente que estamos interessados,
posso lançar um pouco de luz, para qualquer um que esteja interessado, sobre
meus próprios motivos. Após quarenta e um anos de atividade médica, meu
autoconhecimento me diz que nunca fui realmente médico no sentido adequado.
Tornei-me médico por ter sido compelido a desviar-me do meu propósito original;
e o triunfo da minha vida está em eu haver, após uma viagem longa e indireta,
encontrado meu caminho de volta à minha senda mais antiga. Não tenho
conhecimento algum de haver tido qualquer anseio, na minha primeira infância,
de ajudar a humanidade sofredora. Minha disposição sádica inata não foi muito
forte, de modo que não tive qualquer necessidade de desenvolver essa disposição
dos seus derivados. Nem jamais ‘brinquei de médico’; minha curiosidade infantil
evidentemente escolheu outros caminhos. Em minha juventude senti uma
necessidade absorvente de compreender algo dos enigmas do mundo em que vivemos
e talvez mesmo de contribuir com alguma coisa para a solução dos mesmos. O meio
mais esperançoso de alcançar esse fim pareceu ser matricular-me na faculdade de
medicina; no entanto, mesmo após isto realizei experiências - sem êxito - com a
zoologia e a química, até que afinal, sob a influência de Brücke, que teve mais
influência sobre mim do que qualquer outra pessoa em toda minha vida, fixei-me
em fisiologia, embora naqueles dias ela estivesse muito estreitamente restrita
à histologia. Naquela ocasião já havia sido aprovado em todos os meus exames
médicos, mas não adquiri qualquer interesse por coisa alguma que tivesse a ver
com a medicina, até que o professor que eu tão profundamente respeitava advertiu-me
de que em vista das minhas circunstâncias materiais precárias eu não poderia
possivelmente seguir uma carreira teórica. Assim, passei da histologia do
sistema nervoso para a neuropatologia e depois, incentivado por novas
influências, comecei a interessar-me pelas neuroses. Quase não penso, contudo,
que a minha falta de autêntico temperamento médico tenha causado grande dano
aos meus pacientes, pois não é muito vantajoso para os pacientes se o interesse
terapêutico do seu médico tiver uma ênfase emocional muito marcante. Eles são
maisbem ajudados se ele executar sua tarefa friamente e obedecendo às regras
tão de perto quanto possível.
Sem dúvida o que acabo de dizer lança pouca luz
sobre o problema da análise leiga; destinou-se apenas a apresentar minhas
credenciais pessoais, como sendo eu próprio um partidário do valor inerente da
psicanálise e da independência de sua aplicação em relação à medicina. Mas
objetar-se-á, a esta altura, que se a psicanálise, considerada como uma
ciência, for considerada uma subdivisão da medicina ou da psicologia, isto será
uma questão puramente acadêmica e de nenhum interesse prático. O verdadeiro
ponto em debate, dir-se-á, é diferente, a saber, a aplicação da análise ao
tratamento de pacientes; até onde ela alega que faz isso, ela deve
contentar-se, continuará o argumento, em ser aceita como um ramo especializado
da medicina, como a radiologia, por exemplo, e em submeter-se às regras
formuladas para todos os métodos terapêuticos. Reconheço que isto seja assim;
admito-o. Só quero sentir-me seguro de que a terapia não destruirá a ciência.
Infelizmente, as analogias só nos levam até certa distância; logo se alcança um
ponto no qual os assuntos da comparação seguem caminhos divergentes. O caso da
análise difere do da radiologia. Não é preciso que um físico tenha um paciente
a fim de estudar as leis que regem os raios X. Mas o único tema da psicanálise
são os processos mentais dos seres humanos e é somente nos seres humanos que
ele pode ser estudado. Por motivos que podem facilmente ser compreendidos, os
seres humanos neuróticos oferecem material muito mais instrutivo e acessível do
que os normais, e sonegar esse material a qualquer um que deseje estudar e
aplicar a análise é privá-lo de boa metade das suas possibilidades de formação.
Não tenho, naturalmente, intenção alguma de pedir que os interesses de
pacientes neuróticos sejam sacrificados àqueles de instrução e de pesquisa
científica. O objetivo do meu pequeno volume sobre a questão da análise leiga
foi precisamente demonstrar que, se certas precauções forem observadas, os dois
interesses poderão facilmente ser harmonizados e que os interesses da medicina,
conforme compreendidos de maneira correta, não serão os últimos a lucrar com
tal solução.
Eu mesmo formulei todas as precauções
necessárias e posso afirmar com segurança que o debate nada acrescentou a esse
ponto. Mas gostaria de acrescentar que a ênfase foi dada muitas vezes da
maneira que não fazia justiça aos fatos. O que se disse sobre as dificuldades
do diagnóstico diferencial e da incerteza, em muitos casos, de chegar a uma
decisão sobre os sintomas somáticos - situações, vale dizer, nas quais os
conhecimentos médicos e a intervenção médica são necessários -, tudo isso é
perfeitamente verdadeiro. Não obstante, o número de casos em que dúvidas dessa
espéciejamais surgem de maneira alguma e que não se exige um médico é por certo
incomparavelmente maior. Esses casos podem ser bem desinteressantes
cientificamente, mas desempenham papel bastante importante na vida para justificarem
as atividades de analistas, que são perfeitamente capazes para lidar com eles.
Há algum tempo analisei um colega que dava provas de uma aversão
particularmente forte à idéia de permitir que qualquer um se empenhasse numa
atividade médica caso não fosse médico. Eu estava em condições de dizer-lhe:
‘Estamos agora trabalhando há mais de três meses. Em que ponto de nossa análise
tive ocasião de fazer uso dos meus conhecimentos médicos?’ Ele admitiu que eu
não tivera tal ocasião.
Além disso, não atribuo grande importância ao
argumento de que um analista leigo, porque ele deve estar preparado para
consultar um médico, não tenha autoridade aos olhos dos seus pacientes e não
seja tratado com mais respeito do que pessoas tais como endireitas* ou
massagistas. Mais uma vez, a analogia é imperfeita - bem independente do fato
de que o que rege os pacientes no reconhecimento, por parte destes, da
autoridade é, em geral, a transferência emocional deles e que a posse de um
diploma médico não os impressiona tanto como os médicos acreditam. Um analista
leigo não terá dificuldade alguma em angariar tanto respeito como é devido a um
assistente pastoral secular. Realmente, as palavras ‘assistente pastoral
secular’ bem poderiam servir como uma fórmula geral para descrever a função que
o analista, seja ele médico ou leigo, tem de realizar em relação ao público.
Nossos amigos do clero protestante, e mais recentemente também entre o clero
católico, são muitas vezes capazes de liberar seus paroquianos das inibições de
sua vida cotidiana confirmando-lhes a fé - depois de primeiro lhes haver
oferecido um pouco de informação analítica sobre a natureza dos seus conflitos.
Nossos antagonistas, os ‘psicólogos do indivíduo’ adlerianos, se esforçam por
produzir um resultado semelhante em pessoas que se tenham tornado instáveis e
deficientes, provocando-lhes o interesse pela comunidade social - após terem
primeiro lançado alguma luz sobre um único recanto de sua vida mental e lhes
terem revelado o papel desempenhado na doença deles pelos seus impulsos
egoístas e suspeitosos. Ambos esses processos, que tiram sua força por estarem
baseados na análise, têm seu lugar na psicoterapia. Nós que somos analistas
pomos diante de nós como nosso objetivo a análise mais completa e mais profunda
possível de quem quer que possa ser nosso paciente. Não procuramos levar-lhe
alívio recebendo-o na comunidade católica, protestante ou socialista. Antes
procuramos enriquecê-lo a partir de suas própria fontes internas, colocando à
disposição do seu ego aquelas energias que, devido à repressão, se acham
inacessivelmente confinadas em seuinconsciente, bem como aquelas que seu ego é
obrigado a desperdiçar na tarefa infrutífera de manter essas repressões. Uma
atividade como essa é trabalho pastoral no melhor sentido da palavra.
Atribuímos a nós mesmos uma finalidade demasiado alta? A maioria dos nossos
pacientes merece os cuidados que esse trabalho exige de nós? Não seria mais
econômico escorar suas fraquezas de fora antes do que reconstruí-las de dentro?
Não posso dizer; mas existe algo mais que eu realmente sei. Na psicanálise tem
existido desde o início um laço inseparável entre cura e pesquisa. O
conhecimento trouxe êxito terapêutico. Era impossível tratar um paciente sem
aprender algo de novo; foi impossível conseguir nova percepção sem perceber
seus resultados benéficos. Nosso método analítico é o único em que essa
preciosa conjunção é assegurada. É somente pela execução do nosso trabalho
pastoral analítico que podemos aprofundar nossa compreensão que desponta da mente
humana. Essa perspectiva de ganho científico tem sido a feição mais orgulhosa e
feliz do trabalho analítico. Devemos sacrificá-la a bem de quaisquer
considerações de natureza prática?
Algumas observações feitas no curso dessa
apreciação levaram-me a suspeitar que, apesar de tudo, meu livro sobre análise
leiga foi mal compreendido sob um aspecto. Os médicos se têm defendido de mim,
como se eu houvesse declarado que eles eram em geral incompetentes para
praticar a análise e como se eu tivesse afirmado como uma senha que reforços
médicos deviam ser rejeitados. A idéia provavelmente surgiu de eu ter sido
levado a declarar no curso de minhas observações (que tinham uma finalidade
controversa em vista) que analistas médicos não formados eram ainda mais
perigosos que os leigos. Talvez possa tornar clara minha verdadeira opinião
sobre essa questão dando eco a uma observação cínica sobre as mulheres que
certa vez apareceu em Simplicissimus. Um homem se queixava a outro das
fraquezas e da natureza melindrosa do belo sexo. ‘Seja como for’, replicou seu
companheiro, ‘as mulheres são a melhor coisa que temos dessa espécie’. Sou
obrigado a admitir que, enquanto as escolas que desejamos para formação de
analistas ainda não existirem, as pessoas que tenham tido uma educação preliminar
em medicina constituem o melhor material para futuros analistas. Temos o
direito de exigir, contudo, que elas não devem confundir sua educação
preliminar com uma formação completa, que elas devem superar aunilateralidade
que é estimulada pela instrução nas escolas de medicina e que devem resistir à
tentação de flertar com a endocrinologia e o sistema nervoso autônomo, quando
aquilo de que se necessita é de uma percepção de fatos psicológicos com a ajuda
de uma estrutura de conceitos psicológicos. Também partilho do ponto de vista
de que todos aqueles problemas que se relacionam com a ligação entre os
fenômenos psíquicos e seus fundamentos orgânicos, anatômicos e químicos podem
ser abordados somente por aqueles que tenham estudado ambos, isto é, por
analistas médicos. Não se deve esquecer, contudo, que isso não é o todo da
psicanálise, e que quanto ao seu outro aspecto nunca podemos passar sem
cooperação de pessoas que tenham tido uma educação preliminar nas ciências
mentais. Por motivos práticos temos tido o hábito - e isso é verdade,
incidentalmente, também em relação às nossas publicações - de distinguir entre
análise médica e aplicada. Mas essa não é uma distinção lógica. A verdadeira
linha de divisão situa-se entre a análise científica e suas aplicações
igualmente nos setores médico e não-médico.
Nessas apreciações, a rejeição mais rude da
análise leiga foi expressa por nossos colegas norte-americanos. Algumas
palavras em resposta a eles, não serão, penso, fora de propósito. Dificilmente
posso ser acusado de fazer mau uso da análise para finalidades controversas, se
expressar a opinião de que a resistência por parte deles provém inteiramente de
fatores práticos. Eles vêem como em seu próprio país os analistas leigos
submetem a análise a todas as espécies de finalidades nocivas e ilegítimas e,
em conseqüência, causam dano tanto aos seus pacientes como ao bom nome da
análise. Não é, portanto, de se admirar que em sua indagação eles evitem o mais
amplamente possível tais inescrupulosos fomentadores de discórdia e tentem
impedir que quaisquer leigos tenham participação na análise. Mas esses fatos já
são suficientes para reduzir o significado da posição norte-americana, pois a
questão da análise leiga não deve ser resolvida somente com base em considerações
práticas, e as condições locais nos Estados Unidos não podem ser a única
influência determinante sobre nossos pontos de vista.
A resolução aprovada por nossos colegas
norte-americanos contra os analistas leigos, baseada como essencialmente está
em razões práticas, parece-me, não obstante, pouco prática, pois não poderá
afetar qualquer dos fatores que regem a situação. Ela é mais ou menos
equivalente a uma tentativa de repressão. Se for impossível impedir os
analistas leigos de exercerem suas atividades e se o público não apoiar a
campanha contra eles, não seria mais aconselhável reconhecer o fato de sua
existência oferecendo-lhes oportunidades de formação? Talvez não fosse
possível, dessa maneira, alcançar certainfluência sobre eles? E, se lhes fosse oferecida
como incentivo a possibilidade de receberem a aprovação da profissão médica e
de serem convidados a cooperar, será que eles não teriam certo interesse em
elevar seu próprio padrão ético e intelectual?
VIENA, junho de 1927
PSICANÁLISE (1926)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
(1925 Provável data da composição.)
1934 G.S., 12, 372-80.
1934
Almanach 1935, 9-17. (Omitindo-se a Bibliografia.)
1935
Z. Psychoanal. Päd., 9 (2), 73-80. (Com inclusão da Bibliografia.)
1948 G.W., 14, 299-307.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Psychoanalysis:
Freudian Scholl’
1926 Em Encyclopaedia Britannica, 13ª ed., Novo Vol.
3, 253-5. (Trad. de James Strachey.)
1929
Em Encyclopaedia Britannica, 14ª ed., 18, 672-4. (Reimpressão da anterior.)
A presente tradução é uma revisão daquela
publicada pela primeira vez em 1926. O artigo é reimpresso aqui mediante
entendimento com autores da Encyclopaedia Britannica.
A Décima-Primeira Edição da Encyclopedia
Britannica veio a lume em 1910-11. Não continha qualquer referência à
psicanálise. Após a primeira guerra mundial, em 1922, surgiu o que se declarou
ser a ‘Décima-Segunda Edição’. Esta consistia na antiga Décima-Primeira Edição
juntamente com três ‘Novos Volumes’. Ainda não havia qualquer artigo sobre psicanálise.
Logo depois resolveu-se lançar, em 1926, uma ‘Décima-Terceira Edição,’ que iria
consistir novamente na antiga Décima-Primeira com o acréscimo, mais uma vez, de
três ‘Novos Volumes Suplementares’ - mas diferentes daqueles que haviam
integrado a ‘Décima-Segunda Edição’. Dessa vez um artigo sobre psicanálise foi
julgado necessário, e solicitaram ao próprio Freud que colaborasse com o mesmo.
Sem dúvida ele ficou satisfeito em aceitar o convite, visto que a Encyclopaedia
Britannica ocupava um lugar predileto em seu coração. Enquanto preparava Totem
e Tabu, escreveu a Ernest Jones (em 24 de fevereiro de 1912) dando uma lista de
todas as autoridades que ele havia consultado, e concluía com evidente orgulho:
‘Estou agora até de posse da Encyclopaedia Britannica, 11ª ed., 1911.’ (Jones,
1953, 395.) E era uma obra que ele estava sempre ávido por consultar. Já, além
disso, em 1924, ele havia contribuído com um longo capítulo sobre psicanálise
para uma compilação em dois volumes que fora lançada pelos editores da
Encyclopaedia Britannica sob o título These Eventful Years. Muito pouco tempo
após a publicação da Décima-Terceira Edição, reconheceu-se a necessidade de
produzir uma nova edição completa de toda obra. Houve um movimento para
substituir o artigo de Freud por um diferente; mas, através dos esforços
conjuntos de Ernest Jones e do próprio Freud, essa idéia foi eliminada, e o
artigo foi mantido inalterado na Décima-Quarta Edição (1929) e em todas as
subseqüentes.
De fato, contudo, quando o original alemão veio
à luz em 1934, viu-se que certo número de modificações pequenas, mas não
destituídas de importância, tinham, desde o início, sido feitas na versão
inglesa. O título do artigo, por exemplo, fora alterado de ‘Psicanálise’ para
‘Psicanálise: Escola Freudiana’ e uma referência pouco lisonjeira a Jung e
Adler havia sido omitida. Subtítulos adicionais também tinham sido inseridos, o
que não parece ajudar o encadeamento do argumento de Freud. Para finalidades
atuais, o melhor plano pareceu remontar ao original alemão, conforme elaborado
por Freud, sendo as divergências mais importantes da versão da Encyclopaedia
Britannica indicadas em notas de rodapé. Aproveitou-se a oportunidade para
rever a tradução e harmonizar alguns dos termos técnicos com o uso adotado em
outras partes nesta edição.
PSICANÁLISE
Visto que a psicanálise não foi mencionada na
décima-primeira edição da Encyclopaedia Britannica, é impossível restringir
este relato aos seus progressos desde 1910. A parte mais importante e mais
interessante de sua história está no período antes dessa data.
PRÉ-HISTÓRIA
Nos anos de 1880-2 um médico vienense, o Dr.
Josef Breuer (1842-1925), descobriu um novo método por meio do qual aliviou uma
moça, que vinha sofrendo de grave histeria, de seus muitos e variados sintomas.
Ocorreu-lhe a idéia de que os sintomas estavam ligados a impressões que ela
recebera durante um período de agitação enquanto cuidava do pai enfermo. Ele
então induziu-a, enquanto ela se encontrava num estado de sonambulismo
hipnótico, a procurar essas ligações em sua memória e a viver através das cenas
‘patogênicas’ mais uma vez, sem inibir, os afetos que surgiam no processo. Ele
verificou que quando ela fizera isso, o sintoma em causa desapareceu para
sempre.
Isso ocorreu numa data anterior às
investigações de Charcot e de Pierre Janet sobre a origem dos sintomas
histéricos, e assim a descoberta de Breuer não foi de modo algum influenciada
por eles. Mas ele não levou o assunto adiante na época e só uns dez anos depois
é que o recomeçou em colaboração com Sigmund Freud. Em 1895 publicaram um
livro, Estudos sobre a Histeria, no qual as descobertas de Breuer foram
descritas e se fez uma tentativa para explicá-las pela teoria da ‘cartase‘. De
acordo com essa hipótese, os sintomas histéricos se originam através da energia
de um processo mental que é afastado da influência consciente e desviada para a
inervação corporal (‘conversão‘). Um sintoma histérico seria assim um
substituto de um ato mental omitido e uma reminiscência da ocasião que deve ter
dado margem a esse fato. E, com base nesse ponto de vista, a recuperação seria
o resultado da liberação do afeto que se extraviara e de sua descarga por um
caminho normal (‘ab-reação‘). O tratamento catártico deu excelentes resultados
terapêuticos, mas verificou-se que não eram permanentes e que não eram
independentes da relação pessoal entre o paciente e o médico. Freud, que depois
prosseguiu com essas investigações sozinho, fez uma alteração técnica das
mesmas, substituindo a hipnose pelo método da associação livre. Ele inventou o
termo ‘psicanálise’, que no curso do tempo veio a ter dois significados: (1) um
método específico de tratar as perturbações nervosas e (2) a ciência dos
processos mentais inconscientes, que também é apropriadamente descrita como ‘psicologia
profunda’.
TEMA DA PSICANÁLISE
A psicanálise encontra apoio sempre crescente
como método terapêutico, devido ao fato de que pode fazer mais pelos seus
pacientes do que qualquer outro método de tratamento. O principal campo de sua
aplicação são as neuroses mais brandas - histeria, fobias e estados obsessivos;
e nas malformações do caráter e inibições ou anormalidades sexuais ela também
pode trazer acentuadas melhorias ou mesmo recuperações. Sua influência sobre a
demência precoce e a paranóia é duvidosa; por outro lado em circunstâncias
favoráveis pode lidar com estados depressivos, mesmo se forem de tipo grave.
Em cada caso, o tratamento exige muito, tanto
do método como do paciente: o primeiro necessita de uma formação especial e
deve dedicar longo período de tempo à exploração da mente do paciente, ao passo
que o segundo deve fazer consideráveis sacrifícios, tanto materiais como
mentais. Não obstante, todas as preocupações em jogo são, em geral,
recompensadas pelos resultados. A psicanálise não atua como uma panacéia
conveniente (‘cito, tute, jucunde‘) para perturbações psicológicas. Ao
contrário, sua aplicação tem sido essencial para tornar claras pela primeira
vez as dificuldades e as limitações no tratamento de tais distúrbios. No
momento, só em Berlim e em Viena é que há instituições voluntárias que tornam o
tratamento psicanalítico acessível às classes assalariadas.
A influência terapêutica da psicanálise depende
da substituição de atos mentais inconscientes por conscientes e vigora dentro
dos limites desse fator. A substituição é efetivada superando-se as
resistências internas na mente do paciente. O futuro provavelmente atribuirá
muito maior importância à psicanálise como a ciência do inconsciente do que
como um procedimento terapêutico.
A psicanálise, no seu caráter de psicologia
profunda, considera a vida mental de três pontos de vista: o dinâmico, o
econômico e o topográfico.
Do primeiro desses pontos de vista, o dinâmico,
a psicanálise extrai todos os processos mentais (independentes da recepção de
estímulos externos) da ação mútua de forças, que ajudam ou inibem umas às
outras, se combinam, entram em conciliações umas com as outras etc. Todas essas
forças são originalmente da natureza de instintos; assim, possuem uma origem
orgânica. São caracterizadas por possuírem uma reserva de energia (somática)
imensa (‘a compulsão à repetição‘); e são representadas mentalmente como
imagens ou idéias com uma carga afetiva. Na psicanálise, não menos do que em
outras ciências, a teoria dos instintos é um assunto obscuro. Uma análise
empírica conduz à formulação de dois grupos de instintos: os denominados
‘instintos do ego’, que estão dirigidos para a autopreservação, e os ‘instintos
do objeto’, que dizem respeito às relações com um objeto externo. Os instintos
sociais não são considerados como elementares ou irredutíveis. A especulação
teórica leva à suspeita de que há dois instintos fundamentais que jazem ocultos
por detrás dos instintos do ego e dos instintos do objeto manifesto: a saber,
(a) Eros, o instinto que luta sempre por uma união mais estreita, e (b) o
insisto de destruição, que leva no sentido da destruição do que está vivo. Em
psicanálise dá-se o nome de ‘libido‘ à manifestação da força de Eros.
Do ponto de vista econômico, a psicanálise
supõe que os representantes mentais dos instintos têm uma carga (catexia) de
quantidades definidas de energia, sendo finalidade do aparelho mental impedir
qualquer represamento dessas energias e manter o mais baixo possível o volume total
das excitações com que ele se acha carregado. O curso dos processos mentais é
automati-camente regulado pelo ‘princípio do prazer-desprazer‘; o desprazer
está assim de certa forma relacionado com um aumento de excitação, e o prazer
com uma redução. No curso do desenvolvimento, o princípio de prazer original
passa por uma modificação com referência ao mundo externo, dando lugar ao
‘princípio de realidade‘, de conformidade com o qual o aparelho mental aprende
a adiar o prazer da satisfação e a tolerar temporariamente sentimentos de
desprazer.
Topograficamente, a psicanálise considera o
aparelho mental como um instrumento composto, esforçando-se por determinar em
quais pontos dele ocorrem os vários processos mentais. De acordo com os pontos
de vista psicanalíticos mais recentes, o aparelho mental compõe-se de um ‘id‘,
que é o repositório dos impulsos instintuais, de um ‘ego‘, que é a parte mais
superficial do id e aquela que foi modificada pela influência do mundo externo,
e de um ‘superego‘, que se desenvolve do id, domina-o e representa as inibições
do instinto que são características do homem. A qualidade da consciência,
também, conta com uma referência topográfica, pois os processos no id são
inteiramente inconscientes, ao passo que a consciência é a função da camada
mais externa do ego, que se interessa pela percepção do mundo externo.
A esta altura, duas observações talvez sejam
cabíveis. Não se deve supor que estas idéias muito gerais sejam pressuposições
das quais depende o trabalho da psicanálise. Pelo contrário, são suas
conclusões mais recentes e estão ‘abertas à revisão’. A psicanálise está
firmemente alicerçada na observação dos fatos da vida mental e por essa mesma
razão sua superestrutura teórica ainda está incompleta e sujeita a constante alteração.
Em segundo lugar, não existe motivo para surpresa que a psicanálise, que
originalmente nada mais era que uma tentativa de explicar os fenômenos mentais
patológicos, deva ter-se desenvolvido numa psicologia da vida mental normal. A
justificativa disso surgiu com a descoberta de que os sonhos e os erros
[‘parapraxias’, tais como lapsos de linguagem etc.] de homens normais têm o
mesmo mecanismo que os sintomas neuróticos.
A primeira tarefa da psicanálise foi a
elucidação dos distúrbios neuróticos. A teoria analítica baseia-se em três
pedras angulares: o reconhecimento da (1) ‘repressão‘, da (2) importância do
instinto sexual e da (3) ‘transferência‘.
(1) Há uma força na mente que exerce as funções
de uma censura e que exclui da consciência e de qualquer influência sobre a
ação todas as tendências que a desagradam. Tais tendências são descritas como
‘reprimidas’. Elas permanecem inconscientes e se alguém tentar levá-las para a
consciência do paciente provoca-se uma ‘resistência‘.2 Esses impulsos instintuais
reprimidos, contudo, nem sempre se tornaram impotentes. Em muitos casos
conseguiram fazer sentir sua influência na mente por caminhos indiretos, e as
satisfações indiretas ou substitutivas dos impulsos reprimidos assim alcançadas
são o que constitui os sintomas neuróticos. (2) Por motivos culturais, a
repressão mais intensa incide sobre os instintos sexuais; mas é precisamente em
relação com eles que a repressão mais facilmente falha, de modo que se verifica
que os sintomas neuróticos são satisfações substitutivas da sexualidade
reprimida. A crença de que no homem a vida sexual começa apenas na puberdade é
incorreta. Pelo contrário, sinais dela podem ser detectados desde o começo da
existência extra-uterina; ela atinge um primeiro ponto culminante no ou antes
do quinto ano (‘período primitivo’), depois do qual fica inibida ou
interrompida (‘período de latência’) até a idade da puberdade, que é o segundo
clímax do seu desenvolvimento. Esse desencadeamento bifásico do desenvolvimento
sexual parece ser distintivo do gênero Homo. Todas as experiências durante o
primeiro período da infância são da maior importância para o indivíduo e em
combinação com sua constituição sexual herdada foram as disposições para o
desenvolvimento subseqüente do caráter e da doença. É errôneo fazer a
sexualidade coincidir com a ‘genitalidade’! Os instintos sexuais passam por um
complicado curso de desenvolvimento, e só no fim deste é que a ‘primazia das
zonas genitais’ é alcançada. Antes disso há grande número de organizações
‘pré-genitais’ da libido - pontos nos quais ela pode tornar-se ‘fixada’ e aos
quais, no caso de subseqüente repressão, ela retornará (‘regressão‘). As
fixações infantis da libido são o que determina a forma de qualquer neurose
ulterior. Assim, as neuroses devem ser consideradas como inibições no
desenvolvimento da libido. Não existem causas específicas de perturbações
nervosas; a questão de se um conflito encontra uma solução saudável ou conduz a
uma inibição neurótica de função depende de considerações quantitativas.
O conflito mais importante com o qual se
defende uma criancinha é sua relação com os pais, o ‘Complexo de Édipo‘; é ao
tentar lidar com esse problema que aqueles destinados a sofrer de uma neurose
habitualmente malogram. As reações contra as exigências instintuais do complexo
de Édipo são a fonte das realizações mais preciosas e socialmente importantes
da mente humana; e isto é válido não somente na vida dos indivíduos, como
também provavelmente na história da espécie humana como um todo. O superego também,
a instância moral que domina o ego, tem sua origem no processo de superação do
complexo de Édipo.
(3) Por ‘transferência‘ quer-se dizer uma
peculiaridade marcante dos neuróticos. Eles desenvolvem para com seu médico
relações emocionais, tanto de caráter afetuoso como hostil, que não se baseiam
na situação real, mas que derivam de suas relações com os pais (o complexo de
Édipo). A transferência é uma prova do fato de que os adultos não superaram sua
antiga dependência infantil; ela coincide com a força que foi designada como
‘sugestão’; e é somente aprendendo a fazer uso dela que o médico fica
capacitado a induzir o paciente a superar suas resistências internas e a
eliminar suas repressões. Dessa forma, o tratamento analítico atua como uma
segunda educação do adulto, como um corretivo da sua educação enquanto criança.
Dentro desse estreito âmbito foi impossível
mencionar muitos assuntos do maior interesse, tais como a ‘sublimação‘ dos
instintos, o papel desempenhado pelo simbolismo, o problema da ‘ambivalência‘
etc. Nem houve espaço para aludir às aplicações da psicanálise - originadas,
como vimos, na esfera da medicina - a outros setores do conhecimento (como a
antropologia social, o estudo da religião, a história literária e a educação),
onde sua influência vem constantemente aumentando. Basta dizer que a
psicanálise, em seu caráter da psicologia dos atos mentais inconscientes mais
profundos, promete tornar-se o elo entre a psiquiatria e todos aqueles outros
ramos da ciência mental.
A HISTÓRIA EXTERNA DA
PSICANÁLISE
Os primórdios da psicanálise podem ser
assinalados por duas datas: 1895, que viu a publicação dos Estudos sobre a
Histeria de Breuer e Freud, e 1900, que testemunhou a da Interpretação de
Sonhos, de Freud. De início, as novas descobertas não despertaram interesse
algum quer na profissão médica, quer entre o público em geral. Em 1907 os
psiquiatras suíços, sob a liderança de E. Bleuler e C. G. Jung, começaram a
interessar-se pelo assunto; em 1908 realizou-se em Salzburgo uma primeira
reunião dos partidários provenientes de grande número de diferentes países. Em
1909 Freud e Jung foram convidados para visitar os Estados Unidos por G.
Stanley Hall a fim de pronunciarem uma série de conferências sobre psicanálise
na Universidade de Clark, Worcester, Mass. A partir daquela época, o interesse
cresceu rapidamente na Europa; expressou-se contudo, numa rejeição muito
enérgica dos novos ensinamentos - uma rejeição que muitas vezes revelou uma
coloração não-científica.
As razões dessa hostilidade iriam ser
encontradas, do ponto de vista médico, no fato de que a psicanálise dá ênfase a
fatores psíquicos, e, do ponto de vista filosófico, na suposição do conceito da
atividade mental inconsciente como sendo um postulado fundamental; mas a razão
mais forte foi, indubitavelmente, a indisposição geral da humanidade em
conceder ao fator da sexualidade a importância que lhe é atribuída pela
psicanálise. Apesar dessa oposição generalizada, contudo, o movimento em prol
da psicanálise não iria ser refreado. Seus partidários aglutinaram-se numa
Associação Internacional, que atravessou incólume as provações da grande
guerra, e na hora presente (1925) abrange grupos locais em Viena, Berlim,
Budapeste, Londres, Suíça, Holanda, Moscou e Calcutá, bem como dois nos Estados
Unidos. Há três periódicos que representam os pontos de vista dessas
sociedades: o Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, Imago (que se
interessa pela aplicação da psicanálise a campos não-médicos de conhecimentos),
e o International Journal of Psycho-Analysis.
Durante os anos de 1911-13 dois ex-partidários,
Alfred Adler, de Viena, e C. G. Jung, de Zurique, retiraram-se do movimento
psicanalítico e fundaram suas escolas de pensamento, as quais, em vista da
hostilidade geral à psicanálise, podiam estar certas de uma acolhida favorável,
mas permaneceram cientificamente estéreis. Em 1921 o Dr. M. Eitingon fundou em
Berlim a primeira clínica e escola de formação psicanalítica pública, logo
acompanhada de uma segunda em Viena.
BIBLIOGRAFIA
Breuer e Freud, Studien über Hysterie (1895);
Freud, Traumdeutung (1900); Zur Psychopathologie des Alltagslebens (1904); Drei
Abhandlugen zur Sexualtheorie (1905); Vorlesungen zur Einführung in die
Psychoanalyse (1916). As obras completas de Freud foram publicadas em alemão
(Gesammelte Schriften) (1925) e em espanhol (Obras completas) (1923); a maior
parte delas foi traduzida para o inglês e outras línguas. Breves relatos do
tema e da história da psicanálise serão encontrados em: Freud, Über
Psychoanalyse (as conferências pronunciadas em Worcester, EUA) (1909); Zur
Geschichte der psychoanalytischen Bewegung (1914); Selbstdarstellung (na
coleção de Grote, Die Medizin der Gegenwart in Selbstdarstellungen) (1925).
Particularmente acessíveis aos leitores ingleses são: Ernest Jones, Papers on
Psycho-Analysis, e A. A. Brill, Psychoanalysis.
DISCURSO PERANTE A SOCIEDADE DOS
BNAI BRITH (1941 [1926])
ANSPRACHE AN DIE MITGLIEDER
DES VEREINS BNAI BRITH
(a) EDIÇÃO ALEMÃ:
1941 G. W., 17, 51-3.
(b)
TRADUÇÃO INGLESA:
‘Adress
to the Society of B’nai B’rith.’
A presente tradução, de James Strachey, parece
ser a primeira para o inglês. Algumas frases dela foram apresentadas numa nota
de rodapé na p.312 de The Origins of Psycho-Analysis (1954), a tradução inglesa
de Freud, 1950a.
Esse discurso foi lido em nome de Freud numa
reunião dos B’nai B’rith realizada em 6 de maio de 1926, em honra ao seu
septuagésimo aniversário. Fora precedido por um discurso laudatório feito pelo
seu médico, o professor Ludwig Braun.
Os B’nai B’rith (Filhos da Aliança) são uma
ordem que representa os interesses judeus - culturais, intelectuais e
caritativos. Originalmente fundada nos Estados Unidos em meados do século XIX,
tem lojas filiadas em muitas partes do mundo. Como se verá adiante, Freud
filiou-se ao grupo de Viena em 1895 e durante muitos anos foi freqüentador
assíduo de suas reuniões, realizadas em terças-feiras alternadas. De tempos a
tempos ele próprio pronunciou conferências ali, havendo os temas de algumas delas
sido registrados: duas conferências sobre sonhos em dezembro de 1897 (Freud,
1950a, Carta 78); outra, não especificada, em março de 1900 (ibid., Carta 130);
sobre La fécondité, de Zola, em 27 de abril de 1900 (Jones, 1953, 363); sobre
La révolte des anges, de Anatole France (Sachs, 1945, 103); e a segunda parte
de suas ‘Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte’, em 1915 (Jones, 1955,
415).
DISCURSO PERANTE A SOCIEDADE DOS
BNAI BRITH
Ilustríssimo Grão Presidente, ilustríssimos
Presidentes, caros Irmãos, -
Agradeço-vos as honrarias que me prestastes
hoje. Sabeis por que não podeis ouvir o som de minha própria voz. Ouvistes um
dos meus amigos e alunos falar do meu trabalho científico; mas é difícil formar
um julgamento sobre tais coisas e por muito tempo ainda ele não pode ser
alcançado com segurança. Permiti-me acrescentar algo ao que foi dito por aquele
que é tanto meu amigo como o médico que vela por mim. Gostaria de dizer-vos em
breves palavras como me tornei um dos vossos e o que procurei de vós.
Aconteceu que nos anos a partir de 1895 fiquei
sujeito a duas poderosas impressões que se combinaram para produzir o mesmo
efeito sobre mim. Por um lado, alcançara minha primeira compreensão interna
(insight) das profundezas da vida dos instintos humanos; eu vira certas coisas
que eram tranqüilizadoras e mesmo, de início, assustadoras. Por outro, a
comunicação das minhas descobertas desagradáveis teve como resultado a ruptura
da maior parte dos meus contatos humanos; senti-me como se fosse desprezado e
universalmente evitado. Em minha solidão fui presa do anseio de encontrar um
círculo de homens de escol de caráter elevado que me recebesse com espírito
amistoso, apesar da minha temeridade. Vossa sociedade foi-me indicada como o lugar
onde tais homens deviam ser encontrados.
O fato de vós serdes judeus só me poderia ser
agradável, pois eu próprio sou judeu, e sempre me parecera não somente indigno
como positivamente insensato negar esse fato. O que me ligava ao povo judeu não
era (envergonho-me de admitir) nem a fé nem o orgulho nacional, pois sempre fui
um descrente e fui educado sem nenhuma religião, embora não sem respeito pelo
que se denomina de padrões ‘éticos’ da civilização humana. Sempre que sentia
inclinação pelo entusiasmo nacional esforçava-me por suprimi-lo como sendo
prejudicial e errado, alarmado pelos exemplos de advertência dos povos entre os
quais nós judeus vivemos. Mas restavam muitas outras coisas que tornavam a
atração do mundo judeu e dos judeus irresistível - muitas forças emocionais
obscuras, que eram mais poderosas quanto menos pudessem ser expressas em
palavras, bem como uma nítida consciência de identidade interna, a reserva
segura de uma construção mental comum. E além disso havia uma percepção de que
era somente à minha natureza judaica que eu devia duas características que se
haviam tornado indispensáveis para mim no difícil curso de minha vida. Por ser
judeu encontrei-me livre de muitos preconceitos que restringiam outros no uso
de seu intelecto, e como Judeu estava preparado para aliar-me à Oposição e
passar sem consenso à ‘maioria compacta’.
Assim foi que me tornei um dos vossos, tive
minha parcela em vossos interesses humanitários e nacionais, angariei amigos
entre vós e persuadi meus próprios e poucos amigos restantes a se filiarem à
nossa sociedade. Não houve absolutamente qualquer dúvida em convencer-vos das
minhas novas teorias; mas numa época em que ninguém na Europa me dava ouvidos e
ainda não tinha nenhum discípulo mesmo em Viena, vós me concedestes vossa
amável atenção. Vós fostes o meu primeiro auditório.
Durante cerca de dois terços do longo período
que decorreu desde meu ingresso persisti convosco de maneira conscienciosa, e
encontrei refrigério e estímulo em minhas relações convosco. Vós tendes sido
bastante amáveis hoje para não incriminar-me de que durante a última terça
parte do tempo me mantive afastado de vós. Estive sobrecarregado de trabalho e
as exigências ligadas ao mesmo pesaram sobre mim; o dia deixou de ser bastante
longo para que eu freqüentasse vossas reuniões, e logo meu corpo começou a
rebelar-se contra uma refeição tomada tarde da noite. Finalmente sobrevieram os
anos de minha doença, o que me impede de estar entre vós até mesmo num dia como
o de hoje.
Não posso dizer se fui um autêntico Filho da
Aliança no vosso sentido da palavra. Estou quase inclinado a duvidar disso;
muitas circunstâncias excepcionais surgiram no meu caso. Mas de uma coisa posso
assegurar-vos - que vós muito significastes para mim e muito fizestes por mim
durante os anos nos quais fiz parte de vós. Peço-vos, portanto, que aceiteis
meus calorosos agradecimentos tanto por esses anos como por hoje.
Vosso em W. B. & E.Sigm. Freud
BREVES ESCRITOS (1926)
KARL ABRAHAM 1926
O Dr. Karl Abraham, presidente do grupo de
Berlim, do qual foi o fundador, e presidente, na época, da Associação
Psicanalítica Internacional, faleceu em Berlim em 25 de dezembro [1925]. Não
havia alcançado a idade de cinqüenta anos quando sucumbiu a um mal interno
contra o qual sua poderosa constituição tivera de lutar desde a primavera. No
Congresso de Houburg ele parecera, para grande alegria de todos nós, ter-se
recuperado, mas uma recaída nos trouxe penoso desapontamento.
Enterramos com ele - integer vitae scelerisque
purus - uma das esperanças mais firmes da nossa ciência, jovem como é e ainda
tão implacavelmente agredida, e uma parte do seu futuro que agora, talvez, seja
irrealizável. Dentre todos aqueles que me acompanhavam pelos sombrios caminhos
da pesquisa psicanalítica, ele granjeou um lugar tão proeminente que somente um
outro nome poderia ser posto ao lado dele. É provável que a confiança ilimitada
de seus colegas e alunos o teria convocado para a liderança e sem dúvida ele
teria sido um líder modelo na busca da verdade, não se deixando desencaminhar
nem pelo louvor, nem pela censura dos muitos, nem pela sedutora ilusão de suas
próprias fantasias.
Escrevo estas linhas para os amigos e
companheiros de trabalho que conheceram e valorizaram Abraham como eu. Eles
acharão fácil compreender o que a perda desse amigo, muito mais jovem que eu,
significa para mim; e me perdoarão se eu não fizer qualquer outra tentativa de
expressar o que é tão difícil de traduzir em palavras. Um relato da
personalidade científica de Abraham e uma apreciação do seu trabalho serão
empreendidos para a nossa revista por outrem.
A ROMAIN ROLLAND(1926)
Viena IX, Bergasse, 19, 29 de janeiro de 1926.
Inesquecível amigo! Com que dificuldades e
sofrimentos você deve ter lutado para atingir o ponto culminante da humanidade
como o seu!
Muitos anos antes de vê-lo, eu o havia exaltado
como um artista e um apóstolo do amor da humanidade. Eu próprio fui um
discípulo do amor da humanidade, não por motivos sentimentais ou em busca de um
ideal, mas por motivos desapaixonados e econômicos, porque, sendo os nossos
instintos inatos e o mundo que nos cerca o que são, não poderia deixar de
considerar esse amor como não menos essencial para a sobrevivência da raça
humana do que tais coisas como a tecnologia.
E quando finalmente vim a conhecê-lo
pessoalmente, fiquei surpreendido em verificar que você pode apreciar a força e
a energia tão altamente e que você mesmo encarna essa força de vontade.
Que a próxima década não lhe traga outra coisa
senão êxitos!
Muito cordialmenteSigm. Freud, aetat, 70
NOTA PREAMBULAR A UM ARTIGO DE E.
PICKWORTH FARROW (1926)
Conheço o autor deste artigo como um homem de
inteligência valiosa e independente. Provavelmente por ser um tanto
voluntarioso deixou de manter boas relações com dois analistas com os quais fez
a tentativa. Logo depois passou a fazer uma aplicação sistemática do método de
auto-análise que eu próprio empreguei no passado para a análise de meus
próprios sonhos. Seus achados merecem atenção precisamente por causa do caráter
peculiar de sua personalidade e de sua técnica.