“Gradiva” de Jensen e outros
trabalhos
VOLUME IX
(1906 - 1908)
DELÍRIOS E
SONHOS NA GRADIVA DE JENSEN (1907 [1906])
NOTA DO EDITOR INGLÊS
DER WAHN UND DIE TRÄUME IN
W. JENSENS GRADIVA
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1907
Leipzig e Viena: Heller. 81 págs. (Schriften zur angewandten
Seelenkunde, Heft 1.) (Reeditada
sem alterações, com a mesma página de rosto, mas com uma nova sobrecapa:
Leipzig e Viena: Deuticke, 1908.)
1912 2ª
ed. Leipzig e Viena: Deuticke. Com ‘Pós-escrito’. 87 págs.
1924 3ª ed. Mesmos editores.
Sem alterações.
1925 G.S., 9,
273-367.
1941 G.W., 7, 31-125.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
Delusion and Dream
1917 Nova Iorque: Moffat, Yard. 243 págs. (Trad. de H.
M. Downey.) (Com uma
introdução de G. Stanley Hall. Omite o ‘Pós-escrito’ de Freud. Inclui a
tradução da obra de Jensen.)
1921
Londres: George Allen & Unwin. 213 págs. (Reimpressão da anterior.)
A
presente tradução, totalmente nova e com título modificado, é de James
Strachey. O ‘Pós-escrito’ aparece em inglês pela primeira vez.
Esta foi
a primeira análise de uma obra de literatura feita por Freud a ser publicada,
com exceção, naturalmente, de seus comentários sobre Édipo Rei e Hamlet
em A Interpretação de Sonhos
(1900a), ver a partir de [1], IMAGO Editora, 1972. Entretanto, ele já
escrevera anteriormente uma curta análise da obra de Conrad Ferdinand Meyer
‘Die Richterin’ [‘A Juíza’], e a enviara a Fliess, juntamente com a carta de 20
de junho de 1898 (Freud, 1950a, Carta 91).
Através
de Ernest Jones (1955, 382) sabemos que foi Jung quem chamou a atenção de Freud
para o livro de Jensen. Acredita-se que Freud escreveu o presente trabalho
especialmente para agradar a Jung. Isso ocorreu no verão de 1906, vários meses
antes do primeiro encontro dos dois, sendo esse episódio, assim, o prenúncio
dos cinco ou seis anos de suas relações cordiais. O estudo de Freud foi
publicado em maio de 1907, e pouco depois ele enviou um exemplar do mesmo a
Jensen. Seguiu-se uma breve correspondência, à qual se faz alusão no
‘Pós-Escrito’ à segunda edição (ver em [1]). As três pequenas cartas que Jensen
enviou a Freud em 13 de maio, 25 de maio e 14 de dezembro de 1907 foram
publicadas em Psychoanalytische Bewegung, 1 (1929), 207-211. Trata-se de
cartas muito cordiais, as quais fazem crer que Jensen tenha ficado lisonjeado
com a análise de Freud, parecendo inclusive ter aceito as linhas principais da
interpretação. Declara, em particular, não se lembrar de ter dado uma resposta
‘um tanto brusca’ ao lhe ser perguntado (parece que por Jung) se acaso conhecia
as teorias de Freud, como relatado em [2].
Afora a
significação mais profunda, aquilo que atraiu especialmente a atenção de Freud
na obra de Jensen foi, sem dúvida, o cenário em que ela se desenrola. Já era
antigo o interesse de Freud por Pompéia, emergindo mais de uma vez em sua
correspondência com Fliess. Assim, como associação para a palavra ‘via‘,
em um de seus sonhos, ele fornece ‘as ruas de Pompéia que estudo no momento’.
Isso ocorreu numa carta datada de 28 de abril de 1897 (Freud, 1950a,
Carta 60), alguns anos antes de ele visitar realmente aquela cidade em setembro
de 1902. Freud sentia-se particularmente fascinado pela analogia existente
entre o destino histórico de Pompéia (o soterramento e a posterior escavação) e
os eventos mentais que lhe eram tão familiares: o soterramento pela repressão e
a escavação pela análise. Em parte essa analogia foi sugerida pelo próprio
Jensen (ver em [1]), e Freud desenvolveu-a com prazer neste trabalho, assim
como em contextos posteriores.
Ao ler
este estudo de Freud, vale a pena que se tenha em mente seu lugar cronológico
entre as obras do autor. Trata-se de um dos seus primeiros trabalhos
psicanalíticos, escrito apenas um ano após a primeira publicação do caso
clínico de ‘Dora’ e dos Três Ensaios sobre a Sexualidade. Inseridos no
exame de Gradiva encontram-se não só um sumário da explanação de Freud
sobre os sonhos, mas também o que talvez seja a primeira de suas exposições
semipopulares de sua teoria das neuroses e da ação terapêutica da psicanálise.
É impossível deixar de admirar a habilidade quase prestidigital com que ele
extrai esse material riquíssimo daquilo que, à primeira vista, parece ser
apenas uma história engenhosa. No entanto, seria erro menosprezar o papel que
Jensen desempenhou, embora inconscientemente, nesse resultado.
DELÍRIOS E SONHOS NA GRADIVA DE JENSEN
Um grupo
de pessoas, que acreditava terem sido os mistérios básicos do sonho decifrados
pelos esforços do autor do presente trabalho, sentiu, certo dia, sua
curiosidade voltar-se para a questão da classe de sonhos que nunca haviam sido
sonhados - sonhos criados por escritores imaginativos e por estes atribuídos a
personagens no curso de uma história. A idéia de submeter a uma investigação
essa espécie de sonhos pode parecer estranha e improfícua, mas de certo ponto
de vista seria justificável. Está bem longe de ser geral a crença de que os
sonhos possuem um significado e podem ser interpretados. A ciência e a maioria
das pessoas cultas sorriem quando se lhes propõe a interpretação de um sonho.
Só as pessoas simples, que se apegam às superstições e assim perpetuam as
convicções da Antiguidade, continuam a insistir que eles são passíveis de
interpretação. O autor de ousou, apesar das reprovações da ciência estrita,
colocar-se ao lado da superstição e da Antiguidade. É verdade que ele nem de
longe acredita serem os sonhos presságios do futuro, desse futuro que desde
tempos imemoriais os homens vêm tentando inutilmente adivinhar por toda sorte
de meios proibidos. Entretanto, não é capaz de refutar de todo a relação entre
os sonhos e o futuro, pois o sonho, ao fim da laboriosa tarefa de traduzi-lo,
revelou-se ao autor como sendo a representação da realização de um desejo do
sonhador; e quem poderia negar que os desejos se orientam predominantemente
para o futuro?
Acabei
de afirmar que os sonhos são desejos realizados. Quem não recear os percalços
de um livro obscuro, e não exigir que um problema complicado lhe seja
apresentado como simples e fácil, para poupar-lhe trabalho às expensas da
verdade e da honestidade, poderá encontrar provas detalhadas dessa tese na obra
que mencionei. Enquanto isso, seria desejável que ignorasse as objeções que sem
dúvida surgirão contra a equiparação entre sonhos e realização de desejos.
Mas
estamo-nos adiantando muito. Ainda não se trata de determinar se o significado
de um sonho pode ser sempre interpretado como um desejo realizado, ou se acaso
não poderá, com a mesma freqüência, representar uma expectativa ansiosa, uma
intenção, uma reflexão, etc. Ao contrário, a primeira pergunta que se nos
apresenta é se realmente possuem os sonhos algum significado, e se devem ser
considerados como eventos mentais. A resposta da ciência é negativa: ela
explica o sonhar como sendo um processo puramente fisiológico, por trás do qual
não há, conseqüentemente, necessidade de procurar um sentido, um significado ou
um propósito. Os estímulos somáticos, segundo consta, agem sobre o aparelho
mental durante o sono, levando à consciência ora uma, ora outra idéia,
desprovidas de qualquer conteúdo mental: os sonhos são comparáveis a meras
contrações, e não a movimentos expressivos da mente.
Nessa
controvérsia a respeito do caráter dos sonhos, os escritores imaginativos
parecem tomar o partido dos antigos, da superstição popular e do autor de A
Interpretação de Sonhos. Pois quando um autor faz sonhar os personagens
construídos por sua imaginação, segue a experiência cotidiana de que os
pensamentos e os sentimentos das pessoas têm prosseguimento no sonho, sendo seu
único objetivo retratar o estado de espírito de seus heróis através de seus
sonhos. E os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho
deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de
coisas entre o ceú e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos
deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente,
já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência. Mas se
esse apoio dos escritores a favor de os sonhos possuírem um significado fosse
menos ambíguo! Um crítico mais severo poderia objetar que os escritores não se
manifestam nem contra nem a favor de os sonhos terem um significado psíquico,
contentando-se em mostrar como a mente adormecida se contrai sob excitações que
nela permaneceram ativas como prolongamentos do estado de vigília.
Mas esse
pensamento sensato não vem arrefecer nosso interesse pela maneira como os
escritores fazem uso dos sonhos. Mesmo que essa investigação nada de novo nos
ensine sobre a natureza dos sonhos, talvez permita-nos obter alguma compreensão
interna (insight), ainda que tênue, da natureza da criação literária. Os
sonhos verdadeiros já eram considerados como estruturas imoderadas e
arbitrárias - e agora somos confrontados com livres imitações desses sonhos!
Entretanto, há muito menos liberdade e arbitrariedade na vida mental do que
tendemos a admitir, e pode ser até que não exista nenhuma. Aquilo que no mundo
externo denominamos de casualidade pode, como sabemos, ser colocado dentro de
leis. Assim também o que chamamos de arbitrariedade da mente repousa sobre leis
das quais só agora começamos vagamente a suspeitar. Vamos, então, prosseguir!
Podemos
adotar dois métodos para essa investigação. Um deles seria examinar um caso
particular, penetrando a fundo nas criações oníricas de uma das obras de um
determinado escritor. O outro consistiria em reunir e cotejar todos os exemplos
que pudessem ser encontrados do uso de sonhos nas obras de diversos autores. O
segundo poderia parecer o mais eficaz, e talvez o único justificável, já que
nos liberta imediatamente das dificuldades inerentes à adoção do conceito
artificial de ‘escritores’ como classe. Ao ser investigada, essa classe
desagregar-se-ia em escritores individuais de valor extremamente diverso, entre
os quais alguns que veneramos como os mais profundos observadores da mente
humana. Apesar disso, essas páginas serão dedicadas a uma pesquisa do primeiro
tipo. Aconteceu que uma pessoa do grupo onde primeiro surgiu essa idéia
lembrou-se de que a última obra de ficção que prendera seu interesse continha
vários sonhos cujas fisionomias familiares como que o haviam encarado e
convidado a tentar aplicar-lhes o método da Interpretação de Sonhos. Ele
confessou que o tema da pequena obra e o cenário em que o mesmo se desenvolvia
haviam, sem dúvida, construído o principal fator de seu prazer. A história
situava-se em Pompéia e tratava de um jovem arqueólogo que abdicara do seu
interesse pela vida para dedicar-se aos remanescentes da Antiguidade clássica,
sendo por meios tortuosos e estranhos, embora perfeitamente lógicos, novamente
atraído à vida real. O tratamento dado a esse material genuinamente poético
despertara em seu leitor toda uma série de pensamentos afins e em harmonia com
esse material. A obra era o conto Gradiva, de Wilhelm Jensen, descrito
por seu próprio autor como sendo uma ‘fantasia pompeana’.
E aqui
eu pediria a meus leitores que deixassem de lado este pequeno ensaio e
passassem algum tempo familiarizando-se com Gradiva (publicada pela
primeira vez em 1903), para que aquilo a que eu me referir nas páginas que se
seguem possa ser familiar a eles. Para os que já leram Gradiva, farei um
breve resumo de sua história, esperando que suas memórias lhe restituam todo o
encanto que ela perderá com este tratamento.
Um jovem
arqueólogo, Norbert Hanold, descobrira num museu de antiguidades em Roma um
relevo que o atraíra muitíssimo, tendo com grande prazer conseguido do mesmo
uma excelente cópia em gesso, a qual colocou em seu gabinete de trabalho numa
cidade universitária da Alemanha para admirá-la com vagar. A escultura
representava uma jovem adulta, cujas vestes esvoaçantes revelavam os pés
calçados com leves sandálias, surpreendida ao caminhar. Um dos pés repousava no
solo, enquanto o outro, já flexionado para o próximo passo, apoiava-se somente
na ponta dos dedos, estando a planta e o calcanhar perpendiculares ao solo.
Provavelmente foi esse modo de andar incomum e particularmente gracioso que
atraiu a atenção do escultor e que, tantos séculos depois, seduziu seu
admirador arqueólogo.
O
interesse que o relevo desperta no herói da história é o fato psicológico
básico da narrativa. Não há uma explicação imediata para esse interesse. ‘O Dr.
Norbert Hanold, lente de arqueologia, na verdade nada encontrou no relevo que
merecesse uma atenção especial do ponto de vista da sua disciplina científica.’
(3.) ‘Ele não pôde explicar a si mesmo o que havia nele que atraíra sua
atenção. Só sabia que fora atraído por algo e que desde aquele instante o
efeito permanecera inalterado.’ Sua imaginação não cessava de se ocupar com a
escultura. Ele a achava ‘viva’ e ‘atual’, como se o artista houvesse
reproduzido uma rápida visão colhida nas ruas. Chamou a figura do relevo de
‘Gradiva’ - ‘a jovem que avança’. Imaginou que ela era, sem dúvida, filha de
uma família nobre, talvez ‘de um edil patrício que exercia seu cargo a serviço de
Ceres,’ e que ela estava a caminho do templo da deusa. Contudo, tinha
dificuldade em situar sua natureza serena e tranqüila no clima agitado de uma
capital, convencendo-se então de que ela deveria ser transportada para Pompéia,
onde atravessava uma via sobre as curiosas pedras com ressaltos descobertas nas
escavações que, dispostas com intervalos para a passagem das rodas do veículo,
permitiam aos pedestres conservar os pés secos nos dias chuvosos. Percebeu em
sua fisionomia traços gregos, e estava convencido de que a jovem tinha origem
helênica. Pouco a pouco Norbert Hanold colocou todo o seu acervo de
conhecimentos arqueológicos a serviço desta e de outras fantasias relativas ao
modelo da escultura.
A essa
altura, um problema de caráter aparentemente científico, que pedia uma solução,
veio atormentá-lo. Tratava-se de determinar ‘se aquela maneira de pisar de
Gradiva fora reproduzida pelo escultor como na vida’. Ele mesmo achava que não
conseguiria imitá-la, e para comprovar a ‘realidade’ desse modo de andar
resolveu, ‘para aclarar a questão, observar a vida’. (9.) Essa resolução,
entretanto, levou-o a agir de forma pouquíssimo condizente com seus hábitos.
‘Até então o sexo feminino não passara para ele de um conceito expresso em
mármore ou em bronze, e nunca prestara a menor atenção às suas representantes
contemporâneas’. O arqueólogo sempre considerara os deveres sociais como um
inevitável aborrecimento. No convívio social prestava tão pouca atenção ao
aspecto e à conversa das jovens, que ao reencontrá-las acidentalmente passava
sem um cumprimento, o que certamente não causava impressão favorável. Agora,
entretanto, a tarefa científica a que se propusera impelia-o na rua,
especialmente nos dias chuvosos, a observar ansiosamente os pés de todas as
mulheres que encontrava, atividade que lhe granjeava olhares ora indignados,
ora encorajadores dos objetos de sua observação, ‘mas ele não percebia nem uns,
nem outros’. (10.) Essa pesquisa meticulosa levou-o a concluir que o modo de
andar de Gradiva não era encontrável na realidade, o que o encheu de desânimo e
consternação.
Pouco
depois ele teve um sonho terrível, no qual se encontrava na antiga Pompéia,
testemunhando a destruição da cidade pela erupção do Vesúvio. ‘Estava junto ao
foro, ao lado do templo de Júpiter, quando subitamente viu Gradiva a uma
pequena distância. Até aquele momento nem sequer lhe ocorrera a possibilidade
de encontrá-la, mas então isso lhe ocorreu como sendo muito natural, já que era
pompeana e residia em sua cidade natal, na mesma época que ele, sem que
disto ele tivesse a menor suspeita.(12.) Receoso da sorte que a aguardava,
gritou para a prevenir, ao que, sem se deter, a jovem voltou-lhe o rosto
sereno, mas continuou seu caminho até alcançar o pórtico do templo. Ali
sentou-se em um dos degraus e curvou-se lentamente até repousar a cabeça no
piso, enquanto suas faces cada vez mais pálidas pareciam transformar-se em
mármore. Ele se precipitou em sua direção, mas ao alcançá-la encontrou-a
deitada no largo degrau com uma expressão tranqüila, como se estivesse
adormecida, até que a chuva de cinzas cobriu sua figura.
Quando
ele acordou, o surdo arrebentar das ondas enraivecidas e os gritos confusos dos
habitantes de Pompéia, clamando por socorro, ainda pareciam ecoar em seus
ouvidos. Mas mesmo depois que suas faculdades despertadas reconheceram nesses
sons o bulício matinal da cidade, continuou por muito tempo a acreditar na
realidade de seu sonho. Quando por fim se libertou da idéia de que estivera
presente à destruição de Pompéia, cerca de dois mil anos antes, ficou-lhe o que
parecia firme convicção de que Gradiva ali vivera e fora soterrada com o resto
da população em 79 D.C. Em conseqüência desse sonho, pela primeira vez em suas
fantasias sobre Gradiva, lamentou-a como alguém que tivesse sido perdido.
Absorto
nesses pensamentos, chegou à janela e os gorjeios de um canário numa gaiola, na
janela da casa em frente, despertaram sua atenção. Subitamente um sobressalto
sacudiu a mente do jovem, que ainda parecia imerso em seu sonho. Julgou ter
visto na rua uma silhueta semelhante a Gradiva e ter inclusive reconhecido seu
andar característico. Sem refletir, correu à calçada para a interceptar, mas as
risadas e chacotas dos transeuntes, diante de seus trajes matinais, fizeram-no
voltar para casa. De novo no quarto, tornou a reparar no canto do canário, o
qual sugeria uma comparação consigo mesmo. Também ele estava preso numa gaiola,
embora lhe fosse mais fácil a fuga. Ainda sob a influência do sonho, e talvez
também do suave ar primaveril, formou-se nele a determinação de empreender uma
viagem à Itália. Logo encontrou um pretexto científico para a excursão, embora
‘o impulso para essa viagem tivesse origem num sentimento que ele não podia
nomear’.(24.)
Vamo-nos
deter por um momento nessa viagem, programada por motivos tão fortuitos, e
examinar mais de perto a personalidade e o comportamento de nosso herói, que
ainda se nos apresenta incompreensível e insensato, visto ainda ignorarmos como
sua singular loucura se ligará a sentimentos humanos e assim despertará nossa
simpatia. Mas é um dos privilégios do escritor poder deixar-nos na incerteza! O
encanto de sua linguagem e a engenhosidade de suas idéias recompensam-nos
provisoriamente pela confiança que depositamos nele e pela simpatia, ainda
injustificada, que nos dispomos a conceder a seu herói. Veremos que ele foi
predestinado pela tradição da família a dedicar-se à arqueologia e que, quando
se achou só e independente, se absorveu inteiramente nos estudos, afastando-se
por completo da vida e seus prazeres. Só o mármore e o bronze eram para ele
verdadeiramente vivos, só esses materiais exprimiam o propósito e o valor da
vida humana. Mas a natureza, talvez com um intuito benevolente, instilara em
seu sangue um corretivo de caráter nada científico: uma imaginação vivíssima
que se mostrava em seus sonhos e também no estado de vigília. Essa divisão
entre imaginação e intelecto o predispunha a tornar-se ou um artista ou um
neurótico; ele estava entre aqueles cujo reino não é deste mundo. Daí resultou
interessar-se pelo relevo que representava uma jovem caminhando de forma
peculiar e tecer sobre a mesma suas fantasias, imaginando para ela um nome e
uma origem, e situando-a na cidade de Pompéia, soterrada há mais de mil e
oitocentos anos, até que por fim, após um estranho sonho de ansiedade, sua
fantasia da existência e da morte de Gradiva ampliou-se, passando a constituir
um delírio que influenciava suas ações. Tais produtos da imaginação seriam
considerados espantosos e inexplicáveis numa pessoa da vida real; no entanto,
como nosso herói, Norbert Hanold, é uma pessoa fictícia, talvez possamos
perguntar timidamente a seu autor se acaso sua imaginação não terá sido
determinada por forças outras que não as da sua escolha arbitrária.
Deixamos
nosso herói no momento em que, aparentemente influenciado pelos trinados de um
canário, se decide, com um propósito que evidentemente não estava claro para
ele, a viajar para a Itália. Descobriremos mais adiante que não tinha nem plano
nem roteiro fixos para essa viagem. A intranqüilidade e a insatisfação internas
levaram-no a transferir-se de Roma para Nápoles, e daí para mais adiante.
Viu-se envolvido por uma nuvem de casais em lua-de-mel e forçado a observar os
ternos pares de ‘Edwins’ e ‘Angelinas’, em transportes amorosos que lhe pareciam
incompreensíveis. Chegou à conclusão de que, de todas as loucuras da
humanidade, ‘o casamento é a maior e a mais incompreensível, sendo o ápice
dessa imbecilidade aquelas despropositadas viagens de núpcias à Itália.’ (27.)
Em Roma seu sono foi perturbado pela proximidade de um casal amoroso, e ele
fugiu apressadamente para Nápoles, ali deparando, entretanto, outra série de
‘Edwins’ e ‘Angelinas’. Inferindo da conversa destes que a maioria não tinha
intenção alguma de aninhar-se entre as ruínas de Pompéia, estando a caminho de
Capri, resolveu fazer uma opção contrária à deles, e poucos dias depois de
iniciar a viagem encontrava-se em Pompéia, ‘contra todas as suas intenções e
expectativas’.
Mas
também ali não encontrou a tranqüilidade procurada. O papel até então
desempenhado pelos casais em lua-de-mel, que haviam irritado e mortificado seu
espírito, transferiu-se para as moscas, consideradas por Hanold como a
encarnação de tudo que é absolutamente nocivo e desnecessário. As duas espécies
de espíritos atormentadores fundiram-se numa unidade: alguns pares de moscas
fizeram-no recordar os recém-casados, e ele imaginou que também elas em sua
linguagem interpelam-se docemente por ‘meu querido Edwin’ e ‘minha adorada
Angelina.’ Por fim concluiu que ‘seu descontentamento não era resultado apenas
de circunstâncias externas, tendo em parte origem interna.’ (42.) Sentiu que
estava ‘insatisfeito porque lhe faltava algo, embora não pudesse precisar o
quê.’
Na manhã
seguinte atravessou o ‘Ingresso‘ de Pompéia e, depois de livrar-se do
guia, percorreu a esmo a cidade, sem que - fato estranho - lhe ocorresse à
lembrança o sonho recente em que estivera presente à sua destruição. Mais
tarde, à ‘cálida e sagrada hora do meio-dia, que para os antigos era a hora dos
espíritos, quando os demais visitantes se haviam retirado e as ruínas jaziam
desertas sob a luz do sol ardente, julgou poder transportar-se à vida que havia
sido enterrada, mas não com o auxílio da ciência. ‘Ela ensina uma concepção
fria e arqueológica do mundo e faz uso de uma linguagem filológica e morta, que
em nada contribuem para uma compreensão da qual participem o espírito, os
sentimentos, o coração. Quem desejar atingi-la deve permanecer aqui, solitário,
único ser vivente nessa calma abrasadora do meio-dia, entre as relíquias do
passado, e ver, mas não com os olhos do corpo, e ouvir, mas não com os ouvidos
físicos. E então… os mortos acordarão e Pompéia tornará mais uma vez à vida.’
(55.)
Enquanto
assim ressuscitava o passado com a sua imaginação, viu subitamente a
inconfundível Gradiva do seu relevo sair de uma casa e atravessar a rua com
passos lépidos sobre as pedras de lava, como no sonho em que ela se deitara nos
degraus do templo de Apolo. ‘E com essa lembrança, pela primeira vez veio à sua
consciência que, embora ignorando o impulso interno que o impelia, se viera à
Itália, dirigindo-se a Pompéia sem deter-se em Roma ou em Nápoles, fora para
procurar as pegadas de Gradiva - e “pegadas” no sentido literal, pois com
aquele andar peculiar ela deveria ter deixado impressões inconfundíveis nas
cinzas de Pompéia.’ (58.)
Nesse
ponto a tensão em que até agora nos mantém o autor transforma-se por um momento
numa dolorosa perplexidade. Evidentemente não foi só o nosso herói quem perdeu
o equilíbrio. Também ficamos desorientados com o aparecimento de Gradiva, que
de uma figura em mármore já passara a figura imaginária. Acaso seria ela uma
alucinação do nosso herói, perturbado por seus delírios, ou seria um
‘verdadeiro’ fantasma, ou ainda uma pessoa viva? Não se quer dizer com isso que
precisemos acreditar em fantasmas. O autor, que rotulou de ‘fantasia’ sua obra,
ainda não nos informou se pretende deixar-nos dentro do nosso mundo, desse
prosaico mundo governado pelas leis da ciência, ou se pretende transportar-nos a
um outro mundo imaginário, no qual se concede realidade aos espíritos e
fantasmas. Estamos preparados para segui-lo sem hesitações, como nos exemplos
de Hamlet e Macbeth, e nesse caso encararíamos por outro prisma o
delírio do imaginativo arqueólogo. Na verdade, ao considerarmos quão improvável
é a existência de uma pessoa real que seja a imagem viva de uma escultura
antiga, as hipóteses reduzem-se a duas: uma alucinação ou um fantasma do
meio-dia. Um pequeno detalhe na narrativa leva-nos a abandonar a primeira
possibilidade. Um pequeno lagarto, que sobre uma pedra desfrutava imóvel do
calor do sol, fugiu assustado à aproximação do pé de Gradiva. Não se tratava,
assim, de uma alucinação, mas de alguma coisa externa à mente de nosso
sonhador. Contudo, a realidade de uma rediviva poderia perturbar um
lagarto?
Gradiva
desapareceu em frente à Casa de Meleagro. Não nos deve surpreender que o
arqueólogo tenha prosseguido em seu delírio de que Pompéia tornara à vida ao
meio-dia, hora dos espíritos, e que Gradiva também tenha tornado à vida e
entrado na casa em que vivera antes daquele fatal dia de agosto de 79 D.C. Sua
mente constrói as mais engenhosas especulações sobre a personalidade do
proprietário (de quem a casa provavelmente tomara o nome) e sobre sua relação
com Gradiva, demonstrando que sua ciência estava agora inteiramente a serviço
de sua imaginação. Ele entrou na residência e defrontou-se subitamente, mais
uma vez, com a aparição sentada em alguns degraus baixos que se estendiam entre
duas colunas amarelecidas, ‘tendo sobre os joelhos um objeto branco cuja
natureza ele não conseguiu precisar, talvez uma folha de papiro…’ Baseando-se
na teoria que formulara sobre a origem da jovem, interpelou-a em grego e
esperou, cheio de ansiedade, pela comprovação de que a aparição possuía o dom
da palavra. Como não obteve resposta, interrogou-a em latim, ao que ela
retrucou com um sorriso nos lábios: ‘Se desejas falar-me deves empregar o
alemão.’
Que
humilhação para nós leitores! Então o autor estava se divertindo à nossa custa,
fazendo-nos participar em pequena escala do delírio do personagem, como se
sobre nós também incidisse o escaldante sol de Pompéia, para que julgássemos
com maior benevolência o pobre coitado sobre quem realmente incidia o sol do
meio-dia. Agora, entretanto, já estamos curados da nossa momentânea confusão, e
sabemos que Gradiva é uma jovem alemã de carne e osso, solução que antes
estávamos inclinados a rejeitar como altamente improvável. Tranqüilos,
superiores, vamos pois esperar que o autor nos revele a relação existente entre
a jovem e sua imagem em mármore, e como nosso jovem arqueólogo chegou às
fantasias que conduziram até a personalidade real de Gradiva.
Mas o
delírio de nosso herói não se dissipou com a mesma facilidade que o nosso, pois
como nos revela o autor, ‘embora feliz em sua crença, era-lhe necessário
aceitar muitas circunstâncias misteriosas.’ (140.). Provavelmente esse delírio
tinha em Hanold raízes internas, as quais são em nós existentes e das quais
nada conhecemos. Parece-nos, sem dúvida, que em seu caso seria necessário um
tratamento enérgico para que pudesse ser trazido de volta à realidade. No
momento tudo que estava ao seu alcance era incorporar a seu delírio a
maravilhosa experiência por que acabara de passar. Gradiva, que perecera com o
resto da população na destruição de Pompéia, nada mais podia ser senão um
fantasma do meio-dia, o qual voltava à vida naquele breve instante consagrado
aos espíritos. Mas por que, então, ele replicou ao ouvir a resposta dela em
alemão: ‘Eu já sabia como soaria a tua voz’? A jovem também estranhou a
réplica, assim como nós, e Hanold confessou nunca tê-la ouvido antes, embora
esperasse ouvi-la em seu sonho, quando lhe falara ao vê-la deitada nos degraus
do templo. Implorou-lhe que repetisse a cena, mas a esse pedido ela se
levantou, olhando-o de forma estranha, e em poucos passos desapareceu entre as
colunas do pátio. Pouco antes uma borboleta revoluteara em torno da jovem, e
ele a interpretou como uma mensageira de Hades, a qual veio lembrar à jovem
morta que ela devia retornar, pois a hora concedida aos fantasmas estava para
terminar. Hanold ainda teve tempo de bradar ao vê-la escapar: ‘Voltarás aqui
amanhã ao meio-dia?’ Entretanto, podemos permitir-nos interpretações menos
fantásticas e ver na fuga da jovem um sinal de que a mesma, já que desconhecia
o sonho dele, julgara imprópria a observação que lhe fora dirigida por Hanold e
se retirara ofendida. Não teria a sua sensibilidade percebido a natureza
erótica da pretensão de Hanold, que este acreditava motivada somente pelo seu
sonho?
Após o
desaparecimento de Gradiva, nosso herói passou cuidadosamente em revista os
hóspedes reunidos para o almoço no Hotel Diomède e no Hotel Suisse,
assegurando-se assim que nos dois únicos hotéis que conhecia em Pompéia não
existia ninguém que se assemelhasse, ainda que remotamente, com Gradiva. Teria,
naturalmente, rejeitado como tola a idéia de que talvez pudesse realmente
encontrar Gradiva ali. Logo o vinho originário das quentes faldas do Vesúvio
contribuiu para intensificar o turbilhão de sentimentos em que ele passou o
dia.
No dia
seguinte só uma coisa estava fixa: Hanold devia voltar à Casa de Meleagro ao
meio-dia; e, na expectativa desse momento, penetrou irregularmente nas ruínas
de Pompéia, escalando o antigo muro da cidade. Deparou um pé de asfódelo em
flor, coberto de pequenas campânulas brancas, e colheu para si um ramo ao
lembrar-se de que se tratava da flor dos infernos. Enquanto esperava, a
arqueologia começou a lhe parecer a ciência mais inútil e desinteressante do
mundo, pois outro interesse concentrava agora suas atenções: o problema do ‘que
poderia ser a natureza da aparição corpórea de Gradiva, um ser que estava
simultaneamente morto e vivo, embora só ao meio-dia’. (80.) Também receava não
a encontrar naquele dia, pois talvez sua volta só fosse permitida a longos
intervalos; ao vê-la outra vez entre as colunas, julgou que a aparição não
passava de um truque de sua imaginação e exclamou em sua dor: ‘Ah! Se ao menos
fosses real e viva!’ Mas dessa vez errara em seu julgamento, pois a aparição
dirigiu-se a ele, perguntando-lhe se a flor era para si, e travou com o
desconcertado arqueólogo um longo colóquio.
O autor
passa a explicar a seus leitores, para quem Gradiva já interessava como pessoa
viva, que o olhar de desprazer e repulsa que a jovem lhe dirigira na véspera
dera lugar a uma expressão de curiosidade e profundo interesse. Ela na verdade
começou a interrogá-lo, pedindo-lhe uma explicação para sua observação do dia
anterior e querendo saber em que ocasião ficara ao lado dela enquanto ela se
deitava para dormir. Ela assim tomou conhecimento do sonho em que teria
perecido juntamente com toda a população de sua cidade natal, assim como também
do relevo em mármore e da posição do pé que tanto atraíra o arqueólogo. Ela
então acedeu de bom grado a demonstrar seu modo de andar, e isso mostrou que a
única diferença da escultura de Gradiva era que em lugar de sandálias a jovem
trazia delicadas botas de cor de areia de fino couro - o que ela explicava como
uma adaptação ao presente. Evidentemente ela apreendia a essência do delírio do
arqueólogo, sem contestá-lo uma única vez. Só por um instante pareceu que a
emoção a fez esquecer seu papel, quando ele, pensando na escultura, declarou
tê-la reconhecido à primeira vista. Como a essa altura do colóquio ela ainda
não sabia nada do relevo, era natural que se equivocasse quanto às palavras de
Hanold; mas ela logo se refez, e somente para nós suas réplicas às vezes
parecem dotadas de duplo sentido, como se em vez de se cingirem ao delírio,
também aludissem a fatos reais e presentes - por exemplo, quando ela lamentou
não ter ele conseguido encontrar nas ruas alguém que reproduzisse o modo de
andar da Gradiva: ‘Que pena! Talvez essa longa viagem a Pompéia não tivesse sido
necessária!’ (89.) Ao saber que ele chamara de Gradiva à escultura, ela lhe
revelou seu verdadeiro nome: ‘Zoe’. ‘Esse nome assenta-te maravilhosamente, mas
soa como uma amarga ironia, já que Zoe significa vida’. ‘Temos de nos curvar ao
irremediável’, retrucou ela, ‘e há muito que me acostumei a estar morta.’
Prometendo estar de volta ao mesmo local ao meio-dia do dia seguinte, ela se
despediu, tendo antes pedido o ramo de asfódelo: ‘As mais afortunadas recebem
rosas na primavera, mas essas flores do esquecimento são mais apropriadas para
mim.’ (90.) Sem dúvida o tom melancólico condiz com alguém há muito tempo morto
e que volta à vida apenas por uns breves momentos.
Agora
começamos a compreender e a nutrir alguma esperança. Se a jovem, em cuja figura
Gradiva tornou à vida, aceitou tão plenamente o delírio de Hanold,
provavelmente fazia isso para libertá-lo do mesmo. Não existia outro caminho
para tal; contradizê-lo acabaria com todas as possibilidades. Mesmo o
tratamento sério de um caso real de doença desse tipo só poderia ter seqüência
situando-se inicialmente no mesmo plano da estrutura delirante e passando-se
então a investigá-la o mais completamente possível. Se Zoe for a pessoa
indicada para esse trabalho, sem dúvida logo aprenderemos como curar um delírio
como o do nosso herói, e também teremos a satisfação de saber como tais
delírios têm início. Seria uma coincidência estranha - mas ainda assim, nem
inédita nem isolada - se o tratamento do delírio coincidisse com a sua
investigação, e se precisamente na dissecação do mesmo viesse à tona a
explicação de sua origem. Se assim for, começaremos certamente a suspeitar que
o nosso caso de doença possa acabar numa ‘vulgar’ história de amor. Mas não se
pode desprezar o poder curativo do amor contra um delírio - e acaso a paixão do
nosso herói pela sua escultura da Gradiva não possui todas as características
de uma paixão amorosa, ainda que paixão amorosa por algo passado e sem vida?
Após o
desaparecimento de Gradiva, ouviu-se à distância como que o pio sardônico de um
pássaro sobrevoando as ruínas da cidade. Agora só, o jovem descobriu no chão o
objeto branco que tinha sido deixado por Gradiva; não se tratava de um papiro,
mas de um caderno de esboços, com vários desenhos a lápis de cenas de Pompéia.
Inclinamo-nos a considerar esse esquecimento do caderno como um penhor do
retorno da jovem, pois acreditamos que ninguém esquece alguma coisa sem uma
razão secreta ou um motivo oculto.
O resto
do dia proporcionou a Hanold uma série de confirmações e descobertas estranhas,
que ele entretanto não conseguiu sintetizar num todo. Na parede do pórtico onde
Gradiva desaparecera, descobriu uma estreita fenda, suficiente no entanto para
dar passagem a uma pessoa muito esbelta. Reconheceu que Zoe-Gradiva não teve
necessariamente de sumir nas entranhas da terra - idéia que agora lhe pareceu
tão insensata que se envergonhou de ter acreditado nela; a jovem pode ter
utilizado a fenda para retornar a seu túmulo. Ele julgou perceber uma tênue
sombra desaparecer em frente à Casa de Diomedes, no fim da Via dos Sepulcros.
No mesmo
atropelo de sentimentos da véspera, absorto nos mesmos problemas, ele percorreu
a esmo os arredores de Pompéia. Perguntou-se qual seria a natureza corpórea de
Zoe-Gradiva. Acaso se sentiria alguma coisa se se tocasse sua mão? Um estranho
ímpeto o induzia à determinação de tentar tal experiência, ao mesmo tempo que
relutava fortemente a admitir semelhante idéia.
Numa
colina ensolarada deparou um cavalheiro idoso que, pelos seus apetrechos, só
podia ser um botânico ou um zoólogo empenhado em alguma busca. O indivíduo
virou-se para ele e disse: ‘O senhor também está interessado no faraglionensis?
Eu não acreditava, mas é provável que, além das ilhas Faraglioni perto de
Capri, também ocorram no continente. O método inventado pelo nosso colega Eimer
é realmente muito bom. Já o utilizei várias vezes com excelentes resultados.
Por favor, fique bem quieto…’ (96.) Nesse ponto o zoólogo calou-se e colocou um
laço feito de um longo talo de erva em frente a uma fenda nas pedras, por onde
espreitava a pequena cabeça azul iridescente de um lagarto. Hanold deixou o
caçador de lagartos com um sentimento crítico de que era quase inacreditável
que pessoas empreendessem longas viagens para chegar a Pompéia impelidas por
propósitos tão estranhos e tolos. É desnecessário dizer que nessa crítica ele
não se incluía, assim como não incluía sua intenção de procurar as pegadas de
Gradiva nas cinzas de Pompéia. A fisionomia do indivíduo idoso que interpelara
como a um conhecido era familiar ao arqueólogo, que talvez já o tivesse visto
de relance em um dos dois hotéis.
Continuando seu passeio, chegou por uma
estrada lateral a uma casa que ele ainda não tinha descoberto, e que se mostrou
como um terceiro hotel, o ‘Albergo del Sole’. O proprietário, ocioso no
momento, aproveitou a oportunidade para exibir seu estabelecimento e sua
coleção de relíquias encontradas nas escavações. Afirmou ter estado presente à
descoberta junto ao foro de um jovel casal de namorados que, ao compreenderem
seu inevitável destino, aguardaram a morte estreitamente abraçados. Hanold já
ouvira antes essa história, considerando-a uma invenção fantasiosa de algum
narrador imaginativo; naquele momento, porém, as palavras do hoteleiro
encontraram nele um ouvinte crédulo, cuja receptividade aumentou ao lhe ser
mostrado um broche de metal coberto de pátina verde, o qual teria sido
encontrado nas cinzas junto aos restos da jovem. Sem qualquer dúvida crítica,
comprou o broche e, ao deixar o albergo, viu numa janela aberta um ramo
de asfódelo florido, tendo interpretado a visão das flores fúnebres como uma
confirmação da legitimidade de sua nova aquisição.
Mas, com
o broche, um novo delírio apoderou-se dele, ou melhor, o antigo recebeu um novo
acréscimo - o que não parece de bom augúrio para o tratamento que fora
iniciado. O par amoroso abraçado fora desenterrado perto do foro, e foi em suas
cercanias, no templo de Apolo, que em seu sonho o jovem vira Gradiva deitar-se
para dormir (ver em [1]). Não seria possível que mais tarde ela se tivesse
dirigido para o foro e encontrado alguém, tendo os dois então morrido juntos?
Dessa suspeita surgiu um sentimento atormentador comparável ao ciúme.
Refletindo sobre a improbabilidade da hipótese, tranqüilizou-se parcialmente e
recuperou o equilíbrio suficiente para cear no Hotal Diomède. Ali sua atenção
voltou-se para dois hóspedes recém-chegados, um rapaz e uma moça, julgou serem
irmãos devido a certa semelhança física, apesar dos cabelos de cores
diferentes. Foram essas as primeiras pessoas que encontrou em sua viagem a lhe
causarem uma impressão favorável. A moça trazia uma rosa vermelha de Sorrento
que lhe despertou uma recordação imprecisa. Afinal ele se recolheu e teve um
sonho singularmente absurdo, embora sem dúvida provocado pelas experiências do
dia. ‘Sentada em algum lugar no sol, Gradiva confeccionava um laço de um longo
talo de erva para capturar um lagarto, e disse: “Por favor, fique bem quieto.
Nossa colega tem razão, esse método é realmente ótimo e ela já o utilizou com
excelentes resultados.”’ Ainda adormecido, defendeu-se do sonho com o
pensamento crítico de que o mesmo era totalmente insensato, conseguindo
libertar-se dele com a ajuda de um pássaro invisível que, emitindo um pio
sarcástico, chamou e carregou o lagarto em seu bico.
Apesar
desse tumulto, ele acordou num estado de espírito mais lúcido e mais
equilibrado. Uma roseira com flores semelhantes às que vira na véspera no peito
da nova hóspede o fez lembrar que, durante o sono, ouvira alguém dizer que era
costume oferecerem-se rosas na primavera. Sem refletir, colheu algumas rosas e
o ato exerceu um efeito tranqüilizante em seu espírito. Sentindo-se liberto de
seus sentimentos anti-sociais, dirigiu-se pelo caminho regular para Pompéia,
com a mente entretida em problemas referentes a Gradiva e levando consigo as
rosas, o caderno de esboços e o broche de metal. O antigo delírio começou a
apresentar fissuras; ele conjeturou se acaso não poderia encontrar Gradiva em
Pompéia, não somente ao meio-dia, mas em outros momentos também. Os últimos
elementos acrescentados ao delírio, entretanto, adquiriram maior força, e os
ciúmes decorrentes dos mesmos atormentavam-no sob vários disfarces. Ele quase
desejaria que a aparição permanecesse visível somente a seus olhos, escapando à
percepção dos demais; assim, poderia considerá-la sua propriedade exclusiva.
Enquanto caminhava sem destino, aguardando o meio-dia, teve um encontro
inesperado. Na Casa del Fauno deparou num canto um casal que, julgando-se
ao abrigo de olhares, trocava abraçado um demorado beijo. Assombrado,
reconheceu no par o simpático casal da noite anterior, cujo procedimento,
entretanto, não coadunava com o de dois irmãos, pois para ele o abraço e o
beijo pareceram muito prolongados. Tratava-se, afinal, de mais um casal
amoroso, provavelmente em lua-de-mel - mais um Edwin e Angelina.
Surpreendentemente, dessa vez a visão dos mesmos só lhe causou satisfação.
Reverentemente, como se houvesse interrompido algum secreto ato de devoção,
retirou-se sem ser percebido. Recuperou uma atitude de respeito, há muito
perdida.
Ao
chegar à Casa de Meleagro, tornou a sentir um medo tão violento de encontrar
Gradiva em companhia de mais alguém, que quando ela apareceu as únicas palavras
que lhe ocorreram foram as seguintes: ‘Estás sozinha?’ Foi com dificuldade que
a jovem conseguiu fazê-lo perceber que ele colhera as rosas para ela. Ele lhe
confessou seu último delírio: ser ela a dona do broche verde, ser ela a jovem
encontrada nos braços do amante no foro. Com um leve toque irônico, ela
perguntou se acaso ele encontrara o objeto no sol (e ela empregou a palavra
[italiana] ‘sole‘), pois o sol fazia coisas semelhantes. O rapaz
confessou estar-se sentindo um pouco tonto, e ela sugeriu como cura que ele
compartilhasse da merenda dela. Ela lhe ofereceu a metade de um pãozinho que
trazia embrulhado num papel de seda e comeu a outra metade com óbvio apetite.
Seus lábios entreabertos deixavam entrever dentes perfeitos, que produziam um
leve rangido ao penetrar na côdea do pão. ‘Sinto como se já tivéssemos
compartilhado certa vez de uma refeição semelhante, há dois mil anos atrás’,
disse ela, ‘não te recordas?’ (118.) Nenhuma resposta ocorreu a ele, mas a
melhora de sua cabeça, decorrente do alimento, e as muitas indicações da
presença real da jovem começaram a produzir seu efeito. A razão fortalecida o
fez duvidar do delírio de que Gradiva não passasse de um fantasma do meio-dia,
embora ela mesma tivesse acabado de afirmar que tinha compartilhado com ele de
uma refeição há dois mil anos. Para solucionar tal conflito, ocorreu-lhe uma
experiência que imediatamente levou a cabo com habilidade e renovada coragem. A
jovem descansava sua mão esquerda, de delicados dedos, sobre os joelhos e uma
das moscas, cuja inutilidade e impertinência tanta indignação haviam provocado
nele, pousou sobre ela. Num movimento súbito, a mão de Hanold elevou-se no ar
para se abater com vigor sobre o inseto e sobre a mão de Gradiva.
Essa
experiência atrevida teve dois resultados: primeiro, a eufórica convicção de
ter, sem dúvida alguma, tocado uma mão humana, real, viva e quente, mas logo em
seguida uma reprimenda que o fez levantar-se num sobressalto da escadaria onde
estava sentado, pois, passado seu primeiro espanto, Gradiva exclamou: ‘Perdeste
mesmo o juízo, Norbert Hanold!’ Como todos sabem, o melhor método para acordar
um sonâmbulo, ou um indivíduo adormecido, é chamá-lo pelo seu próprio nome.
Contudo, infelizmente, não se terá oportunidade de observar os efeitos
produzidos em Norbert Hanold pelo fato de Gradiva ter proferido seu nome (nome
que ele não revelara a ninguém em Pompéia), pois nesse momento crítico surgiu
em cena o simpático casal amoroso da Casa del Fauno, e a jovem senhora
exclamou em tom de grata surpreza: ‘Zoe! Estás aqui também? E em lua-de-mel
como nós? Nunca me escreveste uma única palavra a respeito disso!’ Diante dessa
nova prova de que Gradiva era um ser vivo e real, Hanold fugiu.
Zoe-Gradiva
também não acolheu com grande prazer essa visita inesperada que a interrompeu
numa tarefa aparentemente importante. Todavia, ela logo se recuperou e
respondeu com naturalidade, explicando a situação à sua amiga - e também a nós
-, de forma a livrar-se do jovem casal. Congratulou-os, e negou estar em
lua-de-mel. ‘O rapaz que acabou de se afastar abriga, como vós, uma notável
aberração. Parece acreditar que existe uma mosca zunindo em sua cabeça. Bem,
talvez todos tenhamos uma espécie de inseto aqui. Como entendo um pouco de
entomologia, posso ser de alguma ajuda nesses casos. Meu pai e eu estamos
hospedados no Sole. Alguma coisa também aconteceu com a cabeça dele,
pois teve a brilhante idéia de me trazer, sob a condição de que me distraísse
sozinha em Pompéia e nada exigisse dele. Eu disse a mim mesma que seria capaz
de desencavar algo de interessante aqui, sem a ajuda de ninguém. Naturalmente
eu não contava com a descoberta que fiz… isto é, não contava encontrar-te,
Gisa.’ (124.) E acrescentou que precisava apressar-se, pois o pai a esperava
para almoçar no ‘Sol’. Assim afastou-se, após haver-se apresentado a nós como
filha do zoólogo caçador de lagartos e após ter admitido por toda sorte de
alusões ambíguas, sua intenção terapêutica e também outros propósitos secretos.
Entretanto,
não tomou a direção do Hotel do Sol, onde o pai a esperava. Pareceu-lhe também
ver uma sombra que, à procura de seu túmulo, desapareceu por trás de um dos
monumentos funerários perto da Casa de Diomedes. Isto a levou a encaminhar-se
para a Via dos Sepulcros, flexionando os pés quase perpendicularmente a cada
passo. Hanold fugira para o mesmo local, confuso e envergonhado, e ali
caminhava sem parar, de um lado para outro, no pórtico do jardim, empenhado em
solucionar a parte ainda obscura do seu problema através de um esforço
intelectual. Um fato tornara-se inequivocamente claro para ele: fora insensatez
ou loucura sua acreditar que se estava associando com uma jovem pompeana
tornada à vida numa forma mais ou menos física. Essa clara compreensão interna
(insight) de seu delírio era, sem dúvida, um passo essencial para a
volta à razão. Por outro lado, essa mulher viva, com quem outras pessoas se
comunicavam como se fosse fisicamente tão real quanto elas, era Gradiva, e
conhecia o nome dele. Sua razão recém-despertada, porém, não era
suficientemente forte para decifrar esse enigma, nem ele possuía a
tranqüilidade emocional necessária para enfrentar tão árdua tarefa, pois
preferia ter sido enterrado há dois mil anos, na Casa de Diomedes, de modo a
estar certo de não ter de se encontrar com Zoe-Gradiva novamente.
Todavia,
um violento desejo de tornar a vê-la lutava contra os últimos ímpetos de fuga.
Ao
dobrar um dos quatro ângulos da colunata, recuou sobressaltado. Num fragmento
da alvenaria de pedra estava sentada uma das jovens que morrera ali na Casa de
Diomedes. Esta, entretanto, é sua última tentativa, logo repudiada, de
refugiar-se no reino do delírio. Não, era Gradiva, que evidentemente viera para
lhe ministrar a última parte do seu tratamento. Ela interpretou corretamente o
primeiro movimento instintivo dele como uma tentativa de deixar o prédio, e
mostrou-lhe que no momento era impossível retirar-se, pois desabara uma chuva
torrencial. Implacável, ela iniciou o interrogatório perguntando-lhe o que
tentara fazer com a mosca pousada em sua mão. Ele não teve mais coragem de usar
um pronome particular, mas ousou algo mais importante: fazer-lhe a pergunta
decisiva.
‘Como
alguém já disse, minha cabeça estava muito confusa, e devo desculpar-me por ter
batido na mão… não entendo como pude agir tão desarrazoadamente… mas também não
entendo como a dona da mão, ao repreender-me por minha… insensatez, pôde
declinar meu nome.’ (134.)
‘Vejo
que há coisas que teu entendimento ainda não alcançou, Norbert Hanold. Não
posso dizer, porém, que isto me surpreendeu, pois há muito me acostumaste com
isto. Eu não precisava ter vindo a Pompéia para descobri-lo, e poderia tê-lo
confirmado bem mais perto, a uns mil quilômetros daqui.
‘Sim, a
uns mil quilômetros daqui’, ela insistiu ao ver que ele ainda não compreendera,
‘do outro lado da tua rua, na casa da esquina. Na minha janela há uma gaiola
com um canário.’
Essas
últimas palavras, à medida que as ouvia, despertaram nele uma longínqua
lembrança. Devia tratar-se do mesmo pássaro cujo canto pro- vocara nele a idéia
de viajar para a Itália.
‘Naquela casa mora meu pai, Richard Bertgang,
o catedrático de zoologia.’
Assim,
como Zoe era sua vizinha, conhecia-o de vista, além de saber seu nome.
Sentimo-nos decepcionados; a solução é desinteressante e parece não estar à
altura de nossas expectativas.
Norbert
Hanold mostrou que ainda não reconquistara uma total independência de
pensamento ao replicar: ‘Então vós… vós sois Fräulein Zoe Bertgang? Mas ela
tinha um aspecto tão diferente…
A
resposta de Fräulein Bertgang revela-nos que entre os dois já houve outra
relação que não a de simples vizinhos. Alegando antigos direitos, ela reclamou
um tratamento mais familiar, aquele ‘du‘ que ele usava tão naturalmente
ao interpelar o fantasma do meio-dia, mas que repudiara ao dirigir-se a uma
jovem de carne e osso: ‘Se julgais ser esse tratamento cerimonioso mais
apropriado, eu também o adotarei. Mas o outro sai mais espontaneamente dos meus
lábios. Não sei se meu aspecto era diferente em nossa infância, quando costumávamos
brincar juntos amigavelmente ou nos atracar de quando em quando para variar.
Mas se vos tivésseis dignado a olhar-me com atenção pelo menos uma vez nos
últimos anos, poderíeis ter percebido que há muito tempo tenho a aparência de
agora.’
Então já
houve entre os dois uma amizade infantil - talvez mesmo um amor infantil - que
justificava o du‘. Essa solução poderia parecer-nos tão trivial como a
que de início suspeitamos. Verificamos, entretanto, que desce a um nível muito
mais profundo, ao constatarmos que essa relação infantil explica de forma
inesperada alguns pormenores do seu contato de agora. Considere-se, por
exemplo, a pancada na mão de Zoe-Gradiva, explicada de forma muito convincente
por Norbert Hanold pela necessidade de uma resposta experimental para o
problema da realidade física da aparição. Acaso isso não parece ao mesmo tempo
demasiadamente com um renascimento do impulso para brincadeiras violentas,
constantes na infância dos dois, segundo as palavras de Zoe? Considere-se
também quando Gradiva indagou ao arqueólogo se este não se recordava de há dois
mil anos ter compartilhado de sua refeição. Essa pergunta incompreensível logo
parece adquirir sentido, se mais uma vez substituirmos o passado histórico por
um passado pessoal - a infância - do qual a jovem retinha lembranças vívidas,
mas que parece ter sido esquecido pelo rapaz. De repente, surge-nos a
descoberta de que as fantasias do jovem arqueólogo sobre Gradiva talvez sejam
um eco dessas lembranças infantis esquecidas. Assim sendo, não se trata de
produtos arbitrários de sua imaginação, tendo sido essas fantasias
determinadas, sem que ele soubesse disso, pelo acervo de impressões infantis
esquecidas, mas ainda nele atuantes. Seria possível para nós, ainda que só
possamos conjeturar sobre elas, mostrar em detalhe a origem dessas fantasias.
Ele imaginou, por exemplo, que Gradiva devia ser de origem grega, filha
de uma alta personagem, talvez de um sacerdote de Ceres. Isso se ajusta com
perfeição ao seu conhecimento do nome grego da jovem, Zoe, e ao fato de ela
pertencer à família de um professor de zoologia. Mas se as fantasias de Hanold
são lembranças modificadas, podemos esperar encontrar, na informação fornecida
por Zoe Bertgang, uma indicação da fonte dessas fantasias. Vamos ouvir o que ela
tem a dizer. Já nos falou sobre a íntima amizade infantil deles, e agora irá
revelar-nos o subseqüente desenvolvimento dessa relação de infância.
‘Na
verdade, naquela época, até a idade em que começam, não sei por que, a
chamar-nos de “Backfisch”, habituei-me a depender muitíssimo de vossa
companhia e acreditava que nunca encontraria no mundo um amigo melhor. Eu não
tinha mãe, nem irmã ou irmão, e para meu pai uma cobra-de-vidro conservada em
álcool era muito mais interessante do que eu. Todos (inclusive as meninas)
precisam de algo para ocupar seus pensamentos e o que quer que esteja
ligado a eles. E isto é o que fostes para mim então. Mas quando vos voltastes
inteiramente para a arqueologia, descobri - deveis perdoar-me, mas na verdade
esse tratamento formal parece-me demasiadamente ridículo e, além disso,
não se ajusta ao que quero dizer -, como estava dizendo, descobri que te tinhas
tornado uma pessoa insuportável, que, ao menos no que me dizia respeito, não
possuía olhos para ver nem boca para falar, e nem memória para lembrar-se de
nossa amizade infantil. Sem dúvida foi por isso que me achaste agora com
aspecto diferente pois, quando às vezes te encontrava em reuniões sociais - o
que aconteceu ainda uma vez no último inverno -, tu não me vias e muito menos
me dirigias a palavra. Não que houvesse nisso algo de pessoal, já que tratavas
a todas igualmente. Para ti, eu era invisível, e tu, com teu topete de cabelos
louros que tantas vezes arrepiei em nossas brincadeiras, te mostravas tão
maçante, tão seco e mudo como uma cacatua empalhada e ao mesmo tempo tão
pomposo como um arqueoptérix - sim, é esse mesmo o nome daquele
monstruoso pássaro antediluviano há pouco descoberto. Só de uma coisa nunca
suspeitei: que entretinhas uma fantasia igualmente afetada, considerando-me
também aqui, em Pompéia, como algo que fora escavado e que retornara à vida.
Quando deparei contigo inesperadamente em minha frente, de início foi-me muito
difícil compreender a incrível trama tecida por tua imaginação em teu cérebro.
Depois ela me divertiu e até me deu prazer, apesar da loucura, pois, como já te
disse, eu não suspeitava isso de ti.’
Assim
ela nos mostrou claramente o que os anos haviam feito de sua amizade infantil.
Nelas cresceu até transformar-se em amor, pois uma jovem precisa de um objeto a
quem dedicar o seu coração. Fräulein Zoe, a corporificação da inteligência e da
clareza, torna sua mente transparente para nós. Se é regra geral que toda jovem
normalmente constituída dirija primeiramente sua afeição ao pai, Zoe, cuja família
se resumia neste, estava especialmente destinada a fazê-lo. Mas seu pai,
totalmente absorvido em seus interesses científicos, não lhe dava a mínima
atenção. Assim, ela foi obrigada a se dirigir para outra pessoa, ligando-se
particularmente ao seu jovem companheiro de brinquedos. Quando ele também
deixou de fazer caso dela, seu amor não sofreu nenhuma diminuição; ao
contrário, intensificou-se, pois ele se tornara semelhante ao pai,
absorvendo-se como ele na ciência e afastando-se da vida e de Zoe. Dessa forma
foi possível para ela manter-se fiel mesmo na infidelidade - reencontrar o pai
no amado, abrangendo os dois na mesma emoção ou, como podemos dizer,
identificando-os em seu sentimento. Mas que justificativa temos para essa
pequena análise psicológica que pode parecer arbitrária? O próprio autor a
oferece para nós num único, mas altamente significativo, pormenor. Quando Zoe
descreveu a transformação, que tanto a perturbou, de seu antigo companheiro de
folguedos, injuriou-o comparando-o a um arqueptérix, o monstro alado
antediluviano que pertence à arqueologia da zoologia. Desse modo ela encontrou
uma única expressão concreta da identidade das duas figuras. Sua queixa
aplica-se, com a mesma palavra, tanto ao homem que ela amava quanto a seu pai.
O arqueoptérix é, podemos dizer, uma idéia conciliatória ou intermediária, na
qual seu pensamento sobre a insensatez do homem amado coincidiu com o
pensamento análogo sobre seu pai.
Já com o
rapaz, as coisas tomaram um rumo diferente. Absorto na arqueologia, só se
interessava por mulheres de bronze e de mármore. Nele a amizade de infância, em
vez de intensificar-se transformando-se em paixão, dissolveu-se, caindo em tão
profundo esquecimento que, ao encontrar socialmente a antiga companheira de
brinquedos, não a reconheceu. É verdade que, se examinarmos os fatos com mais
cuidado, iremos perguntar-nos se ‘esquecimento’ será a descrição psicológica
correta do destino dessas lembranças em nosso jovem arqueólogo. Existe um
gênero de esquecimento que se caracteriza pela dificuldade que a convocação
externa mais forte tem em despertar a memória, como se alguma resistência
interna lutasse contra seu ressurgimento. Em psicopatologia essa espécie de
esquecimento recebeu o nome de ‘repressão’, da qual o caso exposto pelo autor
parece ser um exemplo. Ora, não sabemos se o esquecimento de uma impressão está
sempre vinculado à dissolução de seu traço de memória na mente, mas podemos
certamente afirmar que a ‘repressão’ não coincide com a dissolução ou a
extinção da memória. É verdade que o reprimido, via de regra, não pode emergir
da memória sem maiores dificuldades, mas conserva uma capacidade de ação
efetiva e, sob a influência de algum evento externo, pode vir a ter
conseqüências psíquicas que podem ser consideradas como produtos da modificação
da lembrança esquecida e como derivados dela, e que, se não forem vistas por
esse prisma, permanecerão incompreensíveis. Parece-nos já termos reconhecido
nas fantasias de Norbert Hanold sobre Gradiva derivados de lembranças
reprimidas de sua amizade infantil com Zoe Bertgang. Tal retorno do que foi
reprimido deve ser esperado com particular regularidadequando os sentimentos
eróticos de uma pessoa estão ligados às impressões reprimidas - quando sua vida
erótica sofreu as investidas da repressão. Esses casos comprovam o velho ditado
latino: ‘Naturam expelles furca, tamem usque recurret,’ embora este
originalmente se referisse somente à expulsão por influências externas, e não
por conflitos internos. No entanto, esse provérbio não nos explica tudo; só nos
informa sobre o fato do retorno da parte da natureza que foi reprimida,
mas não descreve a maneira altamente singular desse retorno, que se
realiza através do que classificaríamos de malévola traição. É precisamente o
que foi escolhido como instrumento da repressão - como o ‘furca‘ do
provérbio latino - que vai constituir o veículo do retorno: oculto na força
repressora, o que é reprimido revelar-se-á por fim vencedor. Esse fato, pouco
tido em conta e que merece um exame atento, é ilustrado - de forma mais
impressionante do que o seria por muitos outros exemplos - por uma conhecida
água-forte de Félicien Rops; e é ilustrado com o caso típico de repressão na
vida dos santos e penitentes. Um monge ascético, fugindo certamente das
tentações do mundo, volta-se para a imagem do Salvador na cruz, mas esta vai
submergindo nas sombras, e em seu lugar ergue-se, radiante, a imagem de uma
voluptosa mulher nua, também crucificada. Outros artistas, com menor
compreensão interna (insight) psicológica, mostram, em alegorias da
tentação semelhantes a essa, o Pecado erguendo-se, insolente e triunfante, em
diversas atitudes junto à cruz do Salvador. Só Rops, porém, fê-lo ocupar o
lugar do Salvador na Cruz. Ele parece ter sabido que, quando o que foi
reprimido retorna, emerge da própria força repressora.
Vale a
pena fazer uma pausa para observar em casos patológicos como a mente humana se
torna sensível, em estados de repressão, a qualquer aproximação do que foi
reprimido, e como até mesmo leves semelhanças bastam para que por trás da força
repressora, e por meio da mesma, o reprimido venha a emergir. Tive entre meus
pacientes um jovem - pouco mais que um menino - que, após involuntariamente
tomar conhecimento dos processos sexuais, passara a fugir de todos os desejos
eróticos que nele surgiam. Para esse propósito utilizava vários métodos de
repressão, intensificando sua dedicação aos estudos, tornando-se exageradamente
dependente da mãe e adotando em geral um comportamento infantil. Não vou expor
aqui a forma como sua sexualidade reprimida voltou à tona, justamente em sua
relação com a mãe, mas descreverei a circunstância invulgar e original como uma
de suas proteções ruiu numa ocasião que jamais julgaríamos suficiente para tal.
A matemática goza da reputação de desviar as atenções da sexualidade.
Jean-Jacques Rousseau recebeu de uma dama a quem havia desagradado o seguinte
conselho: ‘Lascia le donne e studia la matematica!’ Também o nosso fugitivo
atirou-se com avidez ao estudo da matemática e da geometria que lhe cabiam no
currículo escolar, até que um dia suas faculdades de conhecimento
paralisaram-se diante de alguns problemas aparentemente inocentes. Foi possível
reconstituir o enunciado de dois desses problemas: ‘Dois corpos chocam-se, um
com a velocidade de…etc.’ e ‘num cilindro de diâmetro m, inscrever um
cone…etc.’ Outros certamente não teriam visto nesses problemas alusões
evidentes a eventos sexuais, mas o jovem sentiu que a matemática também o
traíra, e afastou-se dela também.
Se
Norbert Hanold fosse alguém na vida real que dessa forma e com o auxílio da
arqueologia houvesse fugido do amor e de uma amizade infantil, seria lógico e
dentro das normas que o que nele revivesse as lembranças esquecidas da menina
amada em sua infância fosse justamente uma escultura antiga. Seria para ele um
merecido destino apaixonar-se pela imagem em mármore de Gradiva, por trás da
qual, devido a uma semelhança inexplicada, a esquecida Zoe de carne e osso
fizesse sua influência notada.
A
própria Fräulein Zoe parece ter compartilhado do nosso enfoque do delírio do
jovem arqueólogo, pois a satisfação que exprimiu na parte final de sua ‘franca,
detalhada e instrutiva reprimenda’ dificilmente poderia ter base em outra coisa
que não no conhecimento de que ela própria, desde o início, estivera
relacionada com o interesse dele por Gradiva. Fora precisamente isto que
ela não esperara dele, mas que lograra perceber através dos disfarces
delirantes. O tratamento psíquico que ela administrara, entretanto, já exercera
nele seus efeitos benéficos, e Hanold sentia-se libertado, pois seu delírio foi
substituído por aquilo de que não constituíra senão uma cópia inadequada e
distorcida. Também não hesitou mais em lembrar-se da jovem e nela reconhecer a
alegre, bondosa e inteligente companheira de folguedos, que em nada mudara nos
pontos essenciais. Mas fez uma descoberta muito estranha…
‘Tu te
referes’, disse a jovem, ‘ao fato de que alguém tenha de morrer para chegar a
estar vivo; mas sem dúvida isso tem de ser assim mesmo para os arqueólogos.’
(141.) Evidentemente ela ainda não o perdoara pelo caminho tortuoso percorrido
por ele, através da arqueologia, para de sua amizade infantil chegar à relação
que há pouco haviam iniciado.
‘Não,
refiro-me ao teu nome… “Bertgang” tem o mesmo significado que “Gradiva”, e quer
dizer “alguém que brilha ao avançar”.’
Não
estávamos preparados para isso. Nosso herói começou a despojar-se de sua
humildade e a desempenhar um papel ativo. É evidente que estava completamente
curado de seu delírio e já o superara, tendo provado isso ao romper os últimos
fios da trama do delírio. É também exatamente dessa forma que se comportam os
pacientes quando aliviados da compulsão dos seus pensamentos delirantes pela
revelação do material reprimido oculto por estes. Ao compreendê-los, eles
próprios revelam nas idéias que subitamente lhe ocorrem as soluções dos enigmas
finais e mais importantes de sua estranha condição. Já adivinháramos que a
origem grega da imaginária Gradiva era um resultado obscuro do nome grego
‘Zoe’, mas não ousáramos examinar o nome ‘Gradiva’, deixando-o passar como uma
criação arbitrária da imaginação de Norbert Hanold. Mas eis que esse nome agora
se revela como sendo derivado - sendo na verdade uma tradução - do sobrenome
reprimido da menina que ele amara na infância e aparentemente esquecera.
A
investigação da origem do delírio e sua solução estão agora completas. No que
em seguida narra, o autor sem dúvida tem em mira um final harmonioso para sua
história. Tranqüilizamo-nos quanto ao futuro ao ler que o rapaz, que até aqui
fora obrigado a desempenhar o lamentável papel de um indivíduo necessitado de
tratamento urgente, deu mais alguns passos no caminho do restabelecimento e
conseguiu despertar em Zoe alguns dos sentimentos que anteriormente o fizeram
sofrer. Foi assim que a fez sentir ciúmes, mencionando a simpática jovem
senhora que há pouco interrompera seu tête-à-tête na Casa de Meleagro, e
confessando que a mesma fora a primeira mulher a despertar-lhe sentimentos
favoráveis. A essas palavras, Zoe mostrou-se disposta a separar-se friamente
dele, observando que já havia sido recuperada a razão - inclusive por ela
própria; ele poderia procurar Gisa Hartleben (ou como quer que ela agora se
chamasse) e oferecer seus préstimos científicos para a visita dela em Pompéia;
quanto a ela, Zoe, voltaria ao Albergo del Sole, onde seu pai a esperava para
almoçar; talvez viessem a se encontrar novamente em alguma festa na Alemanha ou
na lua. Contudo, pretextando mais uma vez afastar uma mosca, o arqueólogo
beijou-a na face e em seguida nos lábios, passando à agressividade que é o
inevitável dever masculino na prática do amor. Uma única vez uma nova sombra
pareceu ameaçar a felicidade do par, quando Zoe declarou precisar então
realmente reunir-se ao pai, senão ele morreria de fome no Sole. ‘Teu pai?… O
que acontecerá?…’ (147.) Mas a inteligente jovem desfez rapidamente as
preocupações de Hanold. ‘Provavelmente nada. Não sou um exemplar indispensável
de sua coleção zoológica. Se o fosse, talvez não tivesse tão intensamente entregue
a ti meu coração.’ No entanto, se acaso o pai inesperadamente encarasse o
assunto de outra forma, haveria um expediente seguro. Hanold só precisaria
tomar um barco para Capri, ali capturar um Lacerta faraglionensis (ele
poderia praticar a técnica no dedo mindinho dela), soltar o animalzinho em
Pompéia e tornar a caçá-lo sob as vistas do zoólogo, deixando-o escolher entre
um faraglionensis do continente e sua filha. É fácil ver que nesse ardil
se mesclavam a zombaria com a amargura, e que por meio dele a jovem como que
advertia o noivo a não imitar muito fielmente o modelo pelo qual ela o
escolhera. Nesse ponto Norbert Hanold torna a nos tranqüilizar, demonstrando
por vários indícios, aparentemente triviais, a grande transformação nele
ocorrida. Propôs à sua Zoe uma lua-de-mel na Itália, e em Pompéia, como se
todos aqueles pares de ternos Edwins e Angelinas nunca houvessem provocado a
sua indignação. Sua memória não guardara quaisquer sentimentos contra aqueles
felizes casais que tanto e tão desnecessariamente se haviam afastado de seus
lares alemães. O autor tem razão em apresentar tal perda de memória como o
melhor e mais fidedigno sinal de uma mudança de atitude. À sugestão do ‘seu
companheiro de infância, também de certa maneira desenterrado das ruínas’
(150), Zoe respondeu que ainda não se sentia suficientemente viva para tomar
tal decisão geográfica.
O
delírio foi, portanto, sobrepujado por uma bela realidade, mas, antes que os
dois amorosos deixassem Pompéia, iriam prestar-lhe uma última homenagem. Ao
alcançarem a Porta de Herculano, onde no começo da Via Consolare uma fieira de
antigas pedras com ressaltos cruza a estrada, Norbert Hanold parou e pediu à
jovem que caminhasse à sua frente. Percebendo sua intenção, ‘Zoe Bertgang,
Gradiva rediviva, ergueu um pouco a saia com sua mão esquerda e avançou,
enquanto ele a observava com um olhar sonhador. Com passos ágeis e silenciosos
ela atravessou a rua sobre as pedras, iluminada pelo sol de Pompéia.’ Como o
triunfo do amor, o que era belo e precioso no delírio encontrou reconhecimento
como tal.
Em sua
última metáfora - ‘o amigo de infância desenterrado das ruínas’ - o autor nos
forneceu a chave do simbolismo utilizado pelo delírio de nosso herói para
disfarçar as lembranças deprimidas. Na verdade não existe melhor analogia para
a repressão - que preserva e torna algo inacessível na mente - do que um
sepultamento como o que vitimou Pompéia, e do qual a cidade só pôde ressurgir
pelo trabalho das pás. Por essa razão o jovem arqueólogo, em sua fantasia, foi
obrigado a deslocar para Pompéia o modelo do relevo que lhe recordava o objeto
de seu amor ao estender-se sobre essa valiosa similaridade que sua delicada
sensibilidade percebera entre um determinado processo mental do indivíduo e um
evento histórico isolado da história da humanidade.
Mas
afinal nosso propósito primitivo era somente investigar, com a ajuda de certos
métodos analíticos, dois ou três sonhos que aparecem aqui e ali no texto de Gradiva.
Como foi, então, que passamos a dissecar toda a história e a examinar os
processos mentais dos dois personagens principais? Na verdade todo esse
trabalho não foi inútil; tratava-se de trabalho preliminar essencial. Assim
também, ao tentarmos compreender os sonhos reais de uma pessoa real, temos de
examinar atentamente seu caráter e sua história, investigando não só as
experiências que antecederam de pouco seu sonho, mas também as de seu passado
remoto. Acredito até que ainda não estamos prontos para nos dedicarmos à nossa
tarefa original, sendo necessário que examinemos mais demoradamente a história
a fim de efetuar outros trabalhos preliminares.
Meus
leitores sem dúvida terão ficado surpresos ao notar que até aqui tratei todas
as atividades e manifestações mentais de Norbert Hanold e Zoe Bertgang como se
os dois fossem pessoas reais e não criações de um autor, e como se a mente do
autor não fosse um instrumento capaz de deformar ou obscurecer, mas um
instrumento totalmente límpido. Meu procedimento deve parecer-lhes ainda mais
incompreensível se considerarem que o autor classificou sua história de
‘fantasia’, negando-lhe qualquer semelhança com a realidade. Entretanto,
descobrimos que todas as suas descrições copiam tão fielmente a realidade, que
não nos oporíamos à apresentação de Gradiva como um estudo psiquiátrico.
Só em duas ocasiões o autor fez uso do seu indiscutível direito de formular
proposições que não parecem apoiar-se nas leis da realidade. A primeira é
quando faz o jovem arqueólogo deparar um autêntico relevo da Antiguidade
clássica de tal forma semelhante a uma pessoa viva de época muito posterior,
não só numa singular postura do pé ao andar, mas também em todos os traços
fisionômicos e formas corporais, que o jovem é capaz de tomar a aparência
física dessa pessoa como sendo a própria escultura tornada à vida. E a segunda
ocasião é quando faz com que o rapaz encontre a jovem viva precisamente em
Pompéia, onde sua imaginação colocara a mulher morta, ao passo que sua viagem
para a Itália na verdade o afastara da primeira, a qual ele acabara de ver na
rua da cidade onde morava. Entretanto, essa segunda disposição do autor não se
afasta demasiadamente da possibilidade real, apenas faz intervir o acaso, que
inegavelmente desempenha seu papel em muitas histórias humanas; além disso,
recorre a ele acertadamente, pois aqui o acaso demonstra a fatídica e
comprovada verdade de que a fuga é o instrumento mais seguro para se cair
prisioneiro daquilo que se deseja evitar. A primeira proposição, o ponto de
partida em que se apóia toda a história, ou seja, a grande semelhança entre a
escultura e a jovem viva ( que uma escolha mais moderada poderia ter limitado à
singular flexão do pé ao andar), parece-nos mais fantasiosa, sendo uma decisão
totalmente arbitrária do autor. Aqui sentimo-nos tentados a permitir que nossa
própria fantasia estabeleça um elo com a realidade. O nome ‘Bertgang’ talvez
seja um indício de que em tempos idos as mulheres dessa família distinguiam-se
pelo singular e gracioso andar, e podemos supor que os Bertgangs germânicos
descendessem de uma família romana a que pertencera a mulher que inspirara um
escultor a perpetuar na escultura a peculiaridade do caminhar dela. Todavia, já
que as variações da forma humana não são independentes umas das outras, e já
que mesmo nos tempos modernos reaparecem com freqüência tipos antigos (como
podemos comprovar pelo exame de obras de arte), não seria totalmente impossível
que uma Betgang da atualidade pudesse reproduzir a forma de uma antiga
ascendente em todas as outras características de sua estrutura corpórea. Mas em
vez de tecer tais conjecturas, seria sem dúvida mais sensato perguntar ao
próprio autor de que fontes se originou essa parte de sua criação; talvez
tivéssemos então uma boa oportunidade de mostrar mais uma vez como muitas
coisas aparentemente arbitrárias na verdade obedecem a leis. No entanto, como
não temos acesso a essas fontes ocultas na mente do autor, concedamos-lhe seu
irrestrito direito de basear uma narrativa totalmente verossímil numa premissa
improvável - um direito de que Shakespeare, por exemplo, também fez uso no Rei
Lear.
Com
exceção disso, reafirmamos que o autor apresentou-nos um estudo psiquiátrico
perfeitamente correto, pelo qual podemos medir nossa compreensão dos trabalhos
da mente - um caso clínico e a história de uma cura que parecem concebidos para
ressaltar determinadas teorias fundamentais da psicologia médica. Já é bastante
singular que o autor possa ter realizado tal trabalho, mas o que diríamos se,
ao ser interrogado, ele negasse ter tido tal intenção? É muito fácil
estabelecer analogias e atribuir sentidos às coisas, mas acaso não teremos
emprestado a essa encantadora e poética história um significado secreto
bastante distanciado das intenções do autor? É possível. Voltaremos à questão
mais tarde. Por hora, entretanto, limitar-nos-emos a ressalvar que tentamos
evitar qualquer interpretação tendenciosa, expondo quase toda a história nas
próprias palavras do autor. Quem cotejar nossa síntese com o verdadeiro texto
de Gradiva terá de corroborar nossa asserção.
Talvez,
na opinião da maioria das pessoas, estejamos prestando um desserviço ao autor,
ao declarar que sua obra é um estudo psiquiátrico. Dizem que um autor deveria
evitar qualquer contato com a psiquiatria e deixar aos médicos a descrição de
estados mentais patológicos. A verdade, porém, é que o escritor verdadeiramente
criativo jamais obedece a essa injunção. A descrição da mente humana é, na
realidade, seu campo mais legítimo; desde tempos imemoriais ele tem sido um
precursor da ciência e, portanto, também da psicologia científica. Mas o limite
entre o que se descreve como estado mental normal e como patológico é tão
convencional e tão variável, que é provável que cada um de nós o transponha
muitas vezes no decurso de um dia. Por outro lado, a psiquiatria estaria
cometendo um erro se tentasse restringir-se permanentemente ao estudo das
graves e sombrias doenças decorrentes de severos danos sofridos pelo delicado
aparelho da mente. Desvios da saúde mais leves e suscetíveis de correção, que
hoje podemos atribuir apenas a perturbações na interação das forças mentais,
atraem igualmente seu interesse. Na verdade, só através deles é que pode chegar
à compreensão dos estados normais, assim como dos fenômenos das doenças graves.
Conseqüentemente, o escritor criativo não pode esquivar-se do psiquiatra, nem o
psiquiatra esquivar-se do escritor criativo, e o tratamento poético de um tema
psiquiátrico pode revelar-se correto, sem qualquer sacrifício de sua beleza.
É o que
ocorre com essa imaginativa exposição da história de um caso e do seu
tratamento: está realmente isenta de erros. Agora que terminamos de contar a
história e satisfizemos nossa curiosidade, podemos examiná-la com mais atenção;
vamos reproduzi-la fazendo uso da terminologia técnica da nossa ciência,
trabalho em que não nos sentiremos desconcertados diante da necessidade de
repetir o que foi dito.
O autor
refere-se com freqüência ao estado de Norbert Hanold como ‘delírio’, e não
temos motivos para refutar essa designação. Podemos apontar duas características
principais de um ‘delírio’ que, se não o descrevem de forma exaustiva, o
distinguem de outras perturbações. Em primeiro lugar, o delírio pertence ao
grupo de estados patológicos que não produzem efeito direto sobre o corpo, mas
que se manifestam apenas por indicações mentais. Em segundo lugar, é
caracterizado pelo fato de que nele as ‘fantasias’ ganharam a primazia,
transformando-se em crença e passando a influenciar as ações. Se lembrarmos a
viagem de Hanold a Pompéia com o fito de procurar as pegadas de Gradiva nas
cinzas, teremos um ótimo exemplo de uma ação sob a influência de um delírio. Um
psiquiatra talvez incluísse o delírio de Norbert Hanold no vasto grupo da
‘paranóia’, classificando-o provavelmente como ‘erotomania fetichista’, já que
seu traço mais saliente era uma paixão por uma escultura, e aos olhos desse
psiquiatra, que tudo tende a ver pelo prisma mais grosseiro, o interesse do
jovem arqueólogo por pés e posições de pés inevitavelmente passaria por
‘fetichismo’. Contudo, todos os sistemas de nomenclatura ou classificação dos
diversos tipos de delírio de acordo com seu tema principal são de certa forma
precários e estéreis.
Além
disso, como nosso herói era uma pessoa capaz de desenvolver um delírio baseado
em uma preferência tão singular, um psiquiatra rigoroso o qualificaria, sem
hesitar, de dégénéré, e procuraria a hereditariedade que o conduzira
inevitavelmente a esse destino. Mas nesse ponto, e com razão, o autor não segue
o psiquiatra, pois deseja aproximar-nos do seu herói para facilitar a
‘empatia’; o diagnóstico de dégénéré, certo ou errado, colocaria uma
barreira entre o arqueólogo e nós, leitores, que somos pessoas normais, o tipo
padrão da humanidade. As precondições hereditárias e constitucionais do estado
também não ocupam muito o autor, que por outro lado se aprofunda na composição
mental pessoal que foi capaz de dar origem a tal delírio.
Numa
questão muito importante, Norbert Hanold comportava-se de forma bastante
diversa de um ser humano comum: não se interessava por mulheres vivas. A
ciência de que era servidor apoderara-se desse interesse e deslocara-o para as
mulheres de mármore ou de bronze. Esse fato não deve ser encarado como um
pormenor trivial; ao contrário, era a precondição básica dos eventos a serem
descritos, pois certo dia uma determinada escultura desse tipo atraiu todo o
interesse que normalmente só é dedicado a uma mulher viva, estabelecendo-se
assim o delírio. A seguir vimos a maneira como esse delírio foi curado através
de uma feliz cadeia de eventos e como o interesse do nosso herói foi deslocado
das mulheres de mármore para uma mulher viva. O autor não nos deixa seguir as
influências que levaram nosso herói a afastar-se das mulheres; apenas nos
informa que a atitude dele não era explicada por sua disposição inata, a qual,
muito ao contrário, incluía uma boa parcela de necessidades imaginativas (e,
por que não dizer, eróticas). Também vimos, mais tarde, que na infância ele não
evitou as outras crianças, mantendo amizade com uma menina, sua inseparável
companheira, repartindo com ela suas merendas e deixando-a arrepiar seus
cabelos no decurso de brincadeiras violentas. É em ligações como essas, onde o
afeto se combina à agressividade, que o erotismo imaturo da infância se
expressa; só mais tarde emergem suas conseqüências, mas então de forma
irresistível; na infância, geralmente só os médicos e os escritores criativos o
reconhecem como erotismo. Nosso escritor mostra-nos claramente que também é da
mesma opinião, fazendo com que seu herói desenvolva subitamente um vivíssimo
interesse pelos pés e pelo andar das mulheres. Esse interesse lhe traz
forçosamente uma má reputação de ser um fetichista de pés. Contudo, nós
não podemos evitar de ligar esse interesse à lembrança de sua companheira de
infância, pois sem dúvida já então a moça andava daquela forma singular e
graciosa, apoiando-se nos dedos e flexionando a planta dos pés quase
perpendicularmente ao solo. Foi para retratar um andar semelhante que a
escultura antiga adquiriu uma tão grande importância para Norbert Hanold.
Queremos acrescentar, aliás, que na derivação desse singular fenômeno de
fetichismo o autor está em completo acordo com a ciência. Na verdade, desde
Binet [1888] temos tentado atribuir o fetichismo às impressões eróticas da
infância.
O estado
de se manter permanentemente afastado das mulheres produz uma susceptibilidade
pessoal ou, como nos acostumamos a dizer, uma ‘disposição’ à formação de um
delírio. Esse distúrbio mental começa a se desenvolver no momento em que uma
impressão casual desperta experiências infantis esquecidas e que têm, ainda que
levemente, traços de conotação erótica. Entretanto, ‘desperta’ não é exatamente
a descrição adequada, se levarmos em conta o que se segue. Devemos repetir o
acurado relato do autor em termos técnicos psicológicos. Ao encontrar o relevo,
não se recordou Norbert Hanold de já ter visto a amiga de infância caminhar de
forma análoga; não teve lembrança alguma do fato, mas todos os efeitos
produzidos pela escultura tiveram origem nessa conexão com uma impressão de sua
infância. Ao ser despertada, essa impressão infantil tornou-se ativa, começando
a produzir efeitos, mas não chegou à consciência, isto é, permaneceu
‘inconsciente’, para usar um termo que hoje já é imprescindível na
psicopatologia. Desejaríamos que esse inconsciente não fosse objeto de nenhuma
discussão de filósofos ou naturalistas, que com freqüência só possuem
importância etimológica. Por hora, não dispomos de uma denominação melhor para
os processos psíquicos que, embora ativos, não atingem a consciência da pessoa,
e isso é tudo o que queremos dizer com nossa ‘inconsciência’. Quando alguns
pensadores tentam refutar a existência de um inconsciente desse tipo, taxando-o
de insensatez, só podemos supor que nunca se ocuparam de fenômenos mentais desse
gênero; que estão sob a influência da experiência geral de que tudo o que é
mental e se torna intenso e ativo, torna-se simultaneamente consciente; que
eles ainda têm de aprender (o que nosso autor sabe muito bem) que existem sem
dúvida processos mentais que, apesar de serem intensos e de produzirem efeitos,
ainda assim permanecem afastados da consciência.
Já
dissemos há pouco (ver a partir de [1]) que em Norbert Hanold as lembranças de
suas relações infantis com Zoe estavam em estados de ‘repressão’; e aqui as
chamamos de lembranças ‘inconscientes’. Agora precisamos dar mais atenção à
relação entre esses dois termos técnicos, que parecem coincidir em seu
significado. Na verdade não é difícil esclarecer a questão. O conceito de
‘inconsciente’ é o mais amplo, sendo o de ‘reprimido’ o mais restrito. Tudo que
é reprimido é inconsciente, mas não podemos afirmar que tudo que é inconsciente
é reprimido. Se ao ver o relevo, Hanold se houvesse recordado do modo de andar
de Zoe, o que anteriormente fora uma lembrança inconsciente se teria tornado
simultaneamente ativo e consciente, e isso teria demonstrado que essa lembrança
não fora anteriormente reprimida. ‘Inconsciente’ é um termo puramente
descritivo, indefinido em alguns aspectos e, poderíamos dizer, estático. ‘Reprimido’
é uma expressão dinâmica, que leva em conta a interação de forças mentais;
implica a presença de uma força que procura provocar toda uma série de efeitos
psíquicos, inclusive o de tornar-se consciente, e a essa força opõe-se uma
outra força contrária, capaz de obstruir alguns desses efeitos psíquicos,
inclusive também aquele de tornar-se consciente. A característica de algo
reprimido é justamente a de não conseguir chegar à consciência, apesar de sua
intensidade. Portanto, no caso de Hanold, a partir do momento em que surge o
relevo, passamos a nos ocupar com alguma coisa inconsciente que está reprimida
ou, mais simplesmente, com alguma coisa reprimida.
As
lembranças de Norbert Hanold de sua ligação infantil com a menina de andar
gracioso estavam reprimidas, mas esta ainda não é a visão correta da situação
psicológica. Enquanto lidarmos apenas com lembranças e idéias, permaneceremos
na superfície. Só os sentimentos têm valor na vida mental. Nenhuma força mental
é significativa se não possuir a característica de despertar sentimentos. As
idéias só são reprimidas porque estão associadas à liberação de sentimentos que
devem ser evitados. Seria mais correto dizer que a repressão age sobre
sentimentos, mas só nos apercebemos destes através de sua associação com as
idéias. Assim, os sentimentos eróticos de Norbert Hanold é que haviam sido
reprimidos, e como o seu erotismo não tinha e não tivera na infância outro
objeto a não ser Zoe Bertgang, suas lembranças dela foram esquecidas. O relevo
antigo despertou seu erotismo adormecido, tornando ativas suas lembranças da
infância. Devido a uma resistência presente nele contra esse erotismo, só
enquanto inconscientes essas lembranças podiam tornar-se operativas. O que nele
então se desenvolveu foi uma luta entre o poder do erotismo e o poder das
forças que o reprimiam, luta esta que se manifestava como delírio.
Nosso
autor omitiu as razões que levaram à repressão da vida erótica de seu herói,
pois a dedicação de Hanold à ciência não passava certamente de um instrumento
utilizado pela repressão. Nesse ponto um médico teria de investigar mais
profundamente, mas talvez sem nenhuma garantia de sucesso. Contudo, como já
assinalamos com admiração, com muito acerto o autor mostrou-nos como o erotismo
reprimido emerge precisamente do campo dos instrumentos que serviram à sua
repressão. Apontou-se com justiça ter sido uma antiguidade, a escultura
feminina em mármore, que arrancou nosso arqueólogo do seu afastamento do amor,
advertindo-o da necessidade de pagar à vida a dívida que desde o nascimento
pesa sobre nós.
As
primeiras manifestações do processo desencadeado em Hanold pelo relevo foram as
fantasias que giravam em torno da figura representada nesse relevo. A figura
parecia-lhe ‘atual’, no melhor sentido da palavra, e ‘viva’, como se o artista
houvesse perpetuado no mármore uma visão colhida nas ruas. O arqueólogo batizou
a figura de ‘Gradiva’, inspirando-se no epíteto do deus da guerra dirigindo-se
ao combate - ‘Mars Gradivus’. Dotou a personalidade dela com um número cada vez
maior de características. Ela poderia ter sido filha de um alto personagem,
talvez de um patrício ligado ao culto de alguma divindade. Acreditava poder ver
nos seus traços fisionômicos uma origem grega e, por fim, sentiu-se compelido a
removê-la da vida agitada de uma capital para a mais tranqüila Pompéia, onde a
fazia caminhar sobre as pedras de lava que facilitavam a travessia das ruas.
(ver em [1]) Esses produtos de sua fantasia parecem-nos bastante arbitrários,
mas ao mesmo tempo inocentes e inequívocos. E, na verdade, mesmo quando pela
primeira vez eles o estimularam à ação - quando, obcecado pelo problema da
realidade daquele andar, o arqueólogo começou a observar a vida para observar
os pés das mulheres e jovens contemporâneas -, essa ação era aparentemente
justificada por motivos científicos conscientes, como se todo o seu interesse
por Gradiva tivesse origem em sua dedicação profissional à arqueologia. (ver em
[2]) As jovens e as senhoras por ele escolhidas na rua como objeto de tal
investigação devem, naturalmente, ter atribuído ao seu comportamento um caráter
grosseiramente erótico, e só podemos dar-lhes razão, embora não tenhamos dúvida
alguma de que Hanold ignorasse totalmente tanto os motivos de suas pesquisas
quanto as origens de suas fantasias sobre Gradiva. Como vimos depois, estas
eram ecos das lembranças do seu amor infantil, derivados, transformações e
distorções dessas lembranças, após não terem elas conseguido chegar à
consciência dele de uma forma inalterada. Seu juízo de natureza aparentemente
estética de que a escultura tinha um aspecto ‘atual’ substituiu seu
conhecimento de que um andar desse tipo pertencia a uma jovem que ele conhecia
e que andava na rua na época presente. Por trás da impressão de que a
escultura era ‘viva’ e da fantasia de que o modelo era grego, estava sua
lembrança do nome Zoe, que significa ‘vida’ em grego. ‘Gradiva’, como nos
revela o próprio herói no fim da história, após ter sido curado do seu delírio,
é uma tradução do sobrenome ‘Bertgang’, que quer dizer mais ou menos ‘alguém
que brilha ou esplende ao avançar’. (ver em [1]) Os pormenores relativos ao pai
de Gradiva procediam do conhecimento de Hanold de que Zoe Bertgang era a filha
de um renomado professor da Universidade, o que em termos clássicos pode ser traduzido
como ‘serviço do templo’. Por fim, sua fantasia transportou-a para Pompéia, não
‘porque sua natureza serena e tranqüila assim o exigisse’, mas porque em sua
ciência ele não pôde encontrar uma analogia mais apropriada para seu singular
estado, no qual tomou conhecimento de suas lembranças de uma amizade de
infância, embora através de obscuros meios de informação. Após ter feito sua
própria infância coincidir com o passado clássico (o que era muito fácil para
ele), houve uma perfeita analogia entre o soterramento de Pompéia - que fez
desaparecer mas ao mesmo tempo preservou o passado - e a repressão, de que ele
tinha conhecimento através do que poderíamos chamar de percepção
‘endopsíquica’. Assim ele utilizava o mesmo simbolismo a que o autor faz a jovem
recorrer quase no final da história: ‘Eu disse a mim mesma que seria capaz de
desencavar algo de interessante aqui, sem a ajuda de ninguém. Naturalmente eu
não contava com a descoberta que fiz…’ (124 (ver em [1]).) E bem no final,
quando Hanold sugeriu que passassem ali sua lua-de-mel, ela respondeu com uma
referência a ‘seu companheiro de infância, também de certa maneira desenterrado
das ruínas’. (150 (ver em [2]).)
Assim,
observamos já nos primeiros produtos das fantasias delirantes e ações de Hanold
um duplo grupo de determinantes, derivando-se de duas fontes diferentes. Uma
delas era manifesta para Hanold, a outra é revelada para nós quando examinamos
os processos mentais dele. Uma delas, encarada do ponto de vista de Hanold, era
consciente para ele; a outra era completamente inconsciente. Uma delas procedia
em sua totalidade do círculo de idéias da ciência arqueológica, a outra surgia
das lembranças infantis reprimidas, que se tinham tornado ativas, e dos
instintos emocionais a elas ligados. Pode-se dizer que uma era superficial e se
sobrepunha à outra, a qual como que se ocultava sob a primeira. A motivação
científica servia de pretexto para a motivação erótica inconsciente, estando a
ciência inteiramente a serviço do delírio. Entretanto, não se deve esquecer que
os determinantes inconscientes nada conseguem realizar sem satisfazer
simultaneamente os determinantes científicos conscientes. Os sintomas de um
delírio - tanto as fantasias como as ações - na verdade são produtos de uma
conciliação entre as duas correntes mentais, e numa conciliação são levadas em
conta as pretensões das duas partes, mas cada parte precisa renunciar a uma
parcela do que quer alcançar. Só através de uma luta é que se alcança essa
conciliação - no caso presente, através do conflito que presumimos entre o
erotismo suprimido e as forças que o mantinham em repressão. Na realidade essa
luta é constante na formação do delírio. O ataque e a resistência são renovados
após a construção de cada conciliação, que nunca é, por assim dizer,
inteiramente satisfatória. Nosso autor também em conhecimento desse fato, e é
por isso que faz um desassossego peculiar dominar esse estádio do distúrbio do
seu herói, como precursor e garantia de novos desenvolvimentos.
Essas
peculiaridades significativas - a motivação dupla de fantasias e decisões, e a
construção de pretextos conscientes para ações que são motivadas em grande
parte pelo reprimido - surgirão freqüentemente, e talvez com maior clareza, no
curso posterior da história. E com muito acerto, pois o autor soube compreender
e expor a característica principal e indispensável dos processos mentais
patológicos
O
desenvolvimento do delírio de Norbert Hanold prosseguiu com um sonho que, não
tendo sido provocado por nenhum novo evento, parece ter-se originado
inteiramente de sua mente, onde havia um conflito. Mas façamos uma pausa antes
de conjeturar se o autor também demonstra possuir, como esperávamos, uma
profunda compreensão da construção dos sonhos. Averigüemos primeiro o que tem a
dizer a ciência psiquiátrica sobre as hipóteses formuladas pelo autor a
respeito da origem de um delírio, e qual a sua atitude quanto ao papel
desempenhado pela repressão e pelo inconsciente, assim como quanto ao conflito
e às formações de conciliações. Em síntese, vejamos se essa imaginosa
representação da gênese de um delírio resiste a um exame científico.
E aqui
nossa resposta talvez seja uma surpresa. Nada realidade a situação é inversa: é
a ciência que não resiste à criação do autor. Entre as precondições constitucionais
e hereditárias de um delírio, e as criações deste, que parecem emergir prontas,
existe uma lacuna não explicada pela ciência - lacuna esta que achamos ter sido
preenchida pelo nosso autor. A ciência ainda não suspeita da importância da
repressão, não reconhece que para explicar o mundo dos fenômenos
psicopatológicos o inconsciente é absolutamente essencial, não procura a base
dos delírios num conflito psíquico, e nem considera seus sintomas como
conciliações. Acaso nosso autor ergue-se sozinho contra toda a ciência? Não,
não é assim (isto é, se eu puder considerar como científicos os meus próprios
trabalhos), pois já há alguns anos - e, até bem pouco tempo, mais ou menos
sozinho - eu mesmo venho defendendo todos os princípios que aqui extraí da Gradiva
de Jensen, expondo-os em termos técnicos. Assinalei, particularmente em conexão
com os estados mentais conhecidos como histeria e obsessões, que o determinante
individual desses distúrbios psíquicos é
a supressão de uma parcela da vida instintual e a repressão das idéias que
representam o instinto suprimido, e pouco depois apliquei esses mesmos
princípios a algumas formas de delírio. Neste caso particular da análise de Gradiva,
podemos considerar sem importância o problema de determinar se os instintos envolvidos
nessa causação são sempre componentes do instinto sexual ou se acaso serão
também de outro gênero, já que sem dúvida no exemplo escolhido por nosso autor
o que estava em questão era certamente nada mais do que a supressão dos
sentimentos eróticos. A validade das hipóteses de conflito psíquico e de
formação de sintomas através de conciliações entre as duas correntes em luta já
foi demonstrada por mim no caso de pacientes observados e tratados medicamente
na vida real, assim como pude fazer no caso imaginário de Norbert Hanold. Já
antes de mim, Pierre Janete, discípulo do grande Charcot, e Josef Breuer, em
colaboração comigo, haviam atribuído os produtos das doenças neuróticas, e
especialmente das histéricas, ao poder dos pensamentos inconscientes.
Quando,
a partir de 1893, me dediquei a tais investigações sobre a origem dos
distúrbios mentais, certamente nunca me teria ocorrido procurar uma comprovação
de minhas descobertas nas obras de escritores imaginativos. Assim fiquei
bastante surpreso ao verificar que o autor de Gradiva, publicada em
1903, baseara sua criação justamente naquilo que eu próprio acreditava ter
acabado de descobrir a partir das fontes de minha experiência médica. Como
pudera o autor alcançar conhecimentos idênticos aos do médico - ou pelo menos
comportar-se como se os possuísse?
Como
dizíamos, o delírio de Norbert Hanold avançou mais ainda devido a um sonho
ocorrido durante seu esforços para descobrir um andar semelhante ao de Gradiva
nas ruas da cidade em que ela morava. O conteúdo desse sonho pode ser
facilmente resumido. O sonhador descobriu que estava em Pompéia no dia da
destruição daquela infeliz cidade, e experimentou seus horrores sem correr
perigo. Subitamente viu Gradiva caminhando pela rua e deu-se conta de que,
sendo a jovem pompeana, era natural que residisse em sua cidade natal, e ‘na
mesma época que ele, sem que disto ele tivesse a menor suspeita’ (ver em [1]).
Receando por ela, advertiu-a com um grito, ao que a jovem lhe voltou por um
momento o rosto, mas sem lhe dar atenção prosseguiu seu caminho, deitou-se nos
degraus do templo de Apolo e foi soterrada pelas cinzas, após ter empalidecido
até adquirir a cor do mármore, como se estivesse transformando-se numa estátua.
Ao despertar, ele interpretou os ruídos matutinos da cidade que penetravam em
seu quarto como gritos de socorro dos desesperados habitantes de Pompéia e o
rugir do mar enfurecido. Por algum tempo permaneceu com o sentimentos de ter
realmente vivido os acontecimentos de seu sonhos, tendo este lhe deixado a
convicção de que Gradiva residira em Pompéia e ali perecera no dia fatal,
convicção esta que iria constituir um novo ponto de partida para seu delírio.
Não nos
é assim tão fácil dizer o que pretendia o autor com esse sonho e porque ligou o
desenvolvimento do delírio justamente a um sonho. É verdade que investigadores
diligentes reuniram muitos exemplos de como distúrbios mentais estão ligados a
sonhos e de como surgem de sonhos. Relata-se também que na vida de alguns
homens famosos, os sonhos deram origem a impulsos para atos e decisões
importantes. No entanto, essas analogias não nos ajudam a muito em nossa
compreensão; portanto, vamo-nos cingir ao caso imaginário do arqueólogo Norbert
Hanold. Mas por que aspectos começaremos a examinar esse sonho, de modo a
encaixá-lo no contexto global, para que não permaneça como um ornato
desnecessário da história?
Nesse
ponto posso imaginar a réplica de um leitor: ‘Esse sonho pode ser explicado com
muita facilidade. Trata-se de um simples sonho de ansiedade provocado pelos
ruídos da cidade, os quais o arqueólogo, cuja mente estava voltada para a jovem
pompeana, interpretou erroneamente como a destruição de Pompéia’. Devido ao
pouco valor que geralmente se concede ao papel dos sonhos, costuma-se limitar o
que se pede da explicação dos mesmos a que um estímulo externo coincida mais ou
menos com parte do conteúdo do sonho. Esse estímulo externo para sonhar seria o
ruído que acordou o arqueólogo; e com isso terminaria nosso interesse pelo
sonho. Mas se ao menos tivéssemos alguma base para supor que naquela manhã o
ruído da cidade era mais intenso que o normal! Se ao menos, por exemplo, o
autor não tivesse deixado de nos dizer que, contrariando seus hábitos, Hanold
dormira com as janelas abertas! Que pena que ele tenha omitido isso! E se ao
menos ainda os sonhos de ansiedade fossem assim tão simples! Mas não é nada
disso, e nosso interesse por esse sonho não poderá esgotar-se assim tão
facilmente.
Para a
construção de um sonho não é essencial um vínculo com um estímulo sensorial
externo. Aquele que dorme pode ignorar um estímulo desse gênero a partir do
mundo externo, pode ser despertado pelo mesmo sem construir um sonho, ou, como
aconteceu aqui, pode incorporá-lo a seu sonho, se isto lhe convier por alguma
razão. Além disso, existem inúmeros sonhos cujo conteúdo de forma alguma pode
ser explicado como sendo determinado por um estímulo externo sobre os sentidos
do indivíduo que dorme. Portanto, procuremos outro caminho.
Talvez
os efeitos posteriores do sonho sobre a vida de vigília de Hanold possam
fornecer-nos um ponto de partida. Até então, ele tivera a fantasia de que
Gradiva fora uma pompeana. Essa hipótese então se transforma para ele numa
certeza, a que logo se soma uma outra: ela fora soterrada com o resto da
população no ano de 79 D.C. Um sentimento de melancolia acompanhou essa
extensão da estrutura delirante, como um eco da ansiedade do sonho. Não nos
parece muito compreensível essa nova dor em relação a Gradiva; afinal ela devia
estar morta há muitos séculos, mesmo se houvesse escapado da destruição de 79
D.C. Mas parece que nada nos adiantará continuar argumentando com Norbert
Hanold ou com o próprio autor, pois esse caminho não levará a nenhum
esclarecimento. Contudo, vale a pena ressaltar que o incremento adquirido pelo
declínio a partir desse sonho era acompanhado por um sentimento muito doloroso.
Com
exceção disso, entretanto, continuamos tão embaraçados quanto antes. Esse sonho
não se explica por si só, e precisamos recorrer à nossa Interpretação de Sonhos e aplicar ao
presente exemplo algumas das regras que ali são encontradas para a solução dos
sonhos.
Uma
dessas regras diz que um sonho invariavelmente se relaciona com os eventos do
dia anterior. Nosso autor parece querer mostrar que seguiu essa regra, pois
imediatamente liga o sonho às ‘pesquisas pedestres’ de Hanold. Ora, essas
pesquisas não significavam senão a procura de Gradiva, cujo andar
característico ele tentava reconhecer. Assim o sonho deveria conter um início
do paradeiro de Gradiva. E realmente contém, pois mostra-a em Pompéia, o que
para nós não constitui novidade.
Outra
regra diz que, se uma crença na realidade das imagens oníricas persistir por um
espaço de tempo invulgarmente prolongado, de modo que o indivíduo não consiga
desligar-se do sonho, esse fenômeno não deve ser considerado como um erro de
julgamento provocado pela vividez das imagens oníricas, mas um ato psíquico
independente: uma garantia, em relação ao conteúdo do sonho, de que algo nele é
realmente tal como foi sonhado; e pode-se confiar nessa garantia. Se
observarmos essas duas regras, concluiremos que o sonho fornece alguma
informação sobre o paradeiro de Gradiva e que essa informação se ajusta à
realidade das coisas. Já conhecemos o sonho de Hanold: será que, aplicando-lhe
essas regras, extrairemos dele algum sentido plausível?
Por estranho que pareça, sim. O que acontece é
que esse sentido está de tal forma disfarçado que não o reconhecemos de
imediato. O sonho informou a Hanold que a jovem que ele procurava morava numa
cidade em que ele também vivia. Ora, essa informação sobre Zoe Bertgang era
verdadeira, só que no sonho essa cidade era Pompéia e não uma cidade
universitária alemã, e o tempo não era o presente, mas o ano de 79 D.C.
Trata-se de uma distorção por deslocamento: em vez de Gradiva no presente,
tem-se o sonhador transportado para o passado. Entretanto, mesmo assim, um fato
novo e essencial é transmitido: ele está no mesmo local e na mesma época que
a jovem que ele procura. Mas então para que esse deslocamento e esse disfarce
que forçosamente iludiriam a nós e ao sonhador quanto ao verdadeiro sentido e
conteúdo do sonho? Bem, já temos à nossa disposição meios para fornecer uma
resposta satisfatória a essa pergunta.
Vamos
relembrar tudo que aqui foi dito sobre a origem e a natureza das fantasias
precursoras dos delírios (ver a partir de [1]). Elas são substitutos e
derivados de lembranças reprimidas que não conseguem atingir a consciência de
forma inalterada devido a uma resistência, mas que podem alcançar a
possibilidade de se tornarem conscientes levando em consideração, por meio de
mudanças e distorções, a censura da resistência. Uma vez realizada essa
conciliação, as lembranças reprimidas transformam-se em fantasias que com
facilidade poderão ser compreendidas erroneamente pela personalidade consciente
- isto é, compreendidas de modo a se adaptarem à corrente psíquica dominante.
Agora suponhamos que as imagens oníricas sejam o que poderia ser descrito como
criações dos delírios fisiológicos [isto é, não-patológicos] das pessoas -
produtos de uma conciliação na luta entre o reprimido e o dominante que
provavelmente existe em todo ser humano, inclusive naqueles que no estado de
vigília possuem perfeita saúde mental. Compreenderemos então a necessidade de
encarar as imagens oníricas como algo distorcido, por trás do qual se pode
procurar mais alguma coisa, não distorcida, mas de alguma forma
censurável, tal como as lembranças reprimidas de Hanold escondidas por suas
fantasias. Podemos dar expressão ao contraste acima verificado, distinguindo o conteúdo
manifesto do sonho, isto é, o que o sonhador lembra quando acorda, dos pensamentos
oníricos latentes, isto é, aquilo que constituía a base do sonho antes da
distorção imposta pela censura. Assim, interpretar um sonho consiste em traduzir
o conteúdo manifesto do sonho nos pensamentos oníricos latentes, desfazendo a
distorção que a censura da resistência impôs aos pensamentos oníricos. Se
aplicarmos essas noções ao sonho que estamos examinando, descobriremos que os
pensamentos oníricos latentes só podem ter sido os que se seguem: ‘a jovem de
andar gracioso que procuras, na realidade mora aqui nesta mesma cidade em que
vives.’ Mas com essa forma o pensamento não conseguiu tornar-se consciente,
sendo obstruído pelo fato de que uma fantasia afirmara, como resultado de uma
conciliação anterior, que Gradiva era pompeana; portanto, para expressar o fato
real de que ela vivia no mesmo lugar e na mesma época que ele, só houve um
caminho, o da seguinte distorção: ‘vives em Pompéia na época de Gradiva.’ Esta
foi a idéia transmitida pelo conteúdo manifesto do sonho, que a mostrou como
uma realidade vivida no momento.
Só
raramente um sonho representa ou, como poderíamos dizer, ‘encena’ um único
pensamento; geralmente trata-se de um conjunto, de uma trama de pensamentos. Do
sonho de Hanold podemos extrair com facilidade um outro componente de seu
conteúdo, livrando-o facilmente de sua distorção, de modo a expor a idéia
latente que ele representa. A essa parte do sonho também se aplica a garantia
de realidade com a qual o sonho terminou. Neste houve a transformação de
Gradiva numa estátua de mármore, o que não é senão uma representação engenhosa
e poética do evento real. Na verdade, Hanold havia transferido seu interesse da
jovem viva para a escultura, transformando a amada num relevo de mármore. Os
pensamentos oníricos latentes, forçados a permanecer inconscientes, tentam
realizar a transformação inversa da escultura na jovem viva; o que queriam
dizer a ele era mais ou menos o seguinte: ‘afinal só estás interessado na
estátua de Gradiva porque ela te recorda Zoe, que vive aqui e agora.’ Mas se
essa descoberta pudesse ter-se tornado consciente, isso teria significado o fim
do delírio.
Acaso
seremos obrigados a substituir de forma análoga cada fragmento do conteúdo
manifesto do sonho por pensamentos inconscientes? Se quiséssemos ser rigorosos,
sim; se estivéssemos interpretando um sonho que tivesse sido realmente sonhado
não poderíamos furtar-nos a esse dever. Mas em tal caso, aquele que sonhou
teria de nos fornecer explicações muito mais amplas. É claro que tal requisito
não pode ser satisfeito no caso da criação do autor; entretanto, não devemos
esquecer que o conteúdo central do sonho ainda não foi submetido ao processo de
interpretação ou tradução.
Evidentemente
o sonho de Hanold foi um sonho de ansiedade. De conteúdo apavorante, provocou
ansiedade naquele que sonhava e deixou atrás de si sentimentos dolorosos. Esse
fato em muito dificulta nossa tentativa de explicação, e somos mais uma vez
obrigados a recorrer à teoria da interpretação dos sonhos. Esta nos acautela
contra o erro de atribuir a ansiedade que pode ser sentida em sonhos ao
conteúdo desses sonhos, e de tratar esse conteúdo como se fosse o de uma idéia
que ocorre no estado de vigília. Alerta-nos também sobre a freqüência com que
temos sonhos apavorantes sem sentir o mais leve traço de ansiedade. A situação
real é bem diversa e nada evidente, mas pode ser comprovada de forma
irrefutável. A ansiedade nos sonhos de ansiedade, como toda ansiedade neurótica
em geral, corresponde a um afeto sexual, a um sentimento libidinal, e surge da
libido pelo processo de repressão. Portanto, ao interpretarmos um sonho devemos
substituir a ansiedade por excitação sexual. Nem sempre, mas com freqüência, a
ansiedade que assim se origina exerce uma influência seletiva sobre o conteúdo
do sonho, nele introduzindo elementos ideativos que, de um ponto de vista
consciente e errôneo, parecem adequados para o afeto de ansiedade. Como já
disse, isso nem sempre acontece, existindo muitos sonhos de ansiedade nos quais
o conteúdo nada tem de apavorante e nos quais é impossível encontrar uma
explicação, em termos conscientes, para a ansiedade que é sentida.
Sei que
essa explicação da ansiedade em sonhos parece muito estranha e de difícil
aceitação, mas aqui só posso aconselhar o leitor a dar-lhe crédito. Contudo,
seria realmente extraordinário se o sonho de Norbert Hanold se encaixasse nessa
concepção da ansiedade e pudesse ser assim explicado. Partindo dessa hipótese,
diríamos que seus desejos eróticos vieram à tona durante a noite e fizeram um
esforço intenso para tornar conscientes as lembranças da jovem por ele amada e
para arrancá-lo do seu delírio; esses desejos, porém, foram novamente
repudiados, transformando-se em ansiedade, a qual, por sua vez, introduziu no
conteúdo do sonho as imagens aterradoras das lembranças dos tempos de
estudante. Dessa forma o verdadeiro conteúdo inconsciente do sonho, seu
apaixonado desejo pela Zoe que conhecera no passado, transformou-se no conteúdo
manifesto da destruição de Pompéia e da perda de Gradiva.
Até aqui
isso me parece plausível. Mas poder-se-ia com justiça ressaltar que, se o
conteúdo não-distorcido do sonho é constituído de desejos eróticos, deveria ser
possível identificar pelo menos algum resíduo desses desejos ocultos no sonho
transformado. Bem, talvez isso seja possível, com a ajuda de um indício contido
num trecho posterior da história. Ao encontrar-se pela primeira vez com
Gradiva, Hanold recordou-se do sonho e pediu à jovem que se deitasse novamente
na escadaria, como então a vira fazer (ver em [1]). A esse pedido, entretanto,
a jovem ergueu-se indignada e deixou seu estranho companheiro, pois percebera o
inconveniente desejo erótico por trás das palavras que ele pronunciara sob a
influência do delírio. Julgo que devemos aceitar a interpretação de Gradiva;
nem mesmo num sonho real poderíamos esperar encontrar uma expressão mais
definida de um desejo erótico.
Aplicando
ao primeiro sonho de Hanold algumas regras da interpretação de sonhos,
conseguimos tornar inteligíveis seus elementos principais e inseri-lo no
contexto da história. Poderemos então ter como certo que o autor observou essas
regras ao criá-lo? E uma segunda pergunta também nos ocorre: por que o autor
introduziu esse sonho para realizar o desenvolvimento posterior do delírio? Em
minha opinião, o recurso é engenhoso e fiel à realidade. Já vimos (ver em [1])
que em doenças reais um delírio com muita freqüência surge em conexão com um
sonho, e, após esses últimos esclarecimentos sobre a natureza dos sonhos, esse
fato não deve constituir para nós um novo enigma. Os sonhos e os delírios
surgem de uma mesma fonte - do que é reprimido. Poderíamos dizer que os sonhos
são os delírios fisiológicos das pessoas normais. (ver em [2]) Antes de
tornar-se suficientemente forte para irromper na vida de vigília como delírio,
o que é reprimido pode ter alcançado um primeiro sucesso, sob as condições mais
favoráveis do sono, na forma de sonho de efeitos duradouros. Durante o sono,
juntamente com uma diminuição geral da atividade mental, dá-se um relaxamento
da força da resistência que as forças psíquicas dominantes opõem ao que é
reprimido. É esse relaxamento que possibilita a formação dos sonhos, e é por
isso que estes constituem o melhor caminho para o conhecimento da parte
inconsciente da mente - só que, via de regra, ao se restabelecerem das catexias
psíquicas da vida de vigília, os sonhos se desvanecem e o inconsciente é
obrigado a evacuar mais uma vez o terreno que conquistara.
Em
trecho posterior da história encontramos um novo sonho que talvez mais do que o
anterior nos desafie a tentar traduzi-lo e inseri-lo na cadeia de eventos na
mente do herói. Mas pouco nos adiantaria abandonar o relato do autor e
lançarmo-nos imediatamente ao segundo sonho, pois quem deseja analisar os
sonhos de outra pessoa não pode deixar de dar a máxima atenção a todas as
experiências, tanto externas como internas, daquele que sonha. Portanto,
certamente será melhor seguir o fio da história, intercalando nossos
comentários à medida que avançarmos.
A
construção do novo delírio acerca da morte de Gradiva durante a destruição de
Pompéia no ano de 79 não foi o único resultado do primeiro sonho, já por nós
analisado. Logo após o mesmo, Hanold resolveu viajar para a Itália, viagem esta
que terminou por levá-lo a Pompéia. Mas, antes dessa decisão, sucedeu-lhe outro
fato. Ao se debruçar na janela julgou ver um vulto com um porte e um andar
semelhantes aos de sua Gradiva. Apesar de incompletamente vestido, correu em
seu encalço, mas perdeu-a de vista, sendo obrigado a voltar para casa devido
aos gracejos dos transeuntes. De volta a seu quarto, o canto de um canário numa
gaiola na janela da casa fronteira despertou-lhe a sensação de que também ele
era um prisioneiro desejoso de liberdade, e imediatamente decidiu empreender
uma viagem de primavera à Itália, plano que logo colocou em execução.
O autor
focalizou com bastante clareza essa viagem de Hanold, permitindo que seu
personagem tivesse uma compreensão interna (insight) parcial de seus
próprios processos internos. Naturalmente Hanold descobriu um pretexto
científico para a viagem, mas isso não durou por muito tempo. Na verdade, tinha
ciência de que ‘o impulso para empreender aquela viagem tivera origem num
sentimento que ele não podia nomear’. Um estranho desassossego tornou-o
insatisfeito com tudo que o cercava, impelindo-o de Roma para Nápoles e dali
para Pompéia, mas nem mesmo nessa última cidade encontrou tranqüilidade.
Irritava-se ante a insensatez dos casais em lua-de-mel, e se enfureceu com a
impertinência das moscas que povoavam os hotéis de Pompéia. Por fim não
conseguiu esconder de si mesmo ‘que sua insatisfação não podia ser motivada
apenas pelas circunstâncias externas, devendo também ter origem em seu íntimo.’
Sentiu-se superexcitado, ‘descontente pela falta de alguma coisa que não sabia
o que era. Esse mau humor acompanhava-o por toda a parte.’ Nesse estado de
espírito sua fúria voltou-se até mesmo contra a ciência de que era servo fiel.
Quando ao calor do sol do meio-dia vagueava sem rumo por Pompéia, ‘não somente
esquecera-se de toda a sua ciência, como também não sentia o menor desejo de
voltar a se ocupar dela. Ela lhe parecia algo muito distante, uma tia velha
enfadonha, encarquilhada, ressequida, a criatura mais maçante e indesejável do
mundo.’ (55.)
Enquanto
se encontrava nesse estado de espírito desagradável e confuso, deparou com a
solução de um dos problemas referentes à sua viagem - no momento em que viu
Gradiva andando por uma rua de Pompéia. ‘Tomou consciência, pela primeira vez,
de que, embora ignorando o motivo interno que o impelira, se viera à Itália
dirigindo-se a Pompéia sem se deter em Roma ou em Nápoles, fora para procurar
as pegadas de Gradiva - e “pegadas” no sentido literal, pois com aquele andar
peculiar ela deveria ter deixado impressões inconfundíveis nas cinzas.’ (58
(ver em [1]).)
Se o
autor deu-se ao trabalho de escrever a viagem com tantas minúcias, deve valer a
pena examinar a relação da mesma com o delírio de Hanold e sua posição na
cadeia dos eventos. O arqueólogo empreendeu a viagem por motivos que a
princípio desconhecia, mas que veio a admitir mais tarde; motivos esses que o
próprio autor qualifica de ‘inconscientes’. Isso é verossímil. Não é preciso
que uma pessoa sofra de um delírio para se comportar de forma análoga. Ao
contrário, uma pessoa, mesmo saudável, pode com freqüência enganar-se quanto
aos motivos de um ato, tomando consciência dos mesmos só depois do evento; para
tanto só é necessário que um conflito entre as diversas correntes de
sentimentos crie as condições para tal confusão. Assim, desde o momento em que
foi concebida, a viagem de Hanold estava a serviço do delírio, sendo seu
propósito conduzir o arqueólogo a Pompéia, onde poderia continuar a procurar
Gradiva. Recordemo-nos que, tanto antes como imediatamente após o sonho, sua
mente se ocupava com essa procura, e que o sonho nada mais era do que uma
resposta ao enigma do paradeiro de Gradiva, ainda que uma resposta sufocada
pela sua consciência. Alguma força inibidora, por nós ainda desconhecida,
impedia-o de tomar consciência de sua intenção delirante, de modo que para
justificar conscientemente sua viagem só lhe restam débeis pretextos que
necessitam ser renovados a cada etapa. O autor coloca-nos diante de novo enigma
ao fazer com que o sonho, a descoberta da suposta Gradiva na rua e a viagem
inspirada pelos gorjeios de um canário se sucedessem como uma série de eventos
casuais, sem qualquer tipo de conexão interna um com o outro.
Algumas
explicações que inferimos de frases posteriores de Zoe Bertgang nos elucidam
esse trecho obscuro da história. Na verdade, foi o original de Gradiva, a
própria Fräulein Zoe, que Hanold viu passar em frente de sua janela (89) e que
ele quase alcançou. Se o tivesse feito, a informação transmitida pelo sonho -
que na realidade ela vivia no mesmo local e na mesma época que ele - por um
feliz acaso teria recebido uma irrefutável confirmação, a qual provocaria o fim
de sua luta interna. Também o canário, que o motivou a empreender sua longa
viagem, pertencia a Zoe, e sua gaiola na janela da jovem do outro lado da rua
ficava bem em frente à casa de Hanold. (135 (ver em [1]).) Este, que segundo
uma acusação da jovem possuía o dom da ‘alucinação negativa’, isto é, a arte de
não ver e não reconhecer pessoas que estavam à sua frente, deve desde o início
ter tido um conhecimento inconsciente daquilo que só mais tarde descobriríamos.
Os indícios da proximidade de Zoe (seu aparecimento na rua e o canto do seu
canário tão próximo à janela dele) intensificaram o efeito do sonho, e nessa
situação, tão perigosa para a sua resistência aos sentimentos eróticos, Hanold
decidiu fugir. Sua viagem era o resultado de novo fortalecimento dessa
resistência, em seguida ao avanço obtido no sonho por seus desejos eróticos;
era uma tentativa de fugir da presença física da jovem amada. Na prática
significava uma vitória para a repressão, assim como sua atividade anterior,
suas ‘pesquisas pedestres’ em mulheres e jovens, significara uma vitória do
erotismo. Mas em todas essas oscilações verificadas no conflito, o caráter de
conciliação dos resultados é preservado: a viagem para Pompéia, que deveria
afastá-lo da Zoe viva, o conduziu ao menos para a sua substituta, Gradiva. A
viagem, empreendida num desafio aos pensamentos oníricos latentes, seguiu,
entretanto, a rota para Pompéia indicada pelo conteúdo manifesto do sonho.
Assim, verificamos que, a cada novo conflito entre o erotismo e a resistência,
o delírio sempre triunfa.
Essa
interpretação da viagem de Hanold como sendo uma fuga diante do seu desejo
erótico despertado pela jovem amada, e que estava tão próxima dele, é a única
que se ajustará à descrição do seu estado emocional durante a estada na Itália.
O repúdio ao erotismo que o dominava expressava-se pelo horror que votava aos
casais em lua-de-mel. Um curto sonho que tivera em seu albergo em Roma,
ocasionado pela proximidade de um casal de alemães cujo colóquio noturno ouvia
através das delgadas paredes de seu quarto, elucidou retrospectivamente as
tendências eróticas do seu primeiro sonho. Nesse novo sonho, ele estava
novamente em Pompéia durante a erupção do Vesúvio, o que estabelecia uma
ligação deste sonho com o anterior, cujos efeitos prolongados fizeram-se sentir
durante toda a viagem. Entretanto, dessa vez as pessoas ameaçadas não eram ele
próprio e Gradiva, como na ocasião anterior, mas Apolo do Belvedere e Vênus
Capitolina, certamente uma irônica exaltação do casal do quarto contíguo. Apolo
ergueu Vênus nos braços e colocou-a sobre um objeto escuro, que parecia ser um
coche ou uma carreta, pois ‘estalavam’. No mais a interpretação desse sonho não
requer nenhuma habilidade especial. (31.)
Nosso
autor, que, como descobrimos há muito, nunca introduz em sua história elementos
ociosos ou inúteis, forneceu-nos outro indício da tendência assexual que
dominou Hanold em sua viagem. Enquanto perambulava durante horas por Pompéia,
‘estranhamente nem por um momento se recordou do sonho em que testemunhara o
soterramento de Pompéia na erupção de 79 D.C.’ (47.) Só quando encontrou
Gradiva é que se lembrou do sonho e ao mesmo tempo tomou consciência do motivo
delirante de sua enigmática viagem. Esse esquecimento do sonho, essa barreira
de repressão entre o sonho e seu estado mental durante a viagem, só pode ser
explicado pela suposição de que a viagem, não foi empreendida sob a inspiração
direta do sonho, mas como uma revolta contra o mesmo, como uma manifestação de
uma força mental que se recusava a conhecer qualquer parcela do significado
secreto do sonho.
Entretanto,
por outro lado, essa vitória sobre o erotismo não causou prazer a Hanold. O
impulso mental suprimido conservava poder suficiente para vingar-se do impulso
supressor através da inibição e do descontentamento. Os desejos do arqueólogo transformaram-se
em desassossego e insatisfação, que retiravam de sua viagem todo sentido.
Inibida a compreensão interna (insight) dos motivos da viagem
empreendida sob o comando do delírio, seus interesses científicos, que deveriam
ser estimulados pelo novo ambiente, também ficaram tolhidos. Após essa fuga do
amor, o autor mostra-nos seu herói num estado de completa perturbação e
confusão, numa crise semelhante ao ponto culminante de uma doença, quando
nenhuma das duas forças conflitantes é suficientemente superior à outra para
que essa vantagem possibilite o estabelecimento de um regime mental vigoroso.
Nesse ponto, entretanto, o autor intervém em auxílio de seu personagem e traz
Gradiva à cena, encarregando-a de curá-lo. Utilizando seu direito de conduzir
os destinos de suas criaturas para um desenlace feliz, embora as faça curvar-se
às leis da necessidade, o autor desloca para Pompéia a mesma jovem que Hanold
tentava evitar em sua fuga para aquele lugar. Assim corrige a insensatez a que
o delírio induzira o jovem - a insensatez de trocar a cidade da jovem viva que
ele amava pelo sepulcro de sua substituta imaginária.
Com o
aparecimento de Zoe Bertgang como Gradiva, clímax de tensão na história, nosso
interesse logo toma um curso diferente. Assistimos até aqui ao desenvolvimento
de um delírio; agora, iremos testemunhar sua cura. Poderemos indagar se o autor
expôs o desenrolar dessa cura de forma totalmente fantasiosa ou se acaso a
construiu de acordo com as possibilidades presentes. As palavras que Zoe dirigiu
à amiga recém-casada nos dão o inegável direito de atribuir-lhe uma intenção de
realizar a cura. (124 (ver em [1]).) Mas como atingiu seus propósitos? Após
sobrepujar a indagação provocada pelo pedido de Hanold para que se deitasse na
escadaria como ‘então’ o fizera, ela retornou no dia seguinte, à mesma hora,
decidida a arrancar de Hanold os segredos cuja ignorância por parte dela a
havia impedido de compreender o comportamento dele no dia anterior. Assim veio
a saber do sonho, da escultura de Gradiva e do andar que era uma peculiaridade
de ambas. Ela aceitou o papel de um fantasma redivivo por uma fugaz hora, papel
que, como ela percebera, o delírio de Hanold lhe atribuíra, mas, ao aceitar sua
oferta das flores dedicadas aos mortos e ao lamentar que ele não tivesse
escolhido rosas, insinuou delicadamente com palavras ambíguas a possibilidade
de ele admitir uma nova situação. (90 (ver em [1]).)
Essa
jovem de inteligência invulgar estava então decidida a converter seu amigo de
infância em seu marido, após descobrir que a força motivadora do delírio deste
era o amor que ele lhe devotava. Nosso interesse no comportamento da jovem,
entretanto, cederá momentaneamente lugar à surpresa que o próprio delírio nos
provoca. A última forma assumida por ele era que Gradiva, soterrada no ano 79
D.C., era capaz de agora, na qualidade de fantasma do meio-dia, falhar-lhe por
uma hora, no fim da qual ela teria de sumir nas entranhas da terra ou voltar a
seu túmulo. Essa teia mental, que não se desfaz nem pela constatação de que a
aparição usava sapatos modernos e desconhecia as línguas clássicas, falando o
alemão, idioma ainda inexistente na época da catástrofe de Pompéia, parece sem
dúvida justificar a denominação de ‘fantasia pompeana’ dada pelo autor à sua
obra e excluir qualquer possibilidade de julgá-la pelos critérios da realidade
clínica.
Entretanto,
a um exame mais apurado esse delírio de Hanold me parece perder a maior parte
de sua improbabilidade; esta, aliás, repousa no fato de o autor ter baseado sua
história na premissa de que Zoe era uma réplica da escultura. Devemos, porém,
evitar deslocar a improbabilidade dessa premissa para a sua conseqüência: o
fato de Hanold tomar a jovem pela própria Gradiva ressuscitada. Essa explicação
delirante adquire maior valor pelo fato de que o autor não nos forneceu nenhuma
explicação racional. Acrescentou, entretanto, circunstâncias atenuantes para
tal extravagância do seu herói, na forma do sol ardente da campagna e na
magia inebriante do vinho originário das encostas do Vesúvio. Contudo, o mais
importante dos fatores que podem explicar e justificar isso reside na
facilidade com que nosso intelecto está pronto a aceitar algo absurdo, desde
que este satisfaça impulsos emocionais poderosos. É um fato espantoso, e também
geralmente ignorado, a presteza e a freqüência com que, em tais condições
psicológicas, pessoas de viva inteligência reagem como débeis mentais. Todo
indivíduo não muito preconceituoso pode, amiúde, observar o fato em si mesmo,
especialmente se os processos mentais em questão estiverem ligados a motivos
inconscientes ou reprimidos. A esse respeito, é com satisfação que transcrevo
as palavras que me foram enviadas por um filósofo: ‘Tenho anotado as
circunstâncias em que eu próprio cometi erros ou atos irrefletidos para os
quais mais tarde se descobrem motivos (os mais irracionais). É alarmante, porém
característica, a quantidade de tolices que assim vêm à tona.’ Devemos lembrar,
também, que a crença nos espíritos e fantasmas, e no retorno dos mortos, que
tanto apoio encontra nas religiões a que todos estivemos ligados pelo menos na
infância, está longe de ter desaparecido entre a gente culta, e que muitas
pessoas, sensatas em todos os outros aspectos, acham possível conciliar
espiritualismo com razão. Mesmo o homem que se tornou cético e racional pode
descobrir, envergonhado, que sob o impacto da perplexidade e de emoções fortes
facilmente volta por momentos a acreditar em espíritos. Conheço um médico que
perdera uma paciente portadora da doença de Graves, e que não conseguia afastar
de sua mente uma leve suspeita de talvez haver contribuído para o funesto
desenlace por causa de uma medicação imprudente. Certo dia, anos depois, uma
jovem entrou em seu consultório e, apesar de resistir à idéia, meu colega não
conseguiu impedir-se de a identificar com a morta. Não podia deixar de pensar o
seguinte: ‘Então afinal é verdade que os mortos podem retornar à vida.’ No
entanto, seu pavor converteu-se em vergonha quando a jovem se apresentou como a
irmã da falecida paciente e revelou estar sofrendo da mesma enfermidade. Os
portadores da doença de Graves, como já se observou com freqüência, terminam
por apresentar uma grande semelhança fisionômica, intensificada no caso pelos
traços de família. O médico a quem isso aconteceu era eu próprio. Portanto,
tenho um motivo pessoal para não refutar a possibilidade clínica do delírio
temporário de Norbert Hanold de que Gradiva retornara à vida. Enfim, é um fato
familiar a todo psiquiatra a ocorrência, em casos graves de delírios crônicos
(paranóia), de exemplos surpreendentes de absurdos solidamente construídos com
grande engenho.
Após seu
primeiro encontro com Gradiva, Norbert Hanold dirigiu-se aos dois hotéis em
Pompéia e pediu vinho nas salas de refeições em que estavam reunidos para o
almoço os demais visitantes da cidade. ‘Naturalmente nem uma vez lhe ocorreu o
tolo pensamento’ de que assim agia para descobrir em qual desses hotéis Gradiva
estava hospedada e fazia suas refeições; contudo, é difícil atribuir outro
sentido a seu comportamento. No dia seguinte a seu segundo encontro com a jovem
na Casa de Meleagro, passou por uma série de experiências estranhas e
aparentemente sem qualquer ligação. Descobriu uma estreita fenda na parede do
pórtico, no ponto em que Gradiva desaparecera; encontrou um excêntrico caçador
de lagartos, que o interpelou como se o conhecesse; descobriu um terceiro
hotel, num local afastado, o ‘Albergo del Sole’, cujo dono lhe impingiu um
broche coberto de pátina verde que teria sido encontrado junto aos restos de
uma jovem pompeana. Por fim, em seu próprio hotel encontrou um jovem casal que
tomou por irmãos e que despertou a sua empatia. Mais tarde todas essas
impressões interligaram-se em um sonho ‘singularmente absurdo’:
‘Sentada
em algum lugar no sol, Gradiva confeccionava um laço de um longo talo de erva
para capturar um lagarto, e disse: “Por favor, fique bem quieto. Nossa colega
tem razão, esse método é realmente ótimo e ela já o utilizou com excelentes
resultados.”’ (ver em [1])
Ainda
adormecido, Norbert Hanold defendeu-se do sonho com o pensamento crítico de que
o mesmo era totalmente insensato, e procurou de todas as formas libertar-se
dele. Conseguiu isso com a ajuda de um pássaro invisível que, emitindo um pio
sarcástico, aprisionou em seu bico o lagarto e o carregou consigo.
Vamos
tentar interpretar esse sonho, isto é, substituí-lo pelos pensamentos latentes
de cuja distorção deve ter-se originado? É tão sem sentido quanto pode ser um
sonho, e é justamente nesse absurdo dos sonhos que se apóiam os que,
recusando-se a aceitá-los como atos psíquicos válidos, afirmam ter os mesmos
origem numa excitação fortuita dos elementos da mente.
Podemos
aplicar a esse sonho uma técnica que constitui o procedimento regular para a
interpretação dos sonhos. Consiste em não prestar atenção nas conexões
aparentes do sonho manifesto, mas em concentrara atenção isoladamente em cada
um dos elementos do seu conteúdo, buscando sua origem nas impressões,
lembranças e associações livres do sonhador. Entretanto, como não podemos
submeter Hanold a um interrogatório, teremos de nos contentar em consultar suas
impressões, e timidamente substituir suas associações pelas nossas.
‘Sentada
em algum lugar no sol, Gradiva caçava lagartos e falava.’ A que impressões da
véspera alude essa parte do sonho? Sem dúvida ao encontro com o senhor idoso
que caçava lagartos, transformado pelo sonho em Gradiva. Ele estava sentado
numa ‘encosta ensolarada’ e dirigiu-se a Hanold. As palavras pronunciadas por
Gradiva no sonho foram copiadas da fala desse homem: ‘O método inventado pelo
nosso colega Eimer é realmente muito bom. Já o utilizei várias vezes com
excelentes resultados. Por favor, fique bem quieto’. (ver em [1]) No sonho,
Gradiva proferiu quase as mesmas palavras. ‘Nosso colega Eimer’, entretanto,
transformou-se numa anônima ‘colega’; além disso, a expressão ‘muitas vezes’,
na fala do zoólogo, foi omitida no sonho e a ordem das frases sofreu algumas
alterações. A experiência da véspera, portanto, foi utilizada pelo sonho e
submetida a mudanças e distorções. Mas por que justamente essa experiência? E
qual o significado das alterações - a substituição do senhor idoso por Gradiva
e a introdução de uma misteriosa ‘colega’?
Uma das
regras da interpretação de sonhos é a seguinte: ‘Uma fala ouvida no sonho
sempre deriva de outra que o próprio sonhador ouviu ou pronunciou na vida de
vigília. No sonho em questão parece ter sido obedecida essa regra: a fala de
Gradiva é uma simples modificação das palavras ditas pelo zoólogo a Hanold na
véspera. Outra regra da interpretação de sonhos diz que a substituição de uma
pessoa por outra, ou a combinação de duas pessoas (quando, por exemplo, uma
ocupa uma posição característica da outra), significa uma equiparação dessas
pessoas, a existência de uma semelhança entre elas. Se aplicarmos também essa
regra a nosso sonho, chegaremos à seguinte tradução: ‘Gradiva caça lagartos
exatamente como aquele velho; é tão perita nesse ofício quanto ele.’ Isso ainda
não está muito claro, e nos deixa ainda um outro enigma: a que impressão da
véspera podemos relacionar a ‘colega’ que substitui o zoólogo Eimer no sonho?
Felizmente não temos muitas opções. Essa ‘colega’ só pode significar outra
jovem - isto é, a simpática jovem que Hanold julgara ser a irmã que viajava com
o irmão. ‘Ela usava no vestido uma rosa vermelha de Sorrento que despertou no
arqueólogo, sentado a um canto do salão de jantar, uma recordação imprecisa.’
(ver em [1]) Essa observação do autor dá-nos o direito de supor ser essa jovem
‘a colega’ do sonho. Sem dúvida aquilo de que Hanold não podia recordar-se eram
as palavras que a suposta Gradiva lhe dirigira ao pedir-lhe as flores brancas
dos mortos, pois as mais afortunadas recebiam rosas na primavera. (ver em [2])
Por trás dessas palavras, entretanto, havia um apelo amoroso, uma tentativa de
sedução. Assim, que espécie de caça de lagartos teria a sua ‘colega’ mais
afortunada levado a termo com tanto êxito?
No dia
seguinte Hanold encontrou os supostos irmãos num terno abraço e pôde, assim,
retificar seu engano. Na verdade o par estava em lua-de-mel, como descobrimos
mais tarde, quando interromperam de forma tão inesperada o terceiro encontro de
Hanold com Zoe. Se agora estivermos dispostos a admitir que Hanold, embora
conscientemente os julgasse irmãos, reconhecera inconscientemente a verdadeira
relação deles (revelada de forma inequívoca no dia seguinte), a fala de Gradiva
no sonho irá adquirir um claro significado. A rosa vermelha tornara-se o
símbolo de uma ligação amorosa. Hanold tinha ciência de que aqueles dois já
eram um para o outro o que ele e Gradiva ainda tinham de se tornar. A caça de
lagartos adquiriu o sentido de caça do homem, e é o seguinte o significado da
fala de Gradiva: ‘Deixa-me agir sozinha, que saberei conquistar um marido tão
bem quanto qualquer outra moça.’
Mas por
que foi necessário que essa percepção dos propósitos de Zoe aparecesse no sonho
sob a forma da fala do velho zoólogo? Por que a perícia de Zoe na caça de
marido foi representada pela perícia do velho senhor na caça de lagartos? Bem,
essa pergunta não oferece nenhuma dificuldade. Há muito advinhamos que o
caçador de lagartos não é senão Bertgang, o professor de zoologia e pai de Zoe,
que certamente também conhecia Hanold - o que explica o fato de o ter
interpelado como a um conhecido. Vamos admitir também que, inconscientemente,
Hanold houvesse reconhecido o catedrático. ‘Teve a vaga impressão de que já
vira rapidamente o caçador de lagartos, provavelmente num dos dois hotéis.’
Está assim explicado o estranho disfarce sob o qual surgia a intenção atribuída
a Zoe: ela era a filha do caçador de lagartos e dele herdara a perícia.
A
substituição, no conteúdo do sonho, do caçador de lagarto por Gradiva é,
portanto, uma representação da relação entre essas duas figuras, a qual Hanold
conhecia em seu inconsciente. A substituição do ‘nosso colega Eimer’ por ‘uma
colega’ permitiu ao sonho expressar a compreensão de Hanold quanto ao fato de
que Gradiva empreendia uma conquista amorosa. Até aqui o sonho fundiu
(condensou, diríamos) duas experiências da véspera em uma única situação, a fim
de exprimir (de forma muito obscura, é verdade) duas descobertas que não tinham
permissão de se tornarem conscientes. Mas podemos prosseguir, tornar o sonho
menos estranho e demonstrar a influência das outras experiências da véspera sobre
a forma assumida pelo sonho manifesto.
Não
estamos satisfeitos com a explicação até agora obtida para a escolha da cena da
caça ao lagarto como núcleo do sonho, e suspeitamos que outros elementos dos
pensamentos oníricos pesaram na ênfase dada ao ‘lagarto’ no sonho manifesto.
Isso é bem fácil de demonstrar. Deve ser lembrado (ver em [1] e [2]) que Hanold
descobrira uma fenda na parede, no ponto onde Gradiva aparentemente
desaparecera - fenda ‘que era suficientemente larga para permitir que uma
pessoa muito esbelta’ passasse. Essa observação levou-o durante o dia a
introduzir uma modificação em seu delírio: Gradiva não sumira nas entranhas da
terra, mas esgueirara-se pela fenda para voltar ao seu túmulo. Em seus
pensamentos inconscientes, ele deve ter dito a si mesmo que descobrira a
explicação natural para o surpreendente desaparecimento da jovem. Mas esse
desaparecimento pela penetração numa fenda estreita não deve ter lembrado o
comportamento dos lagartos? Não estava assim a própria Gradiva agindo como um
ágil lagarto? Ao nosso ver, portanto, a descoberta da fenda contribuiu para
determinar a escolha do elemento ‘lagarto’ no conteúdo manifesto do sonho. A
cena do lagarto no sonho representava tanto essa impressão da véspera quanto o
encontro com o zoólogo, o pai de Zoe.
E que
tal se agora tentássemos procurar no conteúdo do sonho a representação da única
experiência da véspera que ainda não foi explorada, ou seja, a descoberta do
terceiro hotel, o Albergo del Sole? O autor expôs esse episódio com tanta minúcia,
relacionando-lhe tantos elementos, que nos surpreenderia constatar que o mesmo
em nada tenha contribuído para a construção do sonho. Hanold entrou nesse
hotel, que desconhecia devido a sua situação retirada e distante da estação,
para comprar uma garrafa de água gasosa que aliviasse seu mal-estar. O
proprietário aproveitou a oportunidade para exibir suas antiguidades, e
mostrou-lhe um broche dizendo que o mesmo tinha pertencido à jovem pompeana
encontrada junto ao foro nos braços do seu amado. Hanold, que conhecia essa
história, mas até então nunca lhe dera crédito, viu-se compelido por uma força
desconhecida a acreditar na tocante lenda e na autenticidade do broche;
adquiriu-o e deixou o hotel. Ao sair, viu num copo d’água, no peitoril de uma
janela, um galho florido de asfódelo, e tomou essa descoberta como uma
confirmação da autenticidade de sua aquisição. Sentiu uma firme convicção de
que o broche pertencera a Gradiva, e que era ela a jovem morta nos braços do
amado. Dominou o ciúme que se apossara dele decidindo-se a, no dia seguinte,
mostrar o broche à própria Gradiva e averiguar a validade de suas suspeitas.
Sem dúvida é muito curioso esse novo elemento do seu delírio, e seria de
esperar que aparecessem traços do mesmo no sonho de Hanold daquela mesma noite.
Valerá a
pena, certamente, elucidar a origem desse novo acréscimo do delírio, procurando
a descoberta inconsciente que teria sido substituída por esse novo elemento do
delírio. O delírio surgiu sob a influência do proprietário do ‘Hotel do Sol’,
em relação a quem Hanold se comportava de forma tão crédula como se tivesse
sido vítima de uma sugestão hipnótica. O hoteleiro mostrou-lhe um broche que
supostamente teria pertencido a uma jovem soterrada nos braços do amado; e
Hanold, que possuía suficiente espírito crítico para questionar tanto a
veracidade da história como a autenticidade do broche, deixou-se convencer com
toda a facilidade e adquiriu a mais do que duvidosa antiguidade. O motivo que o
levou a proceder assim é incompreensível, e nada nos induz a concluir que a
solução esteja na personalidade do hoteleiro. Contudo, há ainda outro aspecto
enigmático, e dois enigmas geralmente elucidam-se reciprocamente. Ao sair do albergo,
ele viu um galho de asfódelo numa janela, e tomou-o como uma confirmação da
autenticidade do broche. Por que motivo? Felizmente esse problema é de fácil
solução. A flor branca era sem dúvida a mesma que ele dera a Gradiva ao
meio-dia, e ao vê-la na janela do hotel alguma coisa foi confirmada. Não a
autenticidade do broche, mas outro fato que já se tornara claro para ele ao
encontrar aquele albergo cuja existência ignorara. Já na véspera,
comportara-se como se estivesse procurando a suposta Gradiva nos outros dois
hotéis de Pompéia. Ao deparar inesperadamente com um terceiro, no seu
inconsciente ele deve ter exclamado: ‘Então é aqui que ela se hospeda!’
E na saída deve ter acrescentado: ‘Sim, é aqui mesmo! Lá está o ramo de
asfódelo que dei a ela! Aquela deve ser a janela do seu quarto!’ Era essa,
então, a nova descoberta que foi substituída pelo novo delírio, e que não podia
tornar-se consciente, pois seu postulado subjacente de que Gradiva era uma
pessoa viva que ele conhecera não podia tornar-se consciente.
Mas como
se deu essa substituição da nova descoberta pelo delírio? Julgo que a convicção
inerente à descoberta pôde subsistir, ao passo que a própria descoberta,
inadmissível à consciência, foi substituída por outro conteúdo ideativo ligado
a ela por associações de pensamento. Assim, aquela convicção ligou-se a um
conteúdo que na realidade lhe era estranho, conteúdo este que, sob a forma de
um delírio, logrou uma imerecida aceitação. Hanoldtransferiu sua convicção de
que Gradiva era hóspede daquele hotel para outras impressões ali recebidas;
isso conduziu à credulidade diante do hoteleiro, à aceitação da autenticidade
do broche e da lenda dos dois amantes mortos abraçados - mas somente através da
ligação entre o que ouviu no hotel e Gradiva. O ciúme nele latente alimentou-se
desse material, resultando no delírio (o qual, entretanto, contradizia seu
primeiro sonho) de que a jovem morta nos braços do amado era Gradiva e que o
broche por ele adquirido pertencera a ela.
Deve-se
observar que a conversa com Gradiva e a alusão desta (através da referência às
flores) à intenção da conquista amorosa já haviam provocado importantes
modificações em Hanold. Começaram a despertar nele traços de desejo masculino -
componentes da libido -, ainda que ocultos sob pretextos conscientes. Contudo,
o problema da ‘natureza corpórea’ de Gradiva, que o atormentava o dia inteiro
(ver em [1] e [2]), originou-se de uma curiosidade erótica de jovem a respeito
do corpo da mulher, ainda que essa curiosidade estivesse envolvida em uma
questão científica pela insistência consciente sobre a estranha oscilação de
Gradiva entre a vida e a morte. O ciúme era mais um sinal do aspecto cada vez
mais ativo do amor de Hanold; este expressou esse ciúme no início da conversa
que tiveram no dia seguinte, e recorrendo a um novo pretexto tocou no corpo da
jovem - batendo, como era seu hábito no passado.
Chegou,
porém, a hora de indagarmos se o método de construir um delírio, extraído por
nós da narrativa, encontra comprovação em outras fontes, ou se de alguma forma
ele é possível. Nosso conhecimento médico leva-nos a afirmar que esse método é
certamente o método correto, e talvez o único pelo qual o delírio adquire a
convicção inabalável que é uma de suas características clínicas. Essa crença
profunda que o paciente tem em seu delírio não provém de seus elementos falsos,
nem é motivada por uma incapacidade da faculdade de julgamento. Acontece que
existe uma parcela de verdade oculta em todo delírio, um elemento digno de fé,
que é a origem da convicção do paciente, a qual, portanto, até certo ponto é
justificada. Esse elemento verdadeiro, porém, há muito foi reprimido. Se, de
forma distorcida consegue chegar à consciência, dá-se uma intensificação da
convicção que lhe está ligada, como uma espécie de compensação, e que se liga
ao substituto distorcido da verdade reprimida, protegendo-o de quaisquer
ataques críticos. É como se a convicção se deslocasse da verdade consciente
para o erro consciente que está ligado a ela, ali fixando-se justamente em
conseqüência desse deslocamento. No delírio que se forma a partir do primeiro
sonho de Hanold encontramos um exemplo de deslocamento semelhante, embora não
idêntico, ao que descrevemos. Na verdade, esse método através do qual a
convicção surge no caso de um delírio basicamente em nada difere do método
através do qual a convicção se forma em casos normais, onde a repressão não faz
parte do quadro. Todos nós emprestamos nossa convicção a conteúdos de
pensamento em que se combinam a verdade e o erro, deixando-a estender-se da
primeira ao último. É como se a convicção se propagasse da verdade ao erro a
ela ligado, protegendo-o das merecidas críticas, embora não tão vigorosamente
como no caso de um delírio. Assim, também na psicologia normal, ser bem
relacionado - ‘ter influência’, por assim dizer - pode substituir um valor
real.
Voltarei
agora ao sonho para examinar um interessante pormenor que estabelece uma
conexão entre duas causas que o provocaram. Gradiva salientara uma espécie de
contraste entre os botões brancos de asfódelo e as rosas vermelhas. O
reencontro do ramo de asfódelo na janela do Albergo del Sole constituiu para
Hanold um importante indício que corroborava sua descoberta inconsciente, que
encontrou expressão no novo delírio. A isso acrescentou-se o fato de que a rosa
vermelha presa ao vestido da simpática recém-casada auxiliou Hanold a ver
inconscientemente a natureza da relação que a unia a seu companheiro, tornando
possível o aparecimento da jovem no sonho como a ‘colega’.
Mas
certamente irão indagar onde, no conteúdo manifesto do sonho, encontramos algo
que indique e substitua a descoberta para a qual, como vimos, o novo delírio de
Hanold era um substituto - a descoberta de que Gradiva e seu pai estavam
hospedados naquele hotel menos conhecido de Pompéia, o Albergo del Sole? Está
tudo no sonho, e não muito distorcido; hesito, entretanto, em apontá-lo por
saber que mesmo os leitores que até aqui me seguiram com paciência irão
rebelar-se vigorosamente contra minhas tentativas de interpretação. A
descoberta de Hanold é anunciada completamente no sonho, mas sob um disfarce
tão engenhoso que forçosamente passa desapercebida. Encontra-se oculta sob um
jogo de palavras, uma ambigüidade. ‘Sentada em algum lugar no sol, Gradiva…’
Acertadamente relacionamos essas palavras ao local onde Hanold encontrou o
zoólogo, o pai da jovem. Mas esse ‘no sol’ não poderia significar ‘no Sol’,
isto é, que Gradiva estava no Albergo del Sole, o Hotel do Sol? Esse ‘em algum
lugar’, que não descreve a situação do encontro com o pai dela, não teria esse
caráter tão falsamente vago justamente por esconder uma indicação precisa do
paradeiro de Gradiva? Minha longa experiência na interpretação de sonhos reais
me garante ser este o sentido dessa ambigüidade. Contudo, eu não teria ousado
apresentar a meus leitores essa interpretação, se o autor não viesse aqui em meu
auxílio. Ele coloca na boca da jovem o mesmo jogo de palavras quando, no dia
seguinte, ela viu o broche: ‘Acaso o encontraste no sol? pois o sol faz coisas
semelhantes.’ (ver em [1]) Ao perceber que o rapaz não entendera o significado
de suas palavras, ela explicou que se referia ao Hotel do Sol, que chamavam de
‘Sole’, e onde já vira a suposta antiguidade.
Vamos
agora tentar substituir o ‘singularmente insensato’ sonho de Hanold pelos
pensamentos inconscientes que estão por trás do mesmo e que são tão diversos
dele. Talvez esses pensamentos possam ser expressos da seguinte forma: ‘Ela
está hospedada no “Sol” com o pai. Por que ela se diverte comigo dessa maneira?
Estará apenas brincando, ou será que me ama e me quer como esposo?’ Certamente
ainda durante o sono veio uma resposta que punha de lado essa última
possibilidade como ‘completa insensatez,’ juízo que na aparência se estendia a
todo o sonho manifesto.
Alguns
leitores mais críticos irão, muito justamente, conjeturar sobre a origem da
interpolação (até aqui não justificada) da referência a estar sendo
ridicularizado por Gradiva. A resposta a essa pergunta é dada em A Interpretação
de Sonhos, que explica que, se nos pensamentos oníricos há zombaria,
menosprezo ou escárnio, isso é expresso pela forma insensata do sonho
manifesto, pelo absurdo do sonho. Esse absurdo não significa uma paralisação da
atividade psíquica, constituindo apenas um método de representação utilizado
pela elaboração onírica. Como vem acontecendo nos pontos particularmente difíceis,
também aqui o autor acorre em nosso auxílio. Esse sonho sem sentido teve um
curto epílogo, no qual surgiu um pássaro que, emitindo um pio sarcástico, se
apoderou do lagarto. Hanold, porém, já ouvira um som semelhante, logo após o
desaparecimento de Gradiva (ver em [1]). Na verdade esse som sarcástico era o
riso de Zoe ao se ver livre do seu lúgubre papel de fantasma. Portanto, Gradiva
realmente rira dele. Contudo, a imagem onírica do pássaro arrebatando em seu
bico o lagarto era provavelmente uma recordação de um sonho anterior, no qual
Apolo do Belvedere afastava-se carregando a Vênus Capitolina (ver em [1]).
Talvez
para alguns leitores a tradução da cena da caça ao lagarto como um convite
amoroso não seja de todo convincente. Um novo argumento favorável à sua
validade pode ser fornecido pela consideração do diálogo com a amiga
recém-casada, no qual Zoe confirmou as suspeitas de Hanold - ao mencionar sua
anterior convicção de poder ‘desencavar’ algo de interessante em Pompéia. Ela
como que invadia o campo da arqueologia, da mesma forma que, utilizando o
símile da caça ao lagarto, ele invadia o campo da zoologia; assim, os dois como
que se lançavam um para o outro, cada qual tentando assumir o caráter do outro.
Nesse
ponto parece que terminamos a interpretação do segundo sonho. Fomos capazes de
compreender tanto esse como o anterior apoiando-nos na pressuposição de que o
sonhador sabe, em seus pensamentos inconscientes, de tudo aquilo que esqueceu
em seus pensamentos conscientes, e de que nos primeiros avalia corretamente o
que nos últimos transforma em delírio. No curso de nossa argumentação fomos,
sem dúvida, obrigados a fazer afirmações que, por serem novas, devem ter
parecido muito estranhas ao leitor; e talvez amiúde este tenha suspeitado que
atribuímos ao autor intenções que eram só nossas. Estou ansioso por fazer o
possível para afastar essa suspeita, revendo com prazer e maior minúcia um dos
pontos mais delicados: o uso de palavras e frases ambíguas, tais como ‘Sentada
em algum lugar no sol, Gradiva…’
Quem
quer que leia Gradiva certamente notará a freqüência com que o autor
coloca frases ambíguas na boca de seus dois personagens principais. Ao
pronunciá-las Hanold não tinha consciência dessa ambigüidade, e somente a
heroína lhes percebia o segundo sentido. Quando, por exemplo, ao ouvir as
primeiras palavras da jovem, ele retrucou: ‘Já sabia como soaria a tua voz’
(ver em [1]), ignorando-lhe o sonho, Zoe perguntou como isso era possível, já
que ele nunca a ouvira falar. Em sua segunda conversa, por um momento ela põe
em dúvida o delírio dele, diante da afirmação de a ter reconhecido à primeira
vista (ver em [2]). Zoe não pôde evitar de ver nessas palavras um
reconhecimento da amizade infantil de ambos (dedução correta no que diz respeito
ao inconsciente dele), ao passo que ele naturalmente não percebeu esse sentido
da própria exclamação, julgando que a mesma se relacionava somente ao delírio
que o dominava. Por outro lado, as palavras da jovem, cuja personalidade, numa
total oposição ao delírio de Hanold, demonstrava uma extrema lucidez e clareza
de espírito, assumem muitas vezes uma ambigüidade intencional. Um dos
sentidos dessas palavras ajusta-se ao delírio de Hanold, dirigindo-se à sua
compreensão consciente, mas o outro sentido ultrapassa o delírio e em geral
fornece-nos sua tradução para a verdade inconsciente que ele representa. Essa
capacidade de dar expressão ao delírio e à verdade numa mesma frase é um
triunfo do engenho e do espírito.
A fala
em que Zoe explica a situação à amiga e, ao mesmo tempo, livra-se da importuna
(ver a partir de [1]), está cheia de ambigüidades desse tipo. Na realidade,
trata-se de uma fala feita pelo autor e dirigida mais ao leitor do que à
‘colega’ recém-casada de Zoe. Nos diálogos de Zoe com Hanold a ambigüidade é
atingida por Zoe através do mesmo simbolismo encontrado no primeiro sonho de
Hanold - em que o soterramento equivale à repressão e a infância a Pompéia.
Assim, em suas palavras a jovem, por um lado, mantém-se fiel ao papel que lhe
foi dado pelo delírio de Hanold e, por outro lado, alude às circunstâncias
reais a fim de despertar no inconsciente de Hanold a compreensão das mesmas.
‘Há
muito que me acostumei a estar morta.’ (90 (ver em [1]).) ‘Essas flores do
esquecimento são mais apropriadas para mim.’ [Ibid.] Nessas frases há um leve
prenúncio das censuras a que mais tarde a jovem deu vazão na reprimenda em que
o comparou a um arqueoptérix. (ver a partir de [2]) ‘Tu te referes ao fato de
que alguém tenha de morrer para chegar a estar vivo; mas sem dúvida isso tem de
ser assim mesmo para os arqueólogos.’ (ver em [3]) Essas últimas palavras
pronunciadas por ela, após o desvanecimento do delírio, são uma chave para suas
falas ambíguas. Mas foi ao perguntar: ‘Não te recordas que já compartilhamos
uma vez de uma refeição semelhante há dois mil anos atrás?’ (118 (ver em [4]).)
que ela utilizou o simbolismo com maior felicidade. Aqui são evidentes a
substituição da infância pelo passado histórico e o esforço para despertar as
lembranças daquela.
Mas qual
é a origem dessa singular preferência em Gradiva por falas ambíguas?
Parece-nos não ser uma casualidade, mas uma conseqüência necessária das
premissas da história. Trata-se da contraparte da dupla determinação dos
sintomas, já que as falas em si constituem sintomas e, como eles, surgem de
conciliações entre o consciente e o inconsciente. Simplesmente acontece que
essa dupla origem é mais evidente em falas do que em atos. E quando acontece
de, devido à natureza maleável do material verbal, essa dupla intenção que está
por trás da fala poder ser expressa com êxito pelas mesmas palavras, temos o
que denominamos de ‘ambigüidade.’
No
decorrer do tratamento psicoterapêutico de um delírio ou de uma perturbação
análoga, o paciente com freqüência produz ambigüidades desse tipo, como novos
sintomas passageiros, e às vezes o próprio médico pode servir-se delas. Pode
também dessa forma, através do sentido pretendido para o consciente do
paciente, despertar o conhecimento do sentido que se aplica ao inconsciente.
Sei por experiência própria que o papel desempenhado pela ambigüidade pode
provocar violenta objeção entre os que desconhecem o assunto, sendo capaz
também de provocar sérios mal-entendidos. Mas mesmo assim o autor agiu
certamente ao reservar em sua criação um lugar para esse aspecto característico
do que ocorre na formação de sonhos e delírios.
A
emergência de Zoe enquanto médica, como já assinalei, despertou em nós um novo
interesse. Ansiamos por saber se uma cura semelhante à por ela realizada em
Hanold é possível ou mesmo plausível, e se o autor expôs as condições do
desaparecimento do delírio tão corretamente como mostrou as de sua gênese.
Nesse
ponto certamente surgirá uma opinião que irá negar qualquer interesse geral ao
caso apresentado pelo autor, assim como contestar a existência de qualquer
problema que necessite de solução. Hanold, dirão, não teve outra alternativa
senão a de abandonar seu delírio quando a suposta ‘Gradiva’, que constituía
objeto do mesmo, mostrou-lhe a incorreção de todas as hipóteses, fornecendo-lhe
a explicação natural dos enigmas - por exemplo, o fato de ela saber o nome
dele. Esse deveria ser o término lógico da questão, mas como a jovem revelara a
ele seu amor, o autor, sem dúvida para agradar às suas leitoras, arranjou os
fatos para que sua história, sob outros aspectos bastante interessante, tivesse
o usual final feliz do casamento. Argumentarão também que seria mais lógico e
igualmente possível se o jovem cientista, ao reconhecer os seus enganos, se
despedisse da dama com corteses agradecimentos e justificasse sua recusa do
amor dela pelo fato de que, enquanto era capaz de se interessar vivamente por
antigas esculturas femininas de mármore e bronze ou pelas mulheres que lhe
haviam servido de modelo, nenhuma serventia possuíam para ele suas
contemporâneas de carne e osso. Em resumo, o autor, de forma totalmente
arbitrária, acrescentou uma história de amor à sua fantasia arqueológica.
Ao
rejeitarmos como inaceitáveis essas concepções, observaremos em primeiro lugar
que os primórdios da transformação de Hanold não foram caracterizados apenas
pelo abandono do delírio. Simultaneamente, ou mesmo antes do desaparecimento do
delírio, ressurgiu no herói uma inconfundível ânsia de amar, que o levou, como
seria de esperar, a cortejar a jovem que o libertara de seu delírio. Já
ressaltamos os pretextos e os disfarces sob os quais sua curiosidade sobre a
‘natureza corpórea’ dela, seu ciúme e seu brutal instinto masculino de domínio
foram expressos em seu delírio, depois que seu desejo erótico reprimido deu
origem ao primeiro sonho. Como nova confirmação disso podemos lembrar que, na
noite depois do seu segundo encontro com Gradiva, ele sentiu pela primeira vez
simpatia por uma mulher viva, embora, como concessão ao seu antigo horror pelos
casais em lua-de-mel, não a reconhecesse como sendo recém-casada. Na manhã
seguinte, entretanto, ao surpreender casualmente a atitude amorosa entre a
jovem e seu suposto irmão, retirou-se reverentemente, como se houvesse
interrompido algum ato sagrado (ver em [1]). Esquecera o quando menosprezara
todos aqueles ‘Edwins e Angelinas’ e recuperara o respeito pelo lado erótico da
vida.
O autor
estabelece assim uma íntima ligação entre o desvanecimento do delírio e o
ressurgimento da ânsia de amar, preparando o caminho para o inevitável
desenlace amoroso. Ele conhece a natureza básica do delírio melhor do que seus
críticos: sabe que o delírio resultou da combinação de um componente do desejo
amoroso com a resistência a esse desejo, e deixa que a jovem encarregada da
cura se aperceba do elemento que lhe é agradável. Foi somente esse conhecimento
que fez com que ela se decidisse a dedicar-se ao tratamento; foi somente a
certeza de ser amada pelo jovem que a induziu a confessar-lhe seu amor. O
tratamento consistiu em dar-lhe acesso, pelo exterior, às lembranças reprimidas
que ele não conseguia atingir no seu interior; contudo, o tratamento
frustar-se-ia se durante o mesmo a terapeuta não houvesse levado em conta os
sentimentos dele, e se sua tradução final do delírio não houvesse sido a
seguinte: ‘Olha, tudo isso significa apenas que tu me amas.’
O
processo que o autor faz Zoe adotar na cura do delírio do seu companheiro de
infância mostra, mais do que uma grande semelhança, uma total conformidade em
sua essência com o método terapêutico que o Dr. Josef Breuer e eu introduzimos
na medicina em 1895, e a cujo aperfeiçoamento desde então me tenho dedicado.
Esse método de tratamento, a que inicialmente Breuer chamou de ‘catártico’, mas
que prefiro denominar de ‘psicanalítico’, consiste, aplicado a pacientes que
sofrem de perturbações semelhantes ao delírio de Hanold, em lhes fazer chegar à
consciência, até certo ponto forçadamente, o inconsciente cuja repressão
provocou a enfermidade - exatamente como Gradiva fez com as lembranças reprimidas
da amizade de infância que a unira a Hanold. É verdade que para ela essa tarefa
era mais fácil do que para um médico: por muitas razões a sua posição podia ser
considerada ideal para isso. O médico, que não tem conhecimento anterior do
paciente e que não possui lembrança consciente do que atua inconscientemente
nesse paciente, precisa utilizar uma técnica complexa para compensar essa
desvantagem. Deve aprender a deduzir com segurança, das comunicações e
associações conscientes do paciente, o que neste está reprimido, e a descobrir
o inconsciente dele através de suas palavras e seus atos conscientes. Ele então
obtém algo semelhante ao que Norbert Hanold percebeu no fim da história, quando
traduziu o nome ‘Gradiva’ a partir de ‘Bertgang’. (ver em [1]) Ao serem
identificadas as suas origens, a perturbação desaparece; da mesma forma, a
análise produz simultaneamente a cura.
Mas a
semelhança entre o processo empregado por Gradiva e o método analítico de
psicoterapia não se limita a esses dois aspectos - tornar consciente o que foi
reprimido e fazer coincidir o esclarecimento e a cura. Estende-se também ao que
consideramos o ponto fundamental de toda a modificação: o despertar dos
sentimentos. Toda perturbação semelhante ao delírio de Hanold, o que em termos
científicos chamamos habitualmente de ‘psiconeurose’, tem como precondição a
repressão de uma parcela da vida instintual ou, já podemos afirmar, do instinto
sexual. A cada tentativa de fazer chegar à consciência as causas reprimidas e
inconscientes da doença, o componente instintual em questão é necessariamente
despertado para uma nova luta com as forças repressoras, com as quais só entra
em acordo no resultado final, geralmente acompanhado de violentas manifestações
de reação. O processo de cura é realizado numa reincidência no amor, se no
termo ‘amor’ combinamos todos os diversos componentes do instinto sexual; tal
reincidência é indispensável, pois os sintomas que provocaram a procura de um
tratamento nada mais são do que precipitados de conflitos anteriores
relacionados com a repressão ou com o retorno do reprimido, e só podem ser
eliminados por uma nova ascensão das mesmas paixões. Todo tratamento
psicanalítico é uma tentativa de libertar amor reprimido que na conciliação de
um sintoma encontrara escoamento insuficiente. Na verdade, o ponto culminante
da semelhança entre Gradiva está no fato de que também na psicoterapia
analítica a paixão que ressurge, seja ódio ou amor, invariavelmente escolhe
como objeto a figura do médico.
É nesse
ponto que começam as diferenças, as quais fazem do caso de Gradiva um caso
ideal que não pode ser igualado pela técnica médica. Gradiva podia corresponder
ao amor que passou do inconsciente à consciência, mas o médico não pode fazer
isso. Gradiva fora objeto do antigo amor reprimido; sua figura constituía uma
meta desejável para a corrente amorosa liberada. O médico era um estranho e
deve esforçar-se para voltar a sê-lo depois da cura; geralmente fica embaraçado
quanto a indicar aos pacientes curados como empregar na vida real a capacidade
de amar que recuperaram. Para descrever os meios e os substitutos utilizados
pelo médico para aproximar-se com maior ou menor êxito do modelo de cura pelo
amor que nos foi mostrado pelo autor, iríamos afastar-nos demasiado da tarefa
que nos propusemos.
E
passemos agora à pergunta final, da qual mais de uma vez fugimos. (ver em [1] e
[2]) Nossas concepções sobre a repressão, a gênese de delírios e perturbações
correlatas, a formação e solução de sonhos, o papel da vida erótica, o método
através do qual tais perturbações são curadas está longe de ser endossado por
todos os cientistas, e muito menos aceito pela maioria dos homens cultos. Se a
compreensão interna (insight) que possibilitou ao autor a criação de sua
‘fantasia’ de tal modo que pudesse ser analisada por nós como se fosse um caso
clínico verdadeiro foi da natureza de um conhecimento, gostaríamos de conhecer
as fontes desse conhecimento. Um membro do nosso grupo - o mesmo que, como eu
disse no início, estava interessado nos sonhos de Gradiva e em sua
possível interpretação (ver em [1]) dirigiu-se ao autor para lhe perguntar se
conhecia alguma coisa de tais teorias científicas. Como era de esperar, o autor
respondeu negativamente, e de maneira um tanto brusca. A inspiração para a Gradiva,
disse ele, fora sua própria imaginação, e ela lhe dera grande prazer. Aqueles
que não gostassem da obra, acrescentou, deveriam deixá-la de lado. Na verdade,
o autor nem de longe suspeitava o quanto havia agradado a seus leitores.
É bem
possível que a desaprovação do autor não pare aí. Talvez ele também negue ter
qualquer conhecimento das regras a que obedeceu, segundo nossa exposição, e
repudie os propósitos que reconhecemos em sua obra. Se for este o caso, que não
julgo improvável, só existem duas explicações possíveis. Talvez tenhamos
produzido apenas uma caricatura de uma interpretação, atribuindo a uma inocente
obra de arte propósitos desconhecidos pelo autor, e demonstrando assim, mais
uma vez, como é fácil vermos em toda a parte aquilo que se procura e que está
ocupando nossa mente - possibilidade da qual a história da literatura nos
fornece os exemplos mais estranhos. Que o leitor decida agora se essa
explicação o satisfaz. Naturalmente preferimos optar pela outra alternativa.
Acreditamos que o autor não necessitava conhecer essas regras e propósitos,
podendo então tê-las refutado de boa fé, mas acreditamos também que nada
descobrimos em sua obra que ali não exista. Provavelmente bebemos na mesma
fonte e trabalhamos com o mesmo objeto, embora cada um com seu próprio método.
A concordância entre nossos resultados parece garantir que ambos trabalhamos
corretamente. Nosso processo consiste na observação consciente de processos
mentais anormais em outras pessoas, com o objetivo de poder deduzir e mostrar suas
leis. Sem dúvida o autor procede de forma diversa. Dirige sua atenção para o
inconsciente de sua própria mente, auscultando suas possíveis manifestações, e
expressando-as através da arte, em vez de suprimi-las por uma crítica
consciente. Desse modo, experimenta a partir de si mesmo o que aprendemos de
outros: as leis a que as atividades do inconsciente devem obedecer. Mas ele não
precisa expor essas leis, nem dar-se claramente conta delas; como resultado da
tolerância de sua inteligência, elas se incorporam à sua criação. Descobrirmos
essas leis pela análise de sua obra, da mesma forma que as encontramos em casos
de doenças reais. A conclusão evidente é que ambos, tanto o escritor como o
médico, ou compreendemos com o mesmo erro o inconsciente, ou o compreendemos
com igual acerto. Essa conclusão é muito valiosa para nós, e para chegar a ela
valeu a pena investigar pelos métodos da psicanálise médica o modo como são
representados a formação e a cura dos delírios, assim como os sonhos, na Gradiva
de Jensen.
Parece
que chegamos ao fim. Mas um leitor atento poderia advertir-nos que no início
(ver em [1]) afirmamos serem os sonhos a representação da realização de um
desejo, e não oferecemos prova alguma dessa asserção. Responderemos que essas
páginas devem mostrar quão pouco justificável é tentar abranger as nossas
explicações a respeito dos sonhos com a simples fórmula de que são a realização
de um desejo. Mantemos, entretanto, nossa afirmação, e podemos prová-la com
facilidade nos sonhos de Gradiva. Os pensamentos oníricos latentes -
sabemos agora o que são - podem ser dos mais diversos tipos; em Gradiva
são resíduos diurnos, pensamentos que passaram desapercebidos e não foram
trabalhados pelas atividades mentais da vida de vigília. Mas para que deles
resulte um sonho é necessária a cooperação de um desejo (geralmente
inconsciente); isso fornece a força motivadora para a construção do sonho,
enquanto o material é fornecido pelos resíduos diurnos. Na formação do primeiro
sonho de Norbert Hanold, dois desejos competiam entre si; um deles era
consciente, enquanto o outro era inconsciente e atuava sob a repressão. O
primeiro, muito compreensível num arqueólogo, era o desejo de ter testemunhado
a catástrofe do ano 79 D.C. Que sacrifícios não faria um arqueólogo para que
esse desejo fosse realizado sem ser em sonhos! O outro desejo, o outro
construtor do sonho, era de natureza erótica: de forma grosseira e incompleta
podemos dizer que era um desejo de estar presente quando a jovem que ele amava
se deitou para dormir. Foi a rejeição desse desejo que transformou o sonho em
sonho de ansiedade. Os desejos que constituíam as forças motivadoras do segundo
sonho talvez sejam menos evidentes, mas se nos recordarmos de sua tradução não
hesitaremos em classificá-los como eróticos. O desejo de ser aprisionado pela
jovem que amava, de obedecer seus desejos e submeter-se a ela - pois assim
podemos explicar o desejo oculto pela caça ao lagarto - era na verdade de
caráter passivo e masoquista. No dia seguinte Hanold agrediu a jovem, como se
então o dominasse uma tendência erótica inversa… Mas paremos por aqui, ou
poderemos esquecer que Hanold e Gradiva são apenas criações da mente de seu
autor.
PÓS-ESCRITO À SEGUNDA EDIÇÃO (1912)
Nos
cinco anos que decorreram desde o término deste estudo, a investigação
psicanalítica encorajou-se a examinar as criações dos escritos imaginativos
tendo em vista outro propósito. Não mais procura nelas somente uma confirmação
das descobertas feitas em seres humanos neuróticos e banais; também quer
conhecer o material de lembranças e impressões no qual o autor baseou a obra, e
os métodos e processos pelos quais converteu esse material em obra de arte.
Essas perguntas podem ser respondidas com maior facilidade no caso de
escritores que (como Wilhelm Jensen, falecido em 1911) costumavam entregar-se
inteiramente à sua imaginação pela simples alegria de criar. Pouco depois da
publicação do meu exame analítico de Gradiva, tentei interessar seu idoso autor
por essas novas tarefas da pesquisa psicanalítica. Ele, porém, recusou sua
cooperação.
Mais
tarde um amigo chamou minha atenção para dois outros contos do autor, com os
quais Gradiva pode ter tido uma relação genética e que constituem
estudos preliminares ou tentativas anteriores de uma solução poética
satisfatória do mesmo problema da psicologia do amor. A primeira dessas
histórias, ‘Der rote Schirm’, lembra Gradiva, não só pela recorrência de
pequenos motivos, como as flores brancas dos mortos, um objeto esquecido (o
caderno de esboços de Gradiva) e a importância de pequenos animais (a borboleta
e o lagarto em Gradiva), mas também principalmente pela repetição da
situação principal: a aparição ao sol ardente do meio-dia de uma jovem falecida
(ou supostamente falecida). Em ‘Der rote Schirm’ a cena da aparição é um castelo
em ruínas, tal como as ruínas das escavações de Pompéia em Gradiva. O
outro conto, ‘Im gotischen Hause’, não se assemelha a Gradiva ou a ‘Der
rote Schirm’ no conteúdo manifesto, mas o fato de lhe ter sido atribuída uma
unidade externa com essa última, tendo as duas histórias sido publicadas num
único volume sob um mesmo título, indica inegavelmente a existência de um
sentido latente comum. É fácil perceber que essas três histórias tratam do
mesmo tema: o desenvolvimento do amor (em ‘Der rote Schirm’, a inibição do
amor) como conseqüência posterior de uma íntima ligação infantil de natureza
fraternal. Através de uma resenha da condessa Eva Baudissin (no diário vienense
Die Zeit, de 11 de fevereiro de 1912) soube que o último romance de
Jensen, Fremdlinge unter den Menschen, que contém muito material da
própria infância do autor, é a história de um homem que ‘vê uma irmã na mulher
que ele ama.’ Em nenhuma dessas duas histórias anteriores existem vestígios do motivo
principal de Gradiva: o singular e gracioso andar da jovem com a postura
quase perpendicular do pé.
O relevo
da jovem que caminha desse modo, a qual Jensen diz ser romana e à qual dá o
nome de ‘Gradiva’, na verdade pertence ao período áureo da arte grega. Está no
Museo Chiaramonti do Vaticano (nº 644) e foi restaurado e interpretado por
Hauser [1903]. Da união de ‘Gradiva’ com outros fragmentos, existentes em
Florença e Munique, foram obtidos dois relevos, cada qual representando três
figuras, identificadas como as Horas, as deusas da vegetação, e as divindades
do orvalho fertilizador que são aliadas a elas.
A PSICANÁLISE
E A DETERMINAÇÃO DOS FATOS NOS PROCESSOS JURÍDICOS (1906)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
TATBESTANDSDIAGNOSTIK UND PSYCHOANALYSE
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1906 Arch. Krim. Anthrop., 26 (1), 1-10.
1909 S.K.S.N., 2, 111-21. (1912, 2ª ed.; 1921,
3ª ed.)
1924 G.S.
10, 197-209.
1941 G.W.
7, 3-15.
(b)
TRADUÇÕES INGLESAS:
‘The Testimony of Witnesses and Psychoanalysis’
1920 S.P.H., 216-25. (Somente na
3ª ed.) (Trad. de A.A. Brill.)
‘Psycho-Analysis and the Ascertaining of Truth in
Courts of Law’
1924 C.P., 2, 13-24. (Trad. de E.B.M. Herford.)
A
presente tradução, com título alterado, baseia-se na que foi publicada em 1924.
A pedido
do professor Löffler (catedrático de jurisprudência em Viena), esta conferência
foi pronunciada antes do seminário desse professor na Universidade, em junho de
1906. Existe uma certa confusão a respeito da data de publicação. O número do
periódico em que esta conferência apareceu traz na primeira página a data de 21
de dezembro de 1907. Há aí, certamente, um erro de impressão para ‘1906’, pois
os números seguintes trazem as datas de 6 de março de 1907 e 29 de abril 1907.
Esta
conferência possui algum interesse histórico, pois é a primeira vez que num
trabalho publicado de Freud se menciona o nome de Jung (ver em [1]). Freud
começara a corresponder-se com Jung há apenas dois meses quando pronunciou esta
conferência, vindo a conhecê-lo pessoalmente somente em fevereiro do ano
seguinte.
Neste
trabalho evidencia-se o impacto imediato de Jung. O propósito desta conferência
foi apresentar aos estudantes vienenses as experiências de associação e a teoria
dos complexos de Zurique. Os estudos de Zurique haviam começado a aparecer em
periódicos dois anos antes (Jung e Riklin, 1904), e o próprio Jung publicara
dois ou três estudos sobre a aplicação de seu processo à prova legal apenas
alguns meses antes de Freud pronunciar esta conferência (e. g. Jung, 1906,
referido em [1]).
Mais
tarde, após o afastamento de Jung, Freud, em suas notas sobre ‘A História do
Movimento Psicanalítico’ (1914), reduziu a importância tanto das experiências
de associação como da teoria dos complexos (ver em [1], 1974.) Mesmo neste
trabalho, há uma certa crítica oculta sob a aprovação. Freud faz questão de
mostrar que as descobertas de Zurique não passam, na verdade, de aplicações
particulares de princípios básicos da psicanálise, indicando no penúltimo
parágrafo o perigo de tirar conclusões apressadas dos resultados dos testes de
associação.
Como
esta é a primeira vez que nos trabalhos publicados de Freud aparece o termo de
Zurique ‘complexo’, cabem aqui alguns comentários sobre o assunto. As primeiras
experiências sistemáticas de associação foram realizadas por Wundt, e mais
tarde foram introduzidas na psiquiatria por Kräpelin e particularmente por
Aschaffenburg. Sob a direção de Bleuler, então diretor do hospício público
Burghölzli de Zurique, e de Jung, seu primeiro assistente, foi levada a cabo
uma série de experiências análogas, cujas conclusões foram publicadas a partir
de 1904. Mais tarde foram reunidas em dois volumes (1906-1909) por Jung. Com
exceção de uma nova classificação das formas assumidas pelas reações verbais às
palavras-estímulo, o principal interesse das descobertas de Zurique residia na
ênfase dada à influência de um determinado fator sobre as reações. Esse fator
era descrito na primeira dessas publicações (Jung e Riklin, 1904) como um
‘complexo ideativo com colorido emocional’. Numa nota de rodapé (ibid., 57) os
autores o explicam como ‘a totalidade das idéias relativas a um evento de
especial colorido emocional’, acrescentando que nesse sentido passarão a usar o
termo ‘complexo’.
Note-se
que não há qualquer referência direta a se essas idéias são ou inconscientes ou
reprimidas, e fica claro no que se segue (e. g. ibid., 74) que um ‘complexo’
pode ou não constituir-se de material reprimido. Salvo sua conveniência como
abreviatura, não parece haver mérito particular na palavra ‘complexo’ assim
definida, sendo pouco provável que tenha sido esta, na verdade, a primeira vez
em que foi utilizada em tal sentido. Ernest Jones revela-nos (1955, 34 e 127)
que Ziehen, o conhecido psiquiatra berlinense, afirmou ter dado origem a seu
uso. Mas na verdade a palavra ocorre três vezes, com o que parece ser
exatamente o mesmo sentido, numa obra anterior de Freud - o caso de Frau Emmy
von N. nos Estudos sobre a Histeria (1895d), ver em [1], 1974;
enquanto Breuer, na mesma obra (ver em [2]), parece dar mais ênfase ao fator
inconsciente do que essas primeiras definições de Zurique, ao escrever que ‘as
idéias que são despertadas, mas não entram na consciência… às vezes… acumulam e
formam complexos - camadas mentais extraídas da consciência.’ Quando mais tarde
o termo se popularizou, e não somente dentro da psicologia, já englobava como
elemento essencial de sua conotação o fato de as idéias em questão serem
‘extraídas da consciência’, ou seja, ‘reprimidas’.
Os
contatos posteriores de Freud com a jurisprudência foram poucos e espaçados. O
terceiro de seus estudos sobre tipos de caráter (1916d) relaciona-se
diretamente com a psicologia do crime. Em duas outras ocasiões ele escreveu
relatórios acerca de casos criminais. Em uma delas (1931d) pediram-lhe
que examinasse o parecer de um especialista num caso de assassinato, e na outra
fez um memorando para a defesa num caso de estupro (Jones, 1957, 93). Esse
memorando (escrito em 1922) se perdeu. Nos dois casos expôs sua reprovação a
uma aplicação inepta das teorias psicanalíticas nos processos legais.
A PSICANÁLISE E A DETERMINAÇÃO DOS FATOS NOS PROCESSOS JURÍDICOS
SENHORES:
Estamos
cada vez mais convictos da falta de fidedignidade das declarações feitas por
testemunhas, sobre as quais, entretanto, se apóiam tantas condenações nos
tribunais. Esse fato levou-os, futuros juízes e defensores, a se interessar por
um novo método de investigação, que se propõe a induzir o próprio réu a
estabelecer sua culpa ou inocência por meio de sinais objetivos. Esse método
consiste numa experiência psicológica e se baseia em pesquisas da mesma ordem.
Está estreitamente ligado a certas concepções que só muito recentemente
chegaram ao conhecimento da psicologia médica. Sei que os senhores, por meio do
que poderíamos chamar de ‘exercícios simulados’, já se ocupam em testar as
possibilidades e a utilização desse novo método, e aceitei com prazer o convite
do professor Löffler, que preside este seminário, para explicar-lhes de forma
completa a relação entre esse método e a psicologia.
Todos
conhecem aquele jogo de salão, também apreciado pelas crianças, em que alguém
deve acrescentar a uma palavra escolhida ao acaso uma outra, sendo o resultado
uma palavra composta; por exemplo ‘steam‘ (vapor) e ‘ship‘
(navio), dando ‘steam-ship‘ (navio a vapor). A ‘experiência de
associação’ introduzida na psicologia pela escola de Wundt nada mais é do que
uma modificação desse jogo infantil, do qual se suprime uma regra.
A
experiência é a seguinte: apresenta-se uma palavra (denominada
‘palavra-estímulo’) ao indivíduo que se está submetendo à experiência e ele
deverá responder com uma outra palavra (denominada ‘reação’) o mais depressa
possível, não havendo nenhuma restrição em sua escolha dessa reação. Devem ser
observados os seguintes detalhes: o tempo exigido para a ‘reação’ e a relação
- que pode ser de diversos tipos - entre a palavra-estímulo e a palavra-reação.
Como era de esperar, essas experiências não produziram inicialmente muitos
frutos, tendo sido realizadas sem uma finalidade definida e sem uma diretriz
pela qual se pudessem avaliar os resultados. Essas ‘experiências de associação’
só se tornaram significativas e proveitosas quando, em Zurique, Bleuler e seus
discípulos, especialmente Jung, começaram a lhes dedicar atenção. O valor das
experiências realizadas pelo grupo deriva-se de terem partido da hipótese de
que a reação à palavra-estímulo não podia ser fruto do acaso, mas devia ser
determinada pelo conteúdo ideativo presente na mente do sujeito que reagia.
Habituamo-nos
a denominar de ‘complexo’ todo conteúdo ideativo que é capaz de influenciar a
reação à palavra-estímulo. Essa influência ocorre quando a palavra-estímulo
toca diretamente o complexo, ou quando o complexo estabelece contato com a
palavra através de elos intermediários. A determinação da reação é realmente um
fato muito singular, e a literatura do assunto reflete o indisfarçável assombro
que a mesma tem provocado. Mas não há como duvidar de sua veracidade, pois, via
de regra, perguntando ao próprio sujeito as razões de sua reação, é possível
expor o complexo atuante e esclarecer relações que de outro modo não seriam
inteligíveis. Exemplos como os que Jung nos apresenta (1906, 6 e 8-9) fazem-nos
duvidar da incidência da casualidade nos eventos mentais ou de sua pretensa
arbitrariedade.
Façamos
agora um breve exame dos antecedentes dessa concepção de Bleuler e Jung de que
a reação do sujeito submetido a exame é determinada pelo seu complexo.
Publiquei em 1901 uma obra na qual demonstrei serem de determinação rígida toda
uma série de atos que se acreditava imotivados, contribuindo assim, em certo
grau, para limitar o fator arbitrário em psicologia. Usei como exemplos as
pequenas falhas de memória, os lapsos de língua e de escrita, e o extrativo de
objetos. Mostrei que o responsável por um lapso de língua não é o acaso, nem a
semelhança no som, nem uma simples dificuldade de articulação, mas que em todos
os casos podemos descobrir um conteúdo ideativo perturbador, isto é, um
complexo, que alterou o sentido da fala intencionada sob a forma aparente de um
lapso de língua. Além disso, examinei pequenos atos aparentemente casuais e
gratuitos - por exemplo, o hábito de brincar ou de manusear um objeto, e outros
semelhantes - e demonstrei que são ‘atos sintomáticos’, ligados a um sentido
oculto e cuja finalidade é expressar discretamente esse sentido. Descobri que
nem mesmo um prenome nos vem à mente de forma arbitrária, tendo sido sua
escolha determinada por algum poderoso complexo ideativo. Até mesmo números que
acreditávamos ter escolhido ao acaso podem ser relacionados com a influência de
um complexo oculto dessa espécie. Poucos anos depois disso, um colega, o Dr.
Alfred Adler, pôde corroborar essa minha singularíssima afirmação com alguns
exemplos notáveis (Adler, 1905). Depois que nos habituamos a essa concepção do
determinismo na vida psíquica, sentimo-nos justificados em inferir das
descobertas da psicopatologia da vida cotidiana que as idéias que ocorrem ao
sujeito numa experiência de associação podem também não ser arbitrárias, mas
determinadas por um conteúdo ideativo nele atuante.
Senhores,
voltemos a examinar a experiência de associação. No tipo de experiência a que
até agora nos referimos, era a própria pessoa submetida a exame que nos
explicava a origem de suas reações, circunstância que subtrai dessas
experiências qualquer interesse judicial. Mas o que sucederia se alterássemos a
planificação da experiência? Não se poderia adotar processo semelhante ao da
resolução de uma equação com várias grandezas, em que se pode optar por
qualquer uma como ponto de partida, considerando-se ou o a ou
o b como o x procurado? Até agora em nossas experiências a
incógnita tem sido o complexo. Escolhemos a esmo as palavras-estímulo, e
o sujeito submetido a exame revelou-nos o complexo, que veio a ser expresso
através dessas palavras-estímulo. Mas agora vamos abordar a questão de forma
diversa. Vamos tomar um complexo conhecido e reagir, nós mesmos, a esse
complexo com palavras-estímulo deliberadamente escolhidas, transferindo então o
x para a pessoa que está reagindo. Será acaso possível deduzir da
maneira pela qual a mesma reage se o complexo escolhido também existe nela?
Podem ver os senhores que essa forma de planificação da experiência corresponde
exatamente ao método adotado pelo juiz de instrução ao tentar descobrir se o
acusado também conhece, em sua qualidade de agente, alguma coisa de que ele,
juiz, tem conhecimento. Wertheimer e Klein, dois discípulos de Hans Gross,
professor de direito penal em Praga, parecem ter sido os primeiros a introduzir
essa modificação, tão importante para os propósitos dos senhores, na
planificação das experiências.
As suas
próprias experiências já os levaram a concluir da necessidade de considerar
vários pontos nas reações do sujeito para determinar se o mesmo possui o
complexo ao qual os senhores estão reagindo com suas palavras-estímulo.
Esses pontos são os seguintes: (1) O conteúdo da reação pode ser
incomum, o que requer explicação. (2) O tempo de reação pode ser
prolongado, pois parece que as palavras-estímulo que tocaram o complexo
produzem uma reação apenas após considerável intervalo (intervalo que pode ser
muito maior que o tempo de reação comum). (3) Pode haver um engano na reprodução
da reação. Os senhores já conhecem o significado desse fato singular. Se o
sujeito submeteu-se a uma experiência de associação com uma lista bastante
longa de palavras-estímulo, e se depois de um curto espaço de tempo essa lista
for-lhe novamente apresentada, ele reproduzirá as mesmas reações anteriores,
salvo nos casos em que a palavra-estímulo atingiu um complexo; nesse caso é
muito provável que o sujeito substitua a sua primeira reação por outra. (4) O
fenômeno da perseveração (ou talvez seja melhor empregar o termo ‘efeito
secundário’) pode ocorrer. Quando um complexo é despertado, ao ser atingido por
uma palavra-estímulo - palavra-estímulo ‘crítica’ -, com freqüência os efeitos
disso (por exemplo, o prolongamento do tempo de reação) persistem e modificam
as reações do sujeito ante as próximas palavras-estímulo não-críticas. A
presença de várias dessas circunstâncias, ou de todas elas, comprova que o
complexo conhecido está presente como fator perturbador na pessoa que está
sendo interrogada. Tal perturbação significa que na mente do sujeito o complexo
está catexizado com afeto, sendo capaz de desviar sua atenção da tarefa de
reagir; assim, vê-se nessa perturbação uma ‘autotraição psíquica.’
Sei que
no momento os senhores se ocupam das potencialidades e das dificuldades desse
processo, cuja finalidade é levar o acusado a uma autotraição objetiva.
Portanto, gostaria de chamar-lhes a atenção para o fato de que um método
semelhante para trazer à tona material psíquico encoberto ou secreto vem sendo
utilizado, há mais de uma década, em um outro campo. Pretendo expor-lhes as
semelhanças e as diferenças entre as condições desses dois campos.
O campo
que tenho em mente é, na verdade, muito diverso deste dos senhores. Refiro-me à
terapia empregada em certas ‘doenças nervosas’ - conhecidas como psiconeuroses
- das quais são exemplo a histeria e as idéias obsessivas. O método denomina-se
‘psicanálise’; foi por mim desenvolvido a partir do método ‘catártico’ de
terapia, empregado pela primeira vez por Josef Breuer em Viena. Diante do
espanto dos senhores, devo estabelecer primeiramente uma analogia entre o
criminoso e o histérico. Em ambos defrontamos com um segredo, alguma coisa
oculta. Para não incorrer num paradoxo, devo em seguida apontar a diferença. O
criminoso conhece e oculta esse segredo, enquanto o histérico não conhece esse
segredo, que está oculto para ele mesmo. Como é possível tal coisa? Ora,
através de laboriosas pesquisas, sabemos que todas essas enfermidades resultam
do êxito obtido pelo paciente na repressão de certas idéias e lembranças
fortemente catexizadas com afeto, assim como dos desejos que delas se originam,
de tal modo que não representam qualquer papel em seu pensamento, isto é, não
penetram em sua consciência, permanecendo assim desconhecidos para ele. É desse
material psíquico reprimido (desses ‘complexos’) que derivam os sintomas
somáticos e psíquicos que atormentam o paciente, da mesma forma que uma
consciência culpada. Nesse aspecto, portanto, é fundamental a diferença entre o
criminoso e o histérico.
A tarefa
do terapeuta, entretanto, é a mesma do juiz de instrução. Temos de descobrir o
material psíquico oculto, e para isso inventamos vários estratagemas
detetivescos, alguns dos quais parece que os senhores, homens da lei, estão
prestes a copiar de nós.
Ser-lhes-á
profissionalmente interessante saber como nós, os médicos, procedemos na
psicanálise. Depois que o paciente nos fez um primeiro relato de sua história,
pedimos-lhes que se abandone aos pensamentos que lhe ocorrerem espontaneamente
e que diga, sem qualquer reserva crítica, tudo o que lhe vier à cabeça. Como
vêem, partimos da hipótese, não compartilhada pelo paciente, de que esses
pensamentos espontâneos não serão escolhidos de forma arbitrária, mas
determinados pela relação com seu segredo - isto é, com seu ‘complexo’ -,
podendo ser encarados como derivados desse complexo. Os senhores observarão que
essa hipótese é semelhante à que os auxiliou a interpretar as experiências de
associação. Embora tenhamos instruído o paciente a obedecer à regra de
comunicar todos os pensamentos que lhe ocorrerem, ele não parece capaz de o
fazer. Logo começa a reter pensamentos, dando várias razões para isso: ou o
pensamento não era importante, ou não era pertinente, ou era totalmente sem
sentido. A essa altura, insistimos que o revele e o acompanhe, a despeito
dessas objeções, pois a presença dessa crítica demonstra que o pensamento
pertence ao ‘complexo’ que procuramos descobrir. Vemos nesse comportamento do
paciente uma manifestação da ‘resistência’ nele presente, que se faz notar
durante todo o curso do tratamento. Limitar-me-ei a indicar que o conceito de
resistência é da maior importância na compreensão da origem de uma enfermidade
assim como do mecanismo de sua cura.
Em suas
experiências, os senhores não observam diretamente críticas como essas das
idéias espontâneas do sujeito, ao passo que em nossas psicanálises podemos
observar todas as indicações de um complexo que se dão a conhecer. Mesmo quando
o paciente não mais se atreve a infringir a regra que lhe foi imposta, notamos
que de vez em quando hesita ou se cala, ou faz pausas ao reproduzir suas
idéias. Cada hesitação dessa espécie é, a nosso ver, uma expressão de sua
resistência, e indica uma conexão com o ‘complexo’. Na verdade, nós a encaramos
como o sinal mais importante dessa conexão, exatamente como nos casos dos
senhores a prolongação análoga do tempo de reação. Habituamo-nos a
interpretar desse modo qualquer hesitação, mesmo quando aparentemente o conteúdo
da idéia retida nada tem de censurável e quando o paciente afirma reconhecer o
motivo de sua hesitação. Via de regra, as pausas que ocorrem na psicanálise são
muito mais prolongadas do que as observadas em experiências de reação.
Outro de
seus indícios de um complexo - a alteração no conteúdo da reação - também
desempenha seu papel na técnica da psicanálise. Em geral também encaramos os
menores afastamentos das formas comuns de expressão, em nossos pacientes, como
sinal de algum sentido oculto, e nos dispomos a ser ridicularizados por eles ao
fazermos interpretações nesse sentido. Na verdade, ficamos à espreita de
observações portadoras de qualquer ambigüidade, nas quais transparece, sob uma
expressão inocente, um sentido oculto. Não só os pacientes, mas também colegas
médicos, que desconhecem a técnica da psicanálise e seus aspectos especiais,
não acreditam nesses fatos e nos acusam de exagero e de fazer jogo de palavras;
quase sempre, porém, temos razão. Afinal, não é difícil compreender que a única
maneira pela qual um segredo cuidadosamente guardado se trai é através de
alusões muito sutis ou, quando muito, ambíguas. Por fim, o paciente acostuma-se
a nos revelar, por meio do que chamamos de ‘representação indireta’, tudo
aquilo de que necessitamos para descobrir o complexo.
O
terceiro dos seus indícios de um complexo (enganos - isto é, alterações - na reprodução
[da reação]) também é utilizado, embora num setor mais restrito, na técnica da
psicanálise. Uma tarefa que freqüentemente se nos apresenta é a interpretação
de sonhos - isto é, a tradução do conteúdo lembrado de um sonho para o seu
sentido oculto. Algumas vezes não temos certeza por onde devemos começar essa
tarefa, e nesses casos empregamos uma regra, descoberta empiricamente, que
consiste em fazer com que o sonhador torne a nos contar seu sonho. Nesse
mister, em geral ele modifica em alguns pontos sua maneira de expressar-se,
embora repetindo com fidelidade todo o resto. É justamente a esses pontos
reproduzidos erroneamente, ou então omitidos, que nos prendemos, pois essa
imprecisão indica uma conexão com o complexo e promete o melhor acesso ao
sentido secreto do sonho.
Se eu
agora admitir para os senhores que em psicanálise não se manifesta fenômeno
semelhante à perseveração, não devem os senhores concluir que se
esgotaram os pontos de concordância que estivemos examinando. Essa aparente
divergência deriva-se apenas das condições especiais das suas experiências,
pois nelas não se dá tempo para que se desenvolva o efeito do complexo. Sua
ação apenas começou, quando os senhores distraem a atenção do sujeito com uma
nova palavra-estímulo, provavelmente inocente; podem então observar que algumas
vezes, apesar de sua interferência, ele continua ocupado com o complexo. Em
psicanálise, por outro lado, evitamos tais interferências e mantemos o paciente
ocupado com o complexo. Como em nosso trabalho, tudo, por assim dizer, é
perseveração, não poderemos observar esse fenômeno como uma ocorrência isolada.
Podemos
com justiça afirmar que, em princípio, técnicas como as que descrevi
permitem-nos tornar o paciente consciente do que nele está reprimido, isto é,
do seu segredo, assim removendo a causação psicológica dos sintomas de que ele
sofre. Mas antes que os senhores retirem desses resultados positivos conclusões
referentes às possibilidades de seu próprio trabalho, examinaremos alguns
pontos de divergência entre as situações psicológicas dos dois casos.
Já
apontamos a diferença principal: no neurótico o segredo está oculto de sua
própria consciência; no criminoso, o segredo está oculto apenas dos senhores. No
primeiro existe uma autêntica ignorância, embora não em todos os sentidos,
enquanto no último só existe uma simulação de ignorância. Com essa diferença
está em conexão uma outra que tem grande importância prática. Na psicanálise o
paciente ajuda a combater sua resistência através de esforços conscientes,
porque espera lucrar com essa investigação, isto é, curar-se. O criminoso, ao
contrário, não cooperará com o trabalho dos senhores; se o fizesse, estaria
trabalhando contra todo o seu próprio ego. Entretanto, em compensação, em suas
investigações apenas os senhores necessitam obter uma convicção objetiva, ao
passo que nossa terapia exige que o paciente também adquira essa mesma
convicção. Contudo, resta ver até que ponto essa falta de cooperação do sujeito
de seu exame irá dificultar ou alterar o desenrolar do mesmo. Tal situação não
pode ser reconstituída em suas experiências num seminário, pois o colega que
desempenha o papel de acusado continua, no fim das contas, a ser um
companheiro, e os auxiliará, apesar da determinação consciente dele de não se
denunciar.
Se
examinarem atentamente a comparação das duas situações, verão com clareza que a
psicanálise se ocupa com uma forma mais simples e especial de descobrir o que
está oculto na mente, ao passo que no trabalho dos senhores a tarefa é mais
ampla. Embora não necessitem levar em consideração a diferença de que no caso
do psiconeurótico sempre se trata de complexo sexual reprimido (no sentido mais
amplo), existe um outro fato que não podem ignorar. O propósito da psicanálise
é absolutamente uniforme em todos os casos: é preciso trazer à tona os
complexos reprimidos por causa de sentimentos de desprazer e que produzem
sinais de resistência ante as tentativas de levá-los à consciência. É como se
essa resistência estivesse localizada; surge na fronteira entre o consciente e
o inconsciente. Já no caso dos senhores, a resistência origina-se totalmente da
consciência, não sendo possível deixar de lado essa diferença. Os senhores, em
primeiro lugar, terão de determinar experimentalmente se a resistência
consciente denuncia-se exatamente pelos mesmos indícios que a resistência
inconsciente. Além disso, em minha opinião os senhores ainda não podem estar
seguros de poder interpretar seus indícios objetivos de um complexo como sendo
uma ‘resistência’, tal como nós psicoterapeutas fazemos. No caso dos sujeitos
de suas experiências, pode acontecer que o complexo atingido seja de acento
agradável - embora isso não seja muito freqüente em criminosos -, o que levará
a indagar se tal complexo irá produzir a mesma reação que um complexo de acento
desagradável.
Gostaria
também de assinalar que o teste dos senhores pode estar sujeito a uma
complicação que, em virtude de sua própria natureza, não ocorre na psicanálise.
Os senhores, em sua investigação, podem ser induzidos a erro por um neurótico
que, embora inocente, reage como culpado, devido a um oculto sentimento de
culpa já existente nele e que se apodera da acusação. Não julguem essa
possibilidade como uma invenção ociosa; lembrem-se que isso pode ser observado
com freqüência na infância. Muitas vezes uma criança acusada de uma
transgressão nega veementemente sua culpa, embora chore como um criminoso
desmascarado. Talvez pensem que a criança mentiu ao afirmar sua inocência, mas isto
nem sempre é verdade. Pode ser que, embora não tenha cometido uma falta de que
a acusam, tenha cometido uma outra que permanece ignorada e que não lhe foi
imputada. Assim, fala a verdade ao negar ser culpada da primeira transgressão,
ao mesmo tempo que revela seu sentimento de culpa proveniente da outra falta.
Nesse particular, como em muitos outros pontos, o adulto neurótico comporta-se
exatamente como uma criança. Muitas pessoas são assim, e ainda é muito
discutível se a sua técnica logrará distinguir tais indivíduos auto-acusadores
daqueles que são realmente culpados. Finalmente, mais uma questão. Os senhores
sabem que, pelas normas do direito penal, é vedado sujeitar o acusado a
qualquer medida que o tome de surpresa; portanto, ele deverá ter sido advertido
de que poderá denunciar-se nessa experiência. Isso leva a perguntar se podem
ser esperadas as mesmas reações tanto quando a atenção do sujeito está dirigida
para o complexo como quando está afastada desse mesmo complexo, e a que ponto a
intenção de ocultar alguma coisa pode afetar os modos de reação em pessoas
diferentes.
É
justamente devido à diversidade de situações que subjazem ao trabalho de
investigação dos senhores, que a psicologia se interessa tão vivamente por seus
resultados. Gostaria de pedir-lhes que não se desiludissem prematuramente de
sua utilidade prática. Embora meu campo esteja muito afastado da prática
judicial, talvez me permitam mais uma sugestão. Por mais indispensáveis que
sejam essas experiências realizadas em seminários, tanto como uma preparação
quanto como formulação de problemas, os senhores não poderão jamais reproduzir
a mesma situação psicológica existente no interrogatório do acusado numa
investigação criminal. Essas experiências serão simples exercícios simulados, e
nunca poderão fundamentar uma aplicação prática em casos criminais. Se
insistirmos em tentar essa aplicação, um outro caminho se nos apresenta:
consigam que lhes seja permitido - ou mesmo imposto como um dever - realizar
tais investigações, durante um certo número de anos, em cada processo criminal
real, impedindo que os seus resultados venham a influenciar o veredicto do
tribunal. Na verdade, seria preferível que o tribunal não fosse informado
da conclusão inferida pelos senhores a partir da investigação relativa à
questão da culpa do acusado. Após alguns anos de compilação e comparação dos
resultados assim obtidos, quaisquer dúvidas sobre a utilidade desse método
psicológico de investigação serão esclarecidas. Sei, naturalmente, que a
concretização de semelhante proposta não depende somente dos senhores, nem de
seus ilustres professores.
ATOS
OBSESSIVOS E PRÁTICAS RELIGIOSAS (1907)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
ZWANGSHANDLUNGEN
UND RELIGIONSÜBUNGEN
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1907 Z. Religionspsychol., 1 (1) [Abril], 4-12.
1909 S.K.S.N., 2, 122-31. (1912, 2ª ed.; 1921,
3ª ed.)
1924 G.S., 10, 210-20.
1941 G.W.,
7, 129-39.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Obsessive Acts and Religious Practices’
1924 C.P., 2, 25-35. (Trad. de R. C.
McWatters.)
A
presente tradução, com título ligeiramente alterado, é uma versão modificada da
que foi publicada em 1924.
Este
artigo foi escrito em fevereiro de 1907 para o primeiro número de um periódico
dirigido por Bresler e Vordrobt. Na reunião de 27 de fevereiro da Sociedade
Psicanalítica de Viena, Freud informou que enviara uma contribuição para o
número de estréia desse novo periódico e também que Bresler o convidara para
co-editor, convite por ele aceito. Na verdade seu nome aparece na (longa) lista
de consultores editoriais. A informação incorreta de que esse artigo foi lido
por Freud para a Sociedade, a 2 de março, é proveniente da biografia de Jones
(2, 380). De qualquer forma, 2 de março foi um sábado e não uma quarta-feira.
Jung esteve presente à reunião de 6 de março, quando Adler leu um caso clínico.
(Ver Minutes, 1.) Essa foi a incursão inicial de Freud na psicologia da
religião e, como assinala na Seção V da sua ‘Uma Breve Descrição da
Psicanálise’ (1924f), constituiu um passo decisivo em direção a um tratamento
mais extenso do assunto, cinco anos depois, em Totem e Tabu. Além disso,
o interesse deste artigo reside no fato de ser esta a primeira vez que Freud
examina a neurose obsessiva desde o período de Breuer, cerca de dez anos antes.
Aqui ele fornece um esboço do mecanismo dos sintomas obsessivos que iria
elaborar no caso clínico do ‘Rat Man’ (1909d), cujo tratamento,
entretanto, ainda não iniciara quando escreveu o presente trabalho.
ATOS OBSESSIVOS E PRÁTICAS RELIGIOSAS
Não sou
certamente o primeiro a notar a semelhança existente entre os chamados atos
obsessivos dos que sofrem de afecções venosas e as práticas pelas quais o
crente expressa sua devoção. O termo ‘cerimonial’, que tem sido aplicado a
alguns desses atos obsessivos, constitui uma evidência disso. Em minha opinião,
entretanto, essa semelhança não é apenas superficial, de modo que a compreensão
interna (insight) da origem do cerimonial neurótico pode, por analogia,
estimular-nos a estabelecer inferências sobre os processos psicológicos da vida
religiosa.
As
pessoas que praticam atos obsessivos ou cerimoniais pertencem à mesma classe
das que sofrem de pensamento obsessivo, idéias obsessivas, impulsos obsessivos
e afins. Isso, em conjunto, constitui uma entidade clínica especial, que comumente
se denomina de ‘neurose obsessiva’ [Zwangsneurose]. Mas não devemos
tentar inferir de tal denominação a natureza da enfermidade, pois, a rigor,
também outras espécies de fenômenos mentais mórbidos podem possuir
características ‘obsessivas’. Em lugar de uma definição, contentemo-nos no
momento em obter um conhecimento minucioso desses estados, pois ainda não
chegamos ao critério distintivo da neurose obsessiva, que provavelmente se
encontra oculto em camadas muito profundas, embora pareça revelar sua presença
em todas as manifestações da doença.
Os
cerimoniais neuróticos consistem em pequenas alterações em certos atos
cotidianos, em pequenos acréscimos, restrições ou arranjos que devem ser sempre
realizados numa mesma ordem, ou com variações regulares. Essas atividades,
meras formalidades na aparência, afiguram-se destituídas de qualquer sentido. O
próprio paciente não as julga diversamente, mas é incapaz de renunciar a elas,
pois a qualquer afastamento do cerimonial manifesta-se uma intolerável ansiedade,
que o obriga a retificar sua omissão. Tão triviais quanto os próprios atos
cerimoniais são as ocasiões e as atividades ornamentadas, complicadas e sempre
prolongadas pelo cerimonial - por exemplo, vestir e despir-se, o ato de
deitar-se ou de satisfazer as necessidades fisiológicas. O cerimonial é sempre
executado como se tivesse de obedecer a certas leis tácitas. Tomemos, por
exemplo, um cerimonial relativo ao ato de deitar-se: a cadeira deve ficar numa
determinada posição ao lado da cama, as roupas colocadas sobre a mesma numa
determinada ordem, o cobertor preso embaixo do colchão e o lençol bem esticado,
os travesseiros arrumados de maneira especial, e o corpo da pessoa deve adotar
uma posição bem determinada. Só depois disso tudo ela poderá dormir. Em casos
leves, o cerimonial parece ser nada mais do que a intensificação de hábitos
ordeiros muito justificáveis; é a especial consciência que cerca sua execução e
a ansiedade que surge com qualquer falha que lhe dão o caráter do ‘ato
sagrado’. Em geral se suporta mal qualquer interrupção no cerimonial, sendo
quase sempre excluída a presença de outras pessoas durante sua realização.
Toda
atividade pode converter-se em um ato obsessivo, no sentido mais amplo do
termo, se for complicada por pequenos acréscimos ou se adquirir um caráter
rítmico através de pausas e repetições. Não esperemos encontrar uma distinção
nítida entre ‘cerimoniais’ e ‘atos obsessivos’. Em geral os atos obsessivos
derivam-se de cerimoniais. Além desses, o conteúdo do distúrbio abrange proibições
e impedimentos (abulias), que na realidade apenas levam adiante o trabalho dos
atos obsessivos, portanto algumas coisas são completamente vedadas ao paciente
e outras só permitidas após a realização de um determinado cerimonial.
É
singular que tanto as compulsões como as proibições (ter de fazer isso e não
ter de fazer aquilo) aplicam-se inicialmente só às atividades solitárias do
sujeito, e por muito tempo não afetam seu comportamento social.
Conseqüentemente, os que sofrem dessa enfermidade são capazes de manter o seu
mal como um assunto particular, ocultando-o por muitos anos. Na verdade, o
número de pessoas que sofrem dessas formas de neurose obsessiva é muito maior
do que o que chega ao conhecimento dos médicos. Além disso, para muitas vítimas
a ocultação se torna fácil tendo em vista que são capazes de desempenhar seus
deveres sociais durante parte do dia, desde que devotem certo número de horas a
suas atividades secretas, longe de olhares, como Mélusine.
É fácil
perceber onde se encontram as semelhanças entre cerimoniais neuróticos e atos
sagrados do ritual religioso: nos escrúpulos de consciência que a negligência
dos mesmos acarreta, na completa exclusão de todos os outros atos (revelada na
proibição de interrupções) e na extrema consciência com que são executados em
todas as minúcias. Mas as diferenças são igualmente óbvias, e algumas tão
gritantes que tornam qualquer comparação um sacrilégio: a grande diversidade
individual dos atos cerimoniais [neuróticos] em oposição ao caráter estereotipado
dos rituais (as orações, o curvar-se para o leste, etc.), o caráter privado dos
primeiros em oposição ao caráter público e comunitário das práticas religiosas,
e acima de tudo o fato de que, enquanto todas as minúcias do cerimonial
religioso são significativas e possuem um sentido simbólico, as dos neuróticos
parecem tolas e absurdas. Sob esse aspecto a neurose obsessiva parece uma
caricatura, ao mesmo tempo cômica e triste, de uma religião particular, mas é
justamente essa diferença decisiva entre o cerimonial neurótico e o religioso
que desaparece quando penetramos, com o auxílio da técnica psicanalítica de
investigação, no verdadeiro significado dos atos obsessivos. No decurso dessa
investigação, dilui-se completamente o aspecto tolo e absurdo de que se
revestem os atos obsessivos, sendo explicada a razão de tal aspecto.
Descobre-se que todos os detalhes dos atos decisivos possuem um sentido, que
servem a importantes interesses da personalidade, e que expressam experiências
ainda atuantes e pensamentos catexizados com afeto. Fazem isso de duas formas:
por representação direta ou simbólica, podendo, conseqüentemente, ser
interpretados histórica ou simbolicamente.
Devo
ilustrar com alguns exemplos essa minha asserção. Os que estão familiarizados
com os achados da investigação psicanalítica das psiconeuroses não se
surpreenderão ao saber que o que está sendo representado em atos obsessivos e
em cerimoniais deriva das experiências mais íntimas do paciente, principalmente
das sexuais.
(a) Uma jovem que esteve sob minha
observação sofria da compulsão de fazer a água revolutear na bacia várias vezes
após se lavar. O significado desse ato cerimonial prendia-se ao seguinte
ditado: ‘Não jogue fora a água suja até obter uma limpa’. Com esse ato
pretendia advertir a irmã, a quem era muito afeiçoada, e impedi-la de se
divorciar de um marido pouco satisfatório até que firmasse uma relação com um
homem melhor.
(b) Uma mulher que estava vivendo separada
do marido via-se sob a compulsão de deixar intacta a melhor porção de tudo
aquilo que comia: por exemplo, só aproveitava as beiradas de uma fatia de carne
assada. A explicação dessa renúncia foi encontrada por meio da data de sua
origem. Ela surgiu no dia seguinte àquele em que se recusara a ter relações
maritais com seu marido - isto é, após ter renunciado ao melhor.
(c) A mesma paciente só podia sentar-se em
uma determinada cadeira, da qual se levantava com dificuldade. Devido a certos
aspectos de sua vida de casada, a cadeira simbolizava o marido, a quem ela
permanecia fiel. Essa mulher encontrou a explicação para sua compulsão na
seguinte frase: ‘É tão difícil nos separarmos de alguma coisa (um marido, uma
cadeira) a que já nos fixamos.’
(d) Durante algum tempo ela repetiu um ato
obsessivo especialmente singular e absurdo: saía correndo do seu quarto para
outro onde havia uma mesa de centro; arrumava a toalha dessa mesa duma
determinada forma e, tocando a sineta, chamava a criada; fazia com que esta se
aproximasse da mesa e a despedia após incumbi-la de alguma tarefa sem
importância. Tentando encontrar uma explicação para tal compulsão, lembrou-se
de que a toalha da mesa estava manchada e de que sempre a arrumava de maneira a
que a mancha fosse forçosamente vista pela criada. Essa cena era a reprodução
de uma experiência de sua vida conjugal que muito ocupara sua mente,
constituindo-lhe um problema. Na noite de núpcias o marido sofrera um percalço
bastante comum: vira-se impotente. Durante a noite ele correra várias vezes de
seu quarto para o dela, em renovadas tentativas de obter sucesso; pela manhã,
com vergonha da arrumadeira do hotel que faria as camas, derramou o conteúdo de
um vidro de tinta vermelha no lençol, mas de forma tão canhestra que o manchou
num local pouco adequado a seus propósitos. Portanto, com seu ato obsessivo ela
representava a noite de núpcias. ‘Cama e mesa’ entre eles compõem o casamento.
(e) Outra compulsão que adquiriu - a de
anotar o número de todas as décadas de papel-moeda antes de se desfazer das
mesmas - teve de ser interpretada historicamente. Numa época em que ainda
tencionava separar-se do marido, se encontrasse outro homem mais digno de
confiança, permitiu-se receber as atenções de um cavalheiro que conhecera numa
estação de águas, mas de cuja seriedade duvidava. Certo dia, com falta de
dinheiro miúdo, pedira-lhe para trocar uma moeda de cinco coroas. Ele a
satisfez, e guardando a moeda declarou galantemente que jamais se separaria da
mesma, pois estivera nas mãos dela. Em encontros posteriores, ela com
freqüência sentiu a tentação de desafiá-lo a mostrar a moeda de cinco coroas,
como se quisesse convencer-se de que podia acreditar em suas intenções, mas
conteve-se tendo em vista que é impossível distinguir uma determinada moeda
entre outras do mesmo valor. Assim, sua dúvida não foi resolvida, deixando-lhe
a compulsão de anotar os números das notas, de modo a poder distinguir
umas das outras.
Com
esses poucos exemplos, escolhidos entre os muitos que reuni, tenciono
simplesmente ilustrar minha afirmativa de que nos atos obsessivos tudo tem
sentido e pode ser interpretado. O mesmo se pode dizer dos cerimoniais
propriamente ditos, só que para corroborar tal asserção seriam necessárias
maiores provas. Estou cônscio de que nossas explicações acerca dos atos
obsessivos aparentemente nos estão afastando da esfera do pensamento religioso.
Uma das
condições da doença é o fato de que a pessoa que obedece a uma compulsão, o faz
sem compreender-lhe o sentido - ou, pelo menos, o sentido principal. É somente
através dos esforços do tratamento psicanalítico que ela se torna consciente do
sentido do seu ato obsessivo e, simultaneamente, dos motivos que a compelem ao
mesmo. Esse fato importante pode ser expresso da seguinte forma: o ato
obsessivo serve para expressar motivos e idéias inconscientes. Com essa
afirmação, parece que nos afastamos ainda mais das práticas religiosas, mas
devemos recordar que em geral também o indivíduo normalmente piedoso executa o
cerimonial sem ocupar-se de seu significado, embora os sacerdotes e os
investigadores científicos estejam familiarizados com o significado, em grande
parte simbólico, do ritual. Para os crentes, entretanto, os motivos que os
impelem às práticas religiosas são desconhecidos ou estão representados na
consciência por outros que são desenvolvidos em seu lugar.
A
análise de atos obsessivos já nos possibilitou alguma compreensão interna (insight)
de suas causas e da seqüência de motivos que os tornam ativos. Podemos dizer
que aquele que sofre de compulsões e proibições comporta-se como se estivesse
dominado por um sentimento de culpa, do qual, entretanto, nada sabe, de modo
que podemos denominá-lo de sentimento inconsciente de culpa, apesar da aparente
contradição dos termos. Esse sentimento de culpa origina-se de certos eventos
mentais primitivos, mas é constantemente revivido pelas repetidas tentações que
resultavam de cada nova provocação. Além disso, acarreta um furtivo sentimento
de ansiedade expectante, uma expectativa de infortúnio ligada, através da idéia
de punição, à percepção interna da tentação. Quando o cerimonial é formado, o
paciente ainda tem consciência de que deve fazer isso ou aquilo para evitar algum
mal, e em geral a natureza desse mal que é esperado ainda é conhecida de sua
consciência. Contudo, o que já está oculto dele é a conexão - sempre
demonstrável - entre a ocasião em que essa ansiedade expectante surge e o
perigo que ela provoca. Assim o cerimonial surge com um ato de defesa ou
de segurança, uma medida protetora.
O
sentimento de culpa dos neuróticos obsessivos corresponde à convicção dos
indivíduos piedosos de serem, no íntimo, apenas miseráveis pecadores; e as
práticas devotas (tais como orações, invocações, etc.) com que tais indivíduos
precedem cada ato cotidiano, especialmente os empreendimentos não habituais,
parecem ter o valor de medidas protetoras ou de defesa.
Obteremos
uma compreensão interna (insight) mais profunda do mecanismo da neurose
obsessiva se considerarmos o fato fundamental que a mesma oculta. Há sempre a
repressão de um impulso instintual (um componente do instinto
sexual) presente na constituição do sujeito e que pôde expressar-se durante
algum tempo em sua infância, sucumbindo posteriormente à pressão. No decurso da
repressão do instinto cria-se uma consciência especial, dirigida contra
os objetivos do instinto; essa formação reativa psíquica, porém, sente-se
insegura e constantemente ameaçada pelo instinto emboscado no inconsciente. A
influência do instinto reprimido é sentida como uma tentação, e durante o
próprio processo de repressão gera-se a ansiedade que adquire controle sobre o
futuro, sob a forma de ansiedade expectante. O processo de repressão que
acarreta a neurose obsessiva deve ser considerado como um processo que só obtém
êxito parcial, estando constantemente sob a ameaça de um fracasso. Podemos,
pois, compará-lo a um conflito interminável; reiterados esforços psíquicos são
necessários para contrabalançar a pressão constante do instinto. Assim, os atos
cerimoniais e obsessivos surgem, em parte, como uma proteção contra a tentação
e, em parte, como proteção contra o mal esperado. Essas medidas de proteção
logo parecem tornar-se insuficientes contra a tentação, surgindo então as
proibições, cuja finalidade é manter à distância as situações que podem
originar tentações. Veremos que as proibições substituem os atos obsessivos
assim como uma fobia evita um ataque histérico. Assim, um cerimonial é um
conjunto de condições que devem ser preenchidas, da mesma forma que uma
cerimônia matrimonial da Igreja significa para o crente uma permissão para
desfrutar os prazeres sexuais, que de outra maneira seriam pecaminosos. Uma
outra característica da neurose obsessiva, e de todas as enfermidades
semelhantes, é que suas manifestações (seus sintomas, inclusive os atos
obsessivos) preenchem a condição de ser uma conciliação entre as forças
antagônicas da mente. Essas manifestações reproduzem, assim, uma parcela
daquele mesmo prazer que pretendiam evitar, e servem ao instinto reprimido
tanto quanto às instâncias que o estão reprimindo. Na verdade, ao passo que a
enfermidade progride, os atos que de início se destinavam principalmente a
manter a defesa aproximam-se progressivamente dos atos proibidos pelos quais o
instinto pôde expressar-se na infância.
Também
na esfera da vida religiosa encontraremos alguns aspectos desse estado de
coisas. A formação de uma religião parece basear-se igualmente na supressão, na
renúncia, de certos impulsos instintuais. Entretanto, esses impulsos não são
componentes exclusivamente do instinto sexual, como no caso das neuroses; são
instintos egoístas, socialmente perigosos, embora geralmente abriguem um
componente sexual. Afinal, o sentimento de culpa resultante de uma tentação
contínua e a ansiedade expectante sob a forma de temor da punição divina nos
são familiares há mais tempo no campo da religião do que no da neurose. Talvez
devido à intromissão de componentes sexuais, talvez pelas características gerais
dos instintos, também na vida religiosa a supressão do instinto revela-se um
processo inadequado e interminável. Na realidade, as recaídas totais no pecado
são mais comuns entre os indivíduos piedosos do que entre os neuróticos, dando
origem a uma nova forma de atividade religiosa: os atos de penitência, que têm
seu correlato na neurose obsessiva.
Já
assinalamos, como característica curiosa e menosprezável da neurose obsessiva,
que seus cerimoniais se prendem aos atos menores da vida cotidiana e se expressam
através de restrições e regulamentações tolas em conexão com eles. Só
compreendemos esse singular aspecto do quadro clínico quando percebemos que os
mecanismo do deslocamento psíquico, por mim descoberto inicialmente na
construção de sonhos, domina os processos mentais da neurose obsessiva. Os
poucos exemplos de atos obsessivos já citados tornam claro que o simbolismo e
os pormenores desses mesmos atos resultam de um deslocamento, da substituição
do elemento real e importante por um trivial - por exemplo, do marido pela
cadeira. É essa tendência para o deslocamento que modifica progressivamente o
quadro clínico, terminando por transformar um fato extremamente banal em algo
da maior urgência e importância. É inegável que também no campo religioso existe
uma tendência para o deslocamento de valores psíquicos, e em sentido análogo,
de forma que os cerimoniais triviais da prática religiosa gradualmente adquirem
um caráter essencial, tomando o lugar dos pensamentos fundamentais. Por isso é
que as religiões sofrem reformas de caráter retroativo, que visam restabelecer
o equilíbrio original dos valores.
O
caráter de conciliação que os atos obsessivos possuem em sua qualidade de
sintomas neuróticos não é tão evidente nas práticas religiosas correspondentes.
Mas também nestas descobrimos esse aspecto das neuroses quando lembramos a
freqüência com que são cometidos, justamente em nome da religião e
aparentemente por sua causa, todos os atos proibidos pela mesma - ou seja, as
expressões dos instintos por ela reprimidos.
Diante
desses paralelos e analogias podemos atrever-nos a considerar a neurose
obsessiva com o correlato patológico da formação de uma religião, descrevendo a
neurose como uma religiosidade individual e a religião como uma neurose
obsessiva universal. A semelhança fundamental residiria na renúncia implícita à
ativação dos instintos constitucionalmente presentes; e a principal diferença
residiria na natureza desses instintos, que na neurose são exclusivamente
sexuais em sua origem, enquanto na religião procedem de fontes egoístas.
A
renúncia progressiva aos instintos constitucionais, cuja ativação
proporcionaria o prazer primário do ego, parece ser uma das bases do
desenvolvimento da civilização humana. Uma parcela dessa repressão instintual é
efetuada por suas religiões, ao exigirem do indivíduo que sacrifique à
divindade seu prazer instintual: ‘A vingança é minha, diz o Senhor’. No
desenvolvimento das religiões antigas, pode-se ver que muitas coisas a que a
humanidade renunciou como sendo ‘iniqüidades’ haviam sido abandonadas à
divindade e ainda eram permitidas em seu nome, de modo que a atribuição a ela
dos instintos maus e socialmente nocivos era o meio como o homem se libertava
da dominação deles. Por isso, e não por casualidade, todos os atributos
humanos, inclusive os crimes que deles derivam, foram imputados, num grau
ilimitado, aos deuses antigos. Nem tampouco é uma contradição que, apesar
disso, não fosse permitido ao homem justificar suas próprias iniqüidades com o
exemplo divino.
Viena,
fevereiro de 1907.
O
ESCLARECIMENTO SEXUAL DAS CRIANÇAS
(CARTA ABERTA AO DR. M. FÜRST) (1907)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
ZUR
SEXUELLEN AUFKLÄRUNG DER KINDER
(OFFENER BRIEF AN DR. M. FÜRST)
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1907 Soz.
Med. Hyg., 2 (6) [junho], 360-7.
1909 S.K.S.N., 2, 151-8. (1912, 2ª ed.; 1921,
3ª ed.)
1924 G.S., 5, 134-42.
1931 Sexualtheorie und Traumlehre, 7-16.
1941 G.W.,
7, 19-27.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘The Sexual Enlightenment of Children.An Open
Letter to Dr. M. Fürst’
1924 C.P., 2, 36-44. (Trad. de E. B. M.
Herford.)
A
presente tradução baseia-se na que foi publicada em 1924.
Esta
carta foi escrita a pedido de um médico de Hamburgo, o Dr. M. Fürst, para ser
publicada num periódico dedicado à higiene e à medicina social, de que o mesmo
era editor. Ernest Jones (1955, 327-8) conta-nos que Freud expôs o assunto de
forma mais detalhada num debate realizado na Sociedade Psicanalítica de Viena a
12 de maio de 1909, já tendo discutido o assunto na reunião de 18 de dezembro
de 1907. (Ver Minutes, 1.) Trinta anos mais tarde, ele volta ao tópico
da instrução sexual das crianças no último parágrafo da Seção IV do seu artigo
‘Análise Terminável e Interminável’ (1937c), mostrando que a questão é
consideravelmente menos simples do que como aparece na presente abordagem.
O ESCLARECIMENTO SEXUAL DAS CRIANÇAS (CARTA ABERTA AO DR. M.
FÜRST)
Caro Dr.
Fürst,
Ao
solicitar minha opinião sobre ‘o esclarecimento sexual das crianças’, presumo
que não deseja um tratado formal e completo do assunto que leve em conta a
extensa literatura existente sobre a questão, mas o juízo independente de um
médico a quem a atividade profissional concedeu oportunidades especiais para
ocupar-se dos problemas sexuais. Sei que tem acompanhado meus esforços
científicos com interesse, não refutando minhas idéias sem examiná-las, como
fizeram muitos de nossos colegas, por eu considerar a constituição psicossexual
e certos males da vida sexual como as causas primordiais das perturbações
neuróticas, que são tão comuns. Há pouco seu periódico também acolheu
amavelmente os meus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade [1905d],
nos quais descrevi como o instinto sexual se compõe e os distúrbios que podem
ocorrer, em seu desenvolvimento, na função da sexualidade.
Todavia,
o senhor espera que eu responda aos seguintes quesitos: devem as crianças ser
esclarecidas sobre os fatos da vida sexual, em que idade isso deve ocorrer e de
que modo isso deve ser realizado. Permita-me dizer, inicialmente, que acho
perfeitamente razoável o exame dos dois últimos pontos, mas que me é de todo
incompreensível que existam divergências sobre o primeiro. Que propósito se
visa atingir negando às crianças, ou aos jovens, esclarecimento desse tipo
sobre a vida sexual dos seres humanos? Será por medo de despertar
prematuramente seu interesse por tais assuntos, antes que o mesmo irrompa de
forma espontânea? Será na esperança de que o ocultamento possa retardar o
aparecimento do instinto sexual por completo, até que este possa encontrar seu
caminho pelos únicos canais que lhe são abertos em nossa sociedade de classe
média? Será que acreditamos que as crianças não se interessarão pelos fatos e
mistérios da vida sexual, e não os compreenderão, se não forem impelidos a tal
por influências externas? Será possível que o conhecimento que lhes é negado
não as alcançará por outros meios? Ou será que se pretende genuína e seriamente
que mais tarde elas venham a considerar degradante e desprezível tudo que se
relacione com o sexo, já que seus pais e professores quiseram mantê-las
afastadas dessas questões o maior tempo possível?
Na
verdade ignoro em qual dessas proposições se deve procurar o motivo de se
ocultar das crianças aquilo que é sexual, ocultação que de fato é levada a
cabo. Sei apenas que são todas igualmente absurdas e indignas de uma
contestação judiciosa. Lembro-me, porém, de que encontrei na correspondência
familiar do grande pensador e filantropo Multatuli, algumas linhas que
constituem uma resposta mais do que adequada:
‘A meu
ver, certas coisas são, em geral, exageradamente encobertas. É justo conservar
pura a imaginação de uma criança, mas não é a ignorância que irá preservar essa
pureza. Ao contrário, acho que a ocultação conduz o menino ou menina a
suspeitar mais do que nunca da verdade. A curiosidade nos leva a esmiuçar
coisas que teriam pouco ou nenhum interesse para nós, se tivéssemos sido
informados com simplicidade. Se fosse possível manter essa ignorância
inalterada, eu poderia aceitá-la, mas isso é impossível. O convívio com outras
crianças, as leituras que induzem à reflexão e o mistério com que os pais
cercam fatos que terminam por vir à tona, tudo isso na verdade intensifica o
desejo de conhecimento. Esse desejo, satisfeito apenas parcialmente e em
segredo, excita seu sentimento e corrompe sua imaginação, de forma que a
criança já peca enquanto os pais ainda acreditam que ela desconhece o pecado.’
Eu não
sei como a questão poderia ser mais bem expressa, mas talvez possa acrescentar
algumas observações. Certamente são apenas a pudicícia usual dos adultos e sua
má consciência em relação a assuntos sexuais que os induzem a criar todo esse
mistério diante das crianças, mas é possível que também uma certa ignorância
teórica desempenhe seu papel nessa atitude, ignorância que pode ser remediada
dando aos adultos algum esclarecimento. É crença geral que o instinto sexual
inexiste nas crianças, só começando a irromper na puberdade, com a maturação
dos órgãos sexuais. Esse erro grosseiro que acarreta sérias conseqüências,
tanto no conhecimento quanto na prática, é tão facilmente corrigido pela
observação que é de admirar que alguém possa incorrer no mesmo. Na realidade o
recém-nascido já vem ao mundo com sua sexualidade, sendo seu desenvolvimento na
lactância e na primeira infância acompanhado de sensações sexuais; só muito
poucas crianças alcançam a puberdade sem ter tido sensações e atividades
sexuais. Quem se interessar por um exame detalhado dessas asserções, poderá
encontrá-lo em meus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, a que me
referi acima. Ali verá que os órgãos de reprodução propriamente ditos não são
as únicas partes do corpo que geram sensações de prazer sexual, e que a
natureza dispôs as coisas de tal forma que as estimulações reais dos genitais
são inevitáveis na primeira infância. Esse período de vida, durante o qual uma
certa cota do que é sem dúvida prazer sexual é produzida pela excitação de
várias partes da pele (zonas erógenas), pela atividade de certos instintos
biológicos e pela excitação concomitante de muitos estados afetivos, é
conhecido como o período de auto-erotismo, para usar um termo
introduzido por Havelock Ellis [1898]. A puberdade apenas concede aos genitais
a primazia entre todas as outras zonas e fontes produtoras de prazer, assim
forçando o erotismo a colocar-se a serviço da função reprodutora. Naturalmente
esse processo pode sofrer certas inibições, e em muitas pessoas (que tendem a
se tornar mais tarde pervertidas ou neuróticas) não se completa senão
imperfeitamente. Por outro lado, muito antes da puberdade a criança já é capaz
da maior parte das manifestações psíquicas do amor - por exemplo, a ternura, a
dedicação e o ciúme. Com freqüência, uma irrupção desses estados mentais
associa-se às sensações físicas de excitação sexual, de modo que a criança não
pode ficar em dúvida quanto à conexão entre ambos. Em resumo, com exceção do
seu poder de reprodução, muito antes da puberdade já está completamente
desenvolvida na criança a capacidade de amar; e pode-se afirmar que o clima de
mistério apenas a impede de apreender intelectualmente as atividades para as
quais já está psiquicamente preparada e fisicamente apta.
O
interesse intelectual da criança pelos enigmas do sexo, o seu desejo de
conhecimento sexual, revela-se numa idade surpreendentemente tenra. Se
observações como as que exporei a seguir não são feitas com maior freqüência, é
apenas por estarem os pais cegos a esse interesse de seus filhos ou porque, se
não o conseguem ignorar, tentam imediatamente abafá-lo. Conheço um encantador
menino de quatro anos, filho de pais compreensivos que se abstiveram de
reprimir uma parte de seu desenvolvimento. O pequeno Hans certamente não foi
exposto a nada da natureza de uma sedução pela babá, mas, apesar disso, já há
algum tempo demonstrava um vivo interesse por aquela parte do seu corpo que ele
chama de ‘pipi’. Aos três anos, perguntou à mãe: ‘Mamãe, você também tem um
pipi?’ Ela respondeu: ‘Naturalmente. O que é que você acha?’ Também ao pai ele
perguntou várias vezes a mesma coisa. Nessa época, ao entrar pela primeira vez
num estábulo, viu uma vaca ser ordenhada. ‘Olhe só!’ exclamou surpreso, ‘sai
leite do pipi dela’. Aos três anos e nove meses parecia a caminho de por si
mesmo fazer a descoberta de categorias corretas, através de suas observações.
Ao ver sair água de uma locomotiva, exclamou: ‘Veja, a máquina está fazendo
pipi. Onde está o pipi dela?’ E acrescentou, depois de refletir: ‘O cachorro e
o cavalo têm pipis; a mesa e a cadeira não têm.’ Recentemente, olhava a
irmãzinha de sete dias tomar banho, quando comentou: ‘O pipi dela é muito
pequeno, mas vai ficar grande quando ela crescer.’ (Sei da mesma atitude em
relação ao problema da diferença dos sexos em outros meninos da mesma idade.)
Gostaria de deixar claro que o pequeno Hans não é uma criança sensual, nem com
disposição patológica. A meu ver, o que acontece é que, não tendo sofrido
intimidações e não tendo sido oprimido por nenhum sentimento de culpa, ele
expressa candidamente aquilo que pensa.
O
segundo grande problema a ocupar a mente de uma criança - um pouco mais tarde,
sem dúvida - é o da origem dos bebês. Isso geralmente é despertado pelo
indesejado nascimento de um irmão ou de uma irmã. Trata-se da questão mais
remota e premente a atormentar a humanidade imatura. Os que sabem interpretar
os mitos e as lendas podem identificá-lo no enigma que a Esfinge de Tebas
apresenta a Édipo. As respostas usualmente concedidas à criança danificam seu
genuíno instinto de investigação e, via de regra, também desferem o primeiro
golpe na confiança que ela deposita em seus pais. Dessa data em diante,
geralmente começa a desconfiar dos adultos e a esconder deles seus interesses
mais íntimos. O pequeno documento que se segue mostra como essa curiosidade
pode ser aflitiva em crianças mais velhas. Trata-se de uma carta escrita por
uma menina de onze anos, órfã de mãe, que havia debatido o problema com sua
irmã mais nova.
‘Cara
tia Mali,
‘Será
que a senhora poderia fazer o favor de me dizer como teve Christel e Paul? A
senhora deve saber, pois é casada. Nós estávamos discutindo sobre isso ontem e
queríamos saber a verdade. Não sabemos a quem mais perguntar. Quando a senhora
virá a Salzburg? Sabe, tia Mali, não conseguimos compreender como as cegonhas
trazem os bebês. Trudel achava que ela os trazia numa camisa. Também queremos
saber se as cegonhas apanham os bebês no lago, e por que nunca vimos nenhum
bebê no lago. E, por favor, diga-me como é que a gente sabe de antemão quando
vai ter um bebê. Escreva-me contando tudo sobre isso.
‘Com mil
beijos e abraços de todos,
‘Sua sobrinha
curiosa,
Lili.’
Não
acredito que essa enternecedora carta tenha trazido às duas irmãs o
esclarecimento desejado. Posteriormente a autora da mesma adoeceu, vítima da
neurose que surge de perguntas inconscientes não respondidas - da meditação
obsessiva.
Não me
parece haver uma única razão de peso para negar às crianças o esclarecimento
que sua sede de saber exige. Certamente se a intenção dos educadores é sufocar
a capacidade da criança de pensamento independente, em favor de uma pretensa
‘bondade’ que tanto valorizam, não poderiam escolher melhor caminho do que
ludibriá-la em questões sexuais e intimidá-la pela religião. As naturezas mais
fortes, é verdade, resistirão a tais influências e se tornarão rebeldes contra
a autoridade dos pais e, mais tarde, contra qualquer outra autoridade. Se as
dúvidas que as crianças levam aos mais velhos não são satisfeitas, elas
continuam a atormentá-las em segredo, levando-as a procurar soluções nas quais
a verdade advinhada mescla-se da forma mais extravagante a grotescas
falsidades, e a trocar entre si informações furtivas em que o sexo é
apresentado como uma coisa horrível e nauseante, em conseqüência do sentimento
de culpa dos jovens curiosos. Valeria a pena coletar e examinar essas teorias
sexuais infantis. Daí em diante as crianças, em geral, deixam de ter diante do
sexo a única atitude adequada, e muitas nunca irão recuperá-la.
Parece
que a grande maioria dos autores, homens e mulheres, que escrevem sobre o
esclarecimento sexual da juventude, conclui em seu favor. Contudo, a inépcia da
maior parte de suas propostas quanto ao momento e ao modo de realizar esse
esclarecimento leva-nos a pensar que tiveram dificuldade de chegar a uma
conclusão. Entre as obras que conheço sobre o assunto, distingue-se, com
brilhante exceção, a encantadora carta de explicação que uma certa Frau Emma
Eckstein cita como tendo sido escrita por ela ao filho de dez anos. O método
habitualmente utilizado não é, obviamente, o correto: oculta-se das crianças
todo conhecimento sexual pelo maior tempo possível, e então, em termos pomposos
e solenes, a verdade, ou melhor, uma meia verdade, lhes é revelada de uma só
vez, em geral demasiado tarde. A maior parte das respostas à pergunta ‘Como
contar a meus filhos?’ dá, pelo menos a mim, uma impressão tão lamentável que
eu preferiria que os pais não se ocupassem desse esclarecimento. O que
realmente importa é que as crianças nunca sejam levadas a pensar que desejamos
fazer mais mistério dos fatos da vida sexual do que de qualquer outro assunto
ainda não acessível à sua compreensão; para nos assegurarmos disso, é
necessário que, de início, tudo que se referir à sexualidade seja tratado como
os demais fatos dignos de conhecimento. Acima de tudo, é dever das escolas não
evitar a menção dos assuntos sexuais. Os fatos básicos da reprodução e sua
significação deviam ser incluídos nas lições sobre o reino animal, e ao mesmo
tempo deveria ser enfatizado que o homem compartilha o essencial de sua
organização com os animais superiores. Então, desde que o ambiente familiar da
criança não tenda a refrear diretamente o pensamento infantil através da
intimidação, é provável que ocorra com maior freqüência o que certa vez ouvi
por acaso entre crianças. Um menino disse à irmãzinha: ‘Como é que você pode
acreditar que as cegonhas trazem os bebês? Não sabe que o homem é mamífero?
Será que você também acredita que a cegonha traga os filhotes de todos os
mamíferos?’
A
curiosidade da criança nunca atingirá uma intensidade exagerada se for
adequadamente satisfeita a cada etapa de sua aprendizagem. Assim, no final do
curso elementar [Volksschule], antes que inicie o curso intermediário [Mittelschule],
isto é, em torno dos dez anos de idade, a criança deveria ser esclarecida sobre
os fatos específicos da sexualidade humana e sobre a significação social desta.
A época da confirmação seria a mais adequada para instruir a criança, que a
essa altura deverá ter um completo conhecimento de todos os fatos físicos,
sobre as obrigações morais que estão associadas à satisfação real do instinto.
Um esclarecimento sobre a vida sexual que se desenvolva de forma gradual, nos
moldes que acima descrevemos, sem interrupções e por iniciativa da própria
escola, parece-nos ser o único que leva em conta o desenvolvimento da criança e
que consegue evitar os perigos que estão envolvidos.
Considero
um avanço muito significativo na educação infantil que na França o Estado tenha
introduzido, em lugar do catecismo, um manual que dá à criança as primeiras
noções de sua situação como cidadão e dos deveres éticos que deverá assumir
mais tarde. No entanto, essa educação elementar continuará com sérias
deficiências enquanto não abranger o campo da sexualidade. Esta é uma lacuna
que deveria merecer a atenção dos educadores e reformadores. Nos países onde
colocaram a educação das crianças total ou parcialmente nas mãos do clero será,
naturalmente, impossível levantar o problema. Um sacerdote nunca admitirá que
os homens e os animais tenham a mesma natureza, pois não pode abdicar da imortalidade
da alma, que lhe é necessária como base de seus preceitos morais. Mais uma vez
vemos aqui a insensatez de colocar um único remendo de seda num casaco
esfarrapado, isto é, a impossibilidade de efetuar uma reforma isolada sem
alterar as bases de todo o sistema.
ESCRITORES
CRIATIVOS E DEVANEIO (1908 [1907])
NOTA DO EDITOR INGLÊS
DER
DICHTER UND DAS PHANTASIEREN
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
(1907 6
de dezembro. Pronunciado como conferência)
1908 Neue
Revue, 1 (10) [março], 716-2.
1909 S.K.S.N.,
2,197-206 (1912, 2ª ed.; 1921, 3ª ed.)
1924 G.S. 10, 229-239.
1924 Dichtung und Kunst, 3-14.
1941 G.W.,
7, 213-223.
(b)
TRADUÇÃO INGLESA:
‘The Relation of the Poet to Day-Dreaming’
1925 C.P., 4, 172-183. (Trad. de I. F. Frant
Duff.)
A
presente tradução, com um título alterado, é uma versão modificada da publicada
em 1925.
Este
trabalho foi originalmente pronunciado como conferência a 6 de dezembro de
1907, diante de uma platéia de noventa pessoas, nos salões do editor e livreiro
vienense Hugo Heller, que também era membro da Sociedade Psicanalítica de
Viena. Um minucioso resumo da conferência apareceu, no dia seguinte, no diário
vienense Die Zeit, mas a versão completa de Freud foi publicada pela
primeira vez no início de 1908, num novo periódico literário de Berlim.
Alguns
problemas da literatura criativa haviam sido mencionados pouco antes no estudo
de Freud sobre Gradiva (por exemplo, em [1]), e cerca de um ou dois anos
antes ele examinara a questão em um ensaio não publicado sobre ‘Tipos Psicopáticos
no Palco’ (1924a [1905]). O interesse principal deste artigo, como do
que se segue, escrito na mesma época, reside no exame das fantasias.
ESCRITORES CRIATIVOS E DEVANEIOS
Nós,
leigos, sempre sentimos uma intensa curiosidade - como o Cardeal que fez uma
idêntica indagação a Ariosto - em saber de que fontes esse estranho ser, o
escritor criativo, retira seu material, e como consegue impressionar-nos com o
mesmo e despertar-nos emoções das quais talvez nem nos julgássemos capazes.
Nosso interesse intensifica-se ainda mais pelo fato de que, ao ser interrogado,
o escritor não nos oferece uma explicação, ou pelo menos nenhuma satisfatória;
e de forma alguma ele é enfraquecido por sabermos que nem a mais clara
compreensão interna (insight) dos determinantes de sua escolha de
material e da natureza da arte de criação imaginativa em nada irá contribuir
para nos tornar escritores criativos.
Se ao
menos pudéssemos descobrir em nós mesmos ou em nossos semelhantes uma atividade
afim à criação literária! Uma investigação dessa atividade nos daria a
esperança de obter as primeiras explicações do trabalho criador do escritor. E,
na verdade, essa perspectiva é possível. Afinal, os próprios escritores
criativos gostam de diminuir a distância entre a sua classe e o homem comum,
assegurando-nos com muita freqüência de que todos, no íntimo, somos poetas, e
de que só com o último homem morrerá o último poeta.
Será que
deveríamos procurar já na infância os primeiros traços de atividade
imaginativa? A ocupação favorita e mais intensa da criança é o brinquedo ou os
jogos. Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta como
um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os
elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade? Seria errado supor que
a criança não leva esse mundo a sério; ao contrário, leva muito a sério a sua
brincadeira e dispende na mesma muita emoção. A antítese de brincar não é o que
é sério, mas o que é real. Apesar de toda a emoção com que a criança catexiza seu
mundo de brinquedo, ela o distingue perfeitamente da realidade, e gosta de
ligar seus objetos e situações imaginados às coisas visíveis e tangíveis do
mundo real. Essa conexão é tudo o que diferencia o ‘brincar’ infantil do
‘fantasiar’.
O
escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de
fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande
quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a
realidade. A linguagem preservou essa relação entre o brincar infantil e a
criação poética. Dá [em alemão] o nome de ‘Spiel‘ [‘peça’] às formas
literárias que são necessariamente ligadas a objetos tangíveis e que podem ser
representadas. Fala em ‘Lustspiel‘ ou ‘Trauerspiel‘ [‘comédia’ e ‘tragédia’:
literalmente, ‘brincadeira prazerosa’ e ‘brincadeira lutuosa’], chamando os que
realizam a representação de ‘Schauspieler‘ [‘atores’: literalmente,
‘jogadores de espetáculo’]. A irrealidade do mundo imaginativo do escritor tem,
porém, conseqüências importantes para a técnica de sua arte, pois muita coisa
que, se fosse real, não causaria prazer, pode proporcioná-lo como jogo de
fantasia, e muitos excitamentos que em si são realmente penosos, podem
tornar-se uma fonte de prazer para os ouvintes e espectadores na representação
da obra de um escritor.
Existe
uma outra circunstância que nos leva a examinar por mais alguns instantes essa
oposição entre a realidade e o brincar. Quando a criança cresce e pára de
brincar, após esforçar-se por algumas décadas para encarar as realidades da
vida com a devida seriedade, pode colocar-se certo dia numa situação mental em
que mais uma vez desaparece essa oposição entre o brincar e a realidade. Como
adulto, pode refletir sobre a intensa seriedade com que realizava seus jogos na
infância, equiparando suas ocupações do presente, aparentemente tão sérias, aos
seus jogos de criança, pode livrar-se da pesada carga imposta pela vida e
conquistar o intenso prazer proporcionado pelo humor.
Ao
crescer, as pessoas param de brincar e parecem renunciar ao prazer que obtinham
do brincar. Contudo, quem compreende a mente humana sabe que nada é tão difícil
para o homem quanto abdicar de um prazer que já experimentou. Na realidade,
nunca renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra. O que parece ser
uma renúncia é, na verdade, a formação de um substituto ou sub-rogado. Da mesma
forma, a criança em crescimento, quando pára de brincar, só abdica do elo com
os objetos reais; em vez de brincar, ela agora fantasia. Constrói
castelos no ar e cria o que chamamos de devaneios. Acredito que a
maioria das pessoas construa fantasias em algum período de suas vidas. Este é
um fato a que, por muito tempo, não se deu atenção, e cuja importância não foi,
assim, suficientemente considerada.
As
fantasias das pessoas são menos fáceis de observar do que o brincar das
crianças. A criança, é verdade, brinca sozinha ou estabelece um sistema
psíquico fechado com outras crianças, com vistas a um jogo, mas mesmo que não
brinque em frente dos adultos, não lhes oculta seu brinquedo. O adulto, ao
contrário, envergonha-se de suas fantasias, escondendo-as das outras pessoas.
Acalenta suas fantasias como seu bem mais íntimo, e em geral preferiria
confessar suas faltas do que confiar a outro suas fantasias. Pode acontecer,
conseqüentemente, que acredite ser a única pessoa a inventar tais fantasias,
ignorando que criações desse tipo são bem comuns nas outras pessoas. A
diferença entre o comportamento da pessoa que brinca e da fantasia é explicada
pelos motivos dessas duas atividades, que, entretanto, são subordinadas uma à
outra.
O
brincar da criança é determinado por desejos: de fato, por um único desejo -
que auxilia o seu desenvolvimento -, o desejo de ser grande e adulto. A criança
está sempre brincando ‘de adulto’, imitando em seus jogos aquilo que conhece da
vida dos mais velhos. Ela não tem motivos para ocultar esse desejo. Já com o
adulto o caso é diferente. Por um lado, sabe que dele se espera que não
continue a brincar ou a fantasiar, mas que atue no mundo real; por outro lado,
alguns dos desejos que provocaram suas fantasias são de tal gênero que é
essencial ocultá-las. Assim, o adulto envergonha-se de suas fantasias por serem
infantis e proibidas.
Mas,
indagarão os senhores, se as pessoas fazem tanto mistério a respeito do seu
fantasiar, como os conhecemos tão bem? É que existe uma classe de seres humanos
a quem, não um deus, mas uma deusa severa - a Necessidade - delegou a tarefa de
revelar aquilo de que sofrem e aquilo que lhes dá felicidade. São as vítimas de
doenças nervosas, obrigadas a revelar suas fantasias, entre outras coisas, ao
médico por quem esperam ser curadas através de tratamento mental. É esta a
nossa melhor fonte de conhecimento, e desde então sentimo-nos justificados em
supor que os nossos pacientes nada nos revelam que não possamos também ouvir de
pessoas saudáveis.
Vamos
agora examinar algumas características do fantasiar. Podemos partir da tese de
que a pessoa feliz nunca fantasia, somente a insatisfeita. As forças
motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a
realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória. Os desejos
motivadores variam de acordo com o sexo, o caráter e as circunstâncias da
pessoa que fantasia, dividindo-se naturalmente em dois grupos principais: ou
são desejos ambiciosos, que se destinam a elevar a personalidade do sujeito, ou
são desejos eróticos. Nas mulheres jovens predominam, quase com exclusividade,
os desejos eróticos, sendo em geral sua ambição absorvida pelas tendências
eróticas. Nos homens jovens os desejos egoístas e ambiciosos ocupam o primeiro
plano, de forma bem clara, ao lado dos desejos eróticos. Mas não acentuaremos a
oposição entre essas duas tendências, preferindo salientar o fato de que estão
freqüentemente unidas. Assim como em muitos retábulos em que é visível num
canto qualquer o retrato do doador, na maioria das fantasias de ambição podemos
descobrir em algum canto a dama a que seu criador dedicou todos aqueles feitos
heróicos e a cujos pés deposita seus triunfos. Veremos que aqui existem motivos
bem fortes para ocultamento; à jovem bem educada só é permitido um mínimo de
desejos eróticos, e o rapaz tem de aprender a suprimir o excesso de auto-estima
remanescente de sua infância mimada, para que possa encontrar seu lugar numa
sociedade repleta de outros indivíduos com idênticas reivindicações.
Não
devemos supor que os produtos dessa atividade imaginativa - as diversas
fantasias, castelos no ar e devaneios - sejam estereotipados ou inalteráveis.
Ao contrário, adaptam-se às impressões mutáveis que o sujeito tem da vida,
alterando-se a cada mudança de sua situação e recebendo de cada nova impressão
ativa uma espécie de ‘carimbo de data de fabricação.’ A relação entre a
fantasia e o tempo é, em geral, muito importante. É como se ela flutuasse entre
três tempos - os três momentos abrangidos pela nossa ideação. O trabalho mental
vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora no presente que
foi capaz de despertar um dos desejos principais do sujeito. Dali, retrocede à
lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual esse
desejo foi realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a
realização do desejo. O que se cria então é um devaneio ou fantasia, que encerra
traços de sua origem a partir da ocasião que o provocou e a partir da
lembrança. Dessa forma o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo
fio do desejo que os une.
Um
exemplo bastante comum pode servir para tornar claro o que eu disse. Tomemos o
caso de um pobre órfão que se dirige a uma firma onde talvez encontre trabalho.
A caminho, permite-se um devaneio adequado à situação da qual este surge. O
conteúdo de sua fantasia talvez seja, mais ou menos, o que se segue. Ele
consegue o emprego, conquista as boas graças do novo patrão, torna-se
indispensável, é recebido pela família do patrão, casa-se com sua encantadora
filha, é promovido a diretor da firma, primeiro na posição de sócio do seu
chefe, e depois como seu sucessor. Nessa fantasia, o sonhador reconquista o que
possui em sua feliz infância: o lar protetor, os pais amantíssimos e os
primeiros objetos do seu afeto. Esse exemplo mostra como o desejo utiliza uma
ocasião do presente para construir, segundo moldes do passado, um quadro do futuro.
Há muito
mais a dizer sobre as fantasias, mas limitar-me-ei a salientar aqui, de forma
sucinta, mais alguns aspectos. Quando as fantasias se tornam exageradamente
profusas e poderosas, estão assentes as condições para o desencadeamento da
neurose ou da psicose. As fantasias também são precursoras mentais imediatas
dos penosos sintomas que afligem nossos pacientes, abrindo-se aqui um amplo
desvio que conduz à patologia.
Não
posso ignorar a relação entre as fantasias e o sonhos. Nossos sonhos noturnos nada
mais são do que fantasias dessa espécie, como podemos demonstrar pela
interpretação de sonhos. A linguagem, com sua inigualável sabedoria, há muito
lançou luz sobre a natureza básica dos sonhos, denominando de ‘devaneios’ as
etéreas criações da fantasia. Se, apesar desse indício, geralmente permanece
obscuro o significado de nossos sonhos, isto é por causa da circunstância de
que à noite também surgem em nós desejos de que nos envergonhamos; têm de ser
ocultos de nós mesmos, e foram conseqüentemente reprimidos, empurrados para o
inconsciente. Tais desejos reprimidos e seus derivados só podem ser expressos
de forma muito distorcida. Depois que trabalhos científicos conseguiram
elucidar o fator de distorção onírica, foi fácil constatar que os sonhos
noturnos são realização de desejos, da mesma forma que os devaneios - as
fantasias que todos conhecemos tão bem.
Deixemos
agora as fantasias e passemos ao escritor criativo. Acaso é realmente válido
comparar o escritor imaginativo ao ‘sonhador em plena luz do dia’, e suas
criações com os devaneios? Inicialmente devemos estabelecer uma distinção,
separando os escritores que, como os antigos poetas egípcios e trágicos,
utilizam temas preexistentes, daqueles que parecem criar o próprio material.
Vamos examinar esses últimos, e, para os nossos fins, não escolheremos os mais
aplaudidos pelos críticos, mas os menos pretensiosos autores de novelas,
romances e contos, que gozam, entretanto, da estima de um amplo círculo de
leitores entusiastas de ambos os sexos. Nas criações desses escritores um
aspecto salienta-se de forma irrefutável: todas possuem um herói, centro do
interesse, para quem o autor procura de todas as maneiras possíveis dirigir a
nossa simpatia, e que parece estar sob a proteção de uma Providência especial.
Se ao fim de um capítulo deixamos o herói ferido, inconsciente e esvaindo-se em
sangue, com certeza o encontraremos no próximo cuidadosamente assistido e
próximo da recuperação. Se o primeiro volume termina com o naufrágio do herói,
no segundo logo o veremos milagrosamente salvo, sem o que a história não
poderia prosseguir. O sentimento de segurança com que acompanhamos o herói
através de suas perigosas aventuras é o mesmo com que o herói da vida real
atira-se à água para salvar um homem que se afoga, ou se expõe à artilharia
inimiga para investir contra uma bateria. Este é o genuíno sentimento heróico,
expresso por um dos nossos melhores escritores numa frase inimitável. ‘Nada me
pode acontecer’! Parece-me que através desse sinal revelador de invulnerabilidade,
podemos reconhecer de imediato Sua Majestade o Ego, o herói de todo devaneio e
de todas as histórias.
Outros
traços típicos dessas histórias egocêntricas revelam idêntica afinidade. O fato
de que todas as personagens femininas se apaixonam invariavelmente pelo herói
não pode ser encarado como um retrato da realidade, mas será de fácil
compreensão se o encararmos como um componente necessário do devaneio. O mesmo
aplica-se ao fato de todos os demais personagens da história dividirem-se
rigidamente em bons e maus, em flagrante oposição à verdade de caracteres
humanos observáveis na vida real. Os ‘bons’ são aliados do ego que se tornou o
herói da história, e os ‘maus’ são seus inimigos e rivais.
Sabemos
que muitas obras imaginativas guardam boa distância do modelo do devaneio
ingênuo, mas não posso deixar de suspeitar que até mesmo os exemplos mais
afastados daquele modelo podem ser ligados ao mesmo através de uma seqüência
ininterrupta de casos transicionais. Notei que, na maioria dos chamados
‘romances psicológicos’, só uma pessoa - o herói - é descrita anteriormente,
como se o autor se colocasse em sua mente e observasse as outras personagens de
fora. O romance psicológico, sem dúvida, deve sua singularidade à inclinação do
escritor moderno de dividir seu ego, pela auto-observação, em muitos egos
parciais, e em conseqüência personificar as correntes conflitantes de sua
própria vida mental por vários heróis. Certos romances, que poderíamos
classificar de ‘excêntricos’, parecem contrapor-se ao devaneio modelo. Nestes,
a pessoa apresentada como herói desempenha um papel muito pouco ativo; vê os
atos e sofrimentos das demais pessoas como espectador. Muitos dos últimos
romances de Zola pertencem a essa categoria. Mas devo assinalar que a análise
psicológica de indivíduos que não são escritores criativos, e que em alguns
aspectos se afastam da norma, mostrou-nos variações análogas do devaneio, nos
quais o ego se contenta com o papel de espectador.
Para que
nossa comparação do escritor imaginativo com o homem que devaneia e da criação
poética com o devaneio tenha algum valor é necessário, acima de tudo, que se
revele frutuosa, de uma forma ou de outra. Tentemos, por exemplo, aplicar à
obra desses autores a nossa tese anterior referente à relação entre a fantasia
e os três períodos de tempo, e o desejo que o entrelaça; e com seu auxílio
estudemos as conexões existentes entre a vida do escritor e suas obras. Em
geral, até agora não se formou uma idéia concreta da natureza dos resultados
dessa investigação, e com freqüência fez-se da mesma uma concepção simplista. À
luz da compreensão interna (insight) de tais fantasias, podemos encarar
a situação como se segue. Uma poderosa experiência no presente desperta no
escritor criativo uma lembrança de uma experiência anterior (geralmente de sua
infância), da qual se origina então um desejo que encontra realização na obra
criativa. A própria obra revela elementos da ocasião motivadora do presente e
da lembrança antiga.
Não se
alarmem ante a complexidade dessa fórmula. Na verdade suspeito que a mesma irá
revelar-se como um esquema muito insuficiente. Entretanto, mesmo assim talvez
ofereça uma primeira aproximação do verdadeiro estado de coisas; por
experiências que realizei, inclino-me a pensar que essa visão das obras
criativas pode produzir seus frutos. Não se esqueçam que a ênfase colocada nas
lembranças infantis da vida do escritor - ênfase talvez desconcertante -
deriva-se basicamente da suposição de que a obra literária, como o devaneio, é
uma continuação, ou um substituto, do que foi o brincar infantil.
Não
devemos esquecer, entretanto, de examinar aquele outro gênero de obras
imaginativas, que não são uma criação original do autor, mas uma reformulação
de material preexistente e conhecido (ver em [1]). Mesmo nessas obras o
escritor conserva uma certa independência que se manifesta na escolha do
material e nas alterações do mesmo, às vezes muito amplas. Embora esse material
não seja novo, procede do tesouro popular dos mitos, lendas e contos de fadas.
Ainda está incompleto o estudo de tais construções da psicologia dos povos, mas
é muito provável que os mitos, por exemplo, sejam vestígios distorcidos de
fantasias plenas de desejos de nações inteiras, os sonhos seculares da
humanidade jovem.
Poderão
dizer que, embora eu tenha colocado o escritor criativo em primeiro lugar no
título deste artigo, me ocupei menos dele que das fantasias. Reconheço o fato,
e devo tentar desculpar-me alegando o estado atual de nossos conhecimentos.
Pude apenas oferecer certos encorajamentos e sugestões que, partindo do estudo
das fantasias, levaram ao problema da escolha do material literário pelo
escritor. Quanto ao outro problema - como o escritor criativo consegue em nós
os efeitos emocionais provocados por suas criações -, ainda não o tocamos. Mas
gostaria, ao menos, de indicar-lhes o caminho que do nosso exame das fantasias
conduz aos problemas dos efeitos poéticos.
Devem
estar lembrados de que eu disse (ver a partir de [1]) que o indivíduo que
devaneia oculta cuidadosamente suas fantasias dos demais, porque sente ter
razões para se envergonhar das mesmas. Devo acrescentar agora que, mesmo que
ele as comunicasse para nós, o relato não nos causaria prazer. Sentiríamos
repulsa, ou permaneceríamos indiferentes ao tomar conhecimento de tais
fantasias. Mas quando um escritor criativo nos apresenta suas peças, ou nos
relata o que julgamos ser seus próprios devaneios, sentimos um grande prazer,
provavelmente originário da confluência de muitas fontes. Como o escritor o
consegue constitui seu segredo mais íntimo. A verdadeira ars poetica
está na técnica de superar esse nosso sentimento de repulsa, sem dúvida ligado
às barreiras que separam cada ego dos demais. Podemos perceber dois dos métodos
empregados por essa técnica. O escritor suaviza o caráter de seus devaneios
egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer
puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas
fantasias. Denominamos de prêmio de estímulo ou de prazer preliminar ao
prazer desse gênero, que nos é oferecido para possibilitar a liberação de um
prazer ainda maior, proveniente de fontes psíquicas mais profundas. Em minha
opinião, todo prazer estético que o escritor criativo nos proporciona é da
mesma natureza desse prazer preliminar, e a verdadeira satisfação que
usufruímos de uma obra literária procede de uma libertação de tensões em nossas
mentes. Talvez até grande parte desse efeito seja devida à possibilidade que o
escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios
devaneios, sem auto-acusações ou vergonha. Isso nos leva ao limiar de novas e
complexas investigações, mas também, pelo menos no momento, ao fim deste exame.
FANTASIAS
HISTÉRICAS E SUA RELAÇÃO COM A BISSEXUALIDADE (1908)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
HYSTERISCHE
PHANTASIEN UND IHRE BEZIEHUNG ZUR BISEXUALITÄT
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1908
Z. Sexualwiss., 1 (1) [janeiro], 27-34.
1909 S.K.S.N.,
2, 138-145. (1912, 2ª ed.; 1921, 3ª ed.)
1924 G.S., 5, 246-254.
1941 G.W., 7, 191-199.
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
‘Hysterical Fancies and their Relation to
Bisexuality’
1909 S.P.H;
194-200. (Trad. de A.A.Brill.) (1912, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.)
‘Hysterical Phantasies and their Relation to
Bisexuality’
1924 C.P.,
2, 51-48. (Trad. de D. Bryan.)
A
presente tradução é uma revisão da publicada em 1924.
Este
artigo foi escrito originalmente para o Jahrbuch für sexuelle Zwischenstufen
de Hirschfeld, sendo transferido para um novo periódico recém-lançado pelo
mesmo editor. Em 1897, no decurso de sua auto-análise, Freud percebera pela
primeira vez a importância das fantasias como bases dos sintomas histéricos.
Embora fizesse uma comunicação particular de suas descobertas a Fliess (ver,
por exemplo, suas cartas de 7 de julho e 21 de setembro de 1897: Freud, 1950a,
Cartas 66 e 69), só as publicou integralmente dois anos antes de escrever o
presente artigo. (Ver Freud, 1906a), em [1], 1972.) A parte principal deste
artigo é um novo exame da relação entre fantasias e sintomas; apesar do título,
o tópico da bissexualidade surge quase como uma reflexão secundária. Deve ser
assinalado, aliás, que o assunto das fantasias parece ser um tema dominante na
mente de Freud na época deste artigo. Elas são novamente abordadas nos artigos
sobre ‘As Teorias Sexuais das Crianças’ (ver em [2]), sobre ‘Romances
Familiares’ (ver em [3]), sobre ‘Escritores Criativos e Devaneio’ (ver em [4])
e sobre ‘Ataques Histéricos’ (ver em [5]), assim como em muitos trechos do estudo
de Gradiva (e.g. em [6]). Grande parte do material do presente artigo
naturalmente já fora examinada. Ver, por exemplo, a análise de ‘Dora’ (1905e
[1901]), ver a partir de [7], 1972, e os Três Ensaios (1905d),
ver a partir de [8].
FANTASIAS HISTÉRICAS E SUA RELAÇÃO COM A BISSEXUALIDADE
Estamos
familiarizados com as imaginações delirantes do paranóico acerca da grandeza ou
dos sofrimentos do seu próprio eu (self), que aparecem em formas bem
típicas e quase monótonas. Conhecemos também, através de numerosos relatos, os
estranhos desempenhos pelos quais certos pervertidos encerram sua satisfação
sexual, ou em idéia ou na realidade. Entretanto, talvez seja novidade para
alguns leitores o fato de que estruturas psíquicas análogas estão presentes regularmente
em todas as psiconeuroses, em particular na histeria, e de que podemos
demonstrar terem essas estruturas - conhecidas como fantasias histéricas -
importantes ligações com a acusação dos sintomas neuróticos.
Todas
essas criações de fantasia têm sua fonte comum e seu protótipo normal nos
chamados devaneios da juventude. Estes já foram examinados, embora
insuficientemente, na literatura do assunto. Ocorrem talvez com igual
freqüência em ambos os sexos, sendo invariavelmente de natureza erótica nas jovens
e mulheres, enquanto nos homens são tanto ambiciosos como eróticos. Não se
deve, entretanto, atribuir uma importância secundária ao fator erótico nos
homens; se investigarmos mais de perto os devaneios de um homem, veremos que
seus feitos heróicos e seus triunfos só têm por finalidade agradar a uma mulher
para que ela o prefira aos outros homens. Essas fantasias são satisfações de
desejos originários de privações e anelos. São com justiça denominadas de
‘devaneios’, já que nos dão a chave para uma compreensão dos sonhos noturnos -
nos quais o núcleo da formação onírica não consiste em nada mais do que em
fantasias diurnas complicadas, que foram distorcidas e que são mal
compreendidas pela instância psíquica consciente.
Esses
devaneios são catexizados com um vivo interesse; são acalentados carinhosamente
pelo sujeito e em geral ocultos com muita sensibilidade. É fácil perceber na
rua uma pessoa absorta num devaneio: fala sozinha, sorri subitamente distraída
ou apressa o passo no momento em que a situação imaginada atinge o clímax. Todo
ataque histérico que até hoje investiguei revelou a irrupção involuntária de
tais devaneios, pois nossas observações não deixam dúvidas que tais fantasias
tanto podem ser inconscientes como conscientes. Quando as últimas tornam-se
inconscientes, podem tornar-se também patogênicas, isto é, podem expressar-se
através de sintomas e ataques. Em circunstâncias favoráveis o sujeito ainda
logra apreender uma tal fantasia inconsciente na consciência. Depois que chamei
a atenção de uma das minhas pacientes para suas fantasias, ela me contou ter-se
surpreendido em lágrimas na rua e, ao refletir no mesmo instante sobre o motivo
deste pranto, ter conseguido capturar a fantasia que se segue. Em sua
imaginação, ligara-se amorosamente a um conhecido pianista de sua cidade
(embora não o conhecesse pessoalmente); em seguida fora abandonada, com o filho
que tivera com ele (na verdade não tinha filhos), ficando na miséria. Fora
nesse momento de sua fantasia que irrompera em lágrimas.
As
fantasias inconscientes podem ter sido sempre inconscientes e formadas no
inconsciente; ou, o que acontece com maior freqüência, foram inicialmente
fantasias conscientes, devaneios, desde então deliberadamente esquecidas,
tornando-se inconscientes através da ‘repressão’. O conteúdo delas pode,
posteriormente, ter permanecido o mesmo ou sofrido alterações, de modo que as
fantasias inconscientes atuais são derivadas das conscientes. Uma fantasia
inconsciente tem uma conexão muito importante com a vida sexual do sujeito,
pois é idêntica à fantasia que serviu para lhe dar satisfação sexual durante um
período de masturbação. Nesse período, o ato masturbatório (no sentido mais
amplo da palavra) compunha-se de duas partes. Uma era a evocação de uma
fantasia e a outra um comportamento ativo para, no momento culminante da
fantasia, obter autogratificação. Como sabemos, esse composto estava em si
simplesmente soldado junto. Originalmente o ato era um processo puramente
auto-erótico que visava obter prazer de uma determinada parte do corpo, que
pode ser denominada de erógena. Mais tarde, esse ato fundiu-se a uma idéia
plena de desejo pertencente à esfera do amor objetal, e serviu como realização
parcial da situação em que culminou a fantasia. Quando, posteriormente, o
sujeito renuncia a esse tipo de satisfação, composto de masturbação e fantasia,
o ato é abandonado, e a fantasia passa de consciente a inconsciente. Se não
obtém outro tipo de satisfação sexual, o sujeito permanece abstinente; se não
consegue sublimar sua libido - isto é, se não consegue defletir sua excitação
sexual para fins mais elevados - estará preenchida a condição para que sua
fantasia inconsciente reviva e se desenvolva, começando a atuar, pelo menos no
que diz respeito a parte de seu conteúdo, com todo o vigor da sua necessidade
de amor, sob a forma de sintoma patológico.
Dessa
forma as fantasias inconscientes são os precursores psíquicos imediatos de toda
uma série de sintomas histéricos. Estes nada mais são do que fantasias
inconscientes exteriorizadas por meio da ‘conversão’; quando os sintomas são
somáticos, com freqüência são retirados do círculo das mesmas sensações sexuais
e inervações motoras que originalmente acompanhavam as fantasias quando estas
ainda eram inconscientes. Assim é anulada a renúncia ao hábito da masturbação e
atingido o propósito de todo o processo patológico, que é o restabelecimento da
satisfação sexual primária original - embora nunca, é verdade, de forma
completa, mas numa espécie de aproximação.
Quem
estudar a histeria, portanto, logo transferirá seu interesse dos sintomas para
as fantasias que lhes deram origem. A técnica da psicanálise nos permite em
primeiro lugar inferir dos sintomas o que essas fantasias inconscientes são, e
então torná-las conscientes para o paciente. Dessa maneira descobriu-se que o
conteúdo das fantasias inconscientes do histérico corresponde em sua totalidade
às situações nas quais os pervertidos obtêm conscientemente satisfação; e se
alguém desejar exemplos de tais situações, basta recordar-se das mundialmente
famosas proezas dos imperadores romanos, cujos selvagens excessos eram
determinados, naturalmente, pelo enorme e irrestrito poder dos autores das
fantasias. Os delírios dos paranóicos são fantasias da mesma natureza, embora
se tenham tornado diretamente conscientes. Dependem dos componentes
sadomasoquistas do instinto sexual, e também podem encontrar um correspondente
completo em certas fantasias inconscientes de sujeitos histéricos. Também
conhecemos casos, com sua importância prática, nos quais os histéricos não dão
expressão às suas fantasias sob a forma de sintomas, mas como realizações
conscientes, e assim tramam e encenam estupros, ataques ou atos de agressão
sexual.
Esse
método de investigação psicanalítica, que dos sintomas visíveis conduz às fantasias
inconscientes ocultas, revela-nos tudo que é possível conhecer sobre a
sexualidade dos psiconeuróticos, inclusive o fato que deve ser o tópico
principal dessa breve publicação preliminar.
Provavelmente
devido às dificuldades que as fantasias inconscientes encontram em seus
esforços de expressão, a relação das fantasias com os sintomas não é simples,
mas, ao contrário, bem complexa. Via de regra, quando a neurose está plenamente
desenvolvida e persiste há algum tempo, um determinado sintoma não corresponde
a uma única fantasia inconsciente, mas a várias fantasias desse gênero, e essa
correspondência não é arbitrária, mas obedece a um padrão regular. Sem dúvida,
no início da doença ainda não se desenvolveram de todo essas complicações.
Considerando
o interesse geral, vou afastar-me neste ponto das diretrizes deste trabalho e
interpolar aqui uma série de fórmulas que tentam oferecer uma visão progressiva
da natureza dos sintomas histéricos. Essas fórmulas não se contradizem, mas
enquanto algumas examinam os fatos de forma cada vez mais completa e precisa,
outras representam a aplicação de pontos de vista diferentes.
(1) Os
sintomas histéricos são símbolos mnêmicos de certas impressões e experiências
(traumáticas) operativas.
(2) Os
sintomas histéricos são substitutos, produzidos por ‘conversão’, para o retorno
associativo dessas experiências traumáticas.
(3) Os
sintomas histéricos são - como outras estruturas psíquicas - uma expressão da
realização de um desejo.
(4) Os
sintomas histéricos são a realização de uma fantasia inconsciente que serve à
realização de um desejo.
(5) Os
sintomas histéricos estão a serviço da satisfação sexual e representam uma
parcela da vida sexual do sujeito (uma parcela que corresponde a um dos
constituintes do seu instinto sexual).
(6) Os
sintomas histéricos correspondem a um retorno a um modo de satisfação sexual
que era real na vida infantil e que desde então tem sido reprimido.
(7) Os
sintomas histéricos surgem como uma conciliação entre dois impulsos afetivos e
instintuais opostos, um dos quais tenta expressar um instinto componente ou um
inconsciente da constituição sexual, enquanto o outro tenta suprimi-lo.
(8) Os
sintomas histéricos podem assumir a representação de vários impulsos
inconscientes que não são sexuais, mas que possuem sempre uma significação
sexual.
Dessas
diversas definições, a sétima descreve de forma mais completa a natureza dos
sintomas histéricos como sendo a realização de uma fantasia inconsciente, e a
oitava concede ao fator sexual a sua devida significação. Algumas das fórmulas
anteriores conduzem a essas duas últimas, estando nelas contidas.
Como
demonstrei em meus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade [1905d],
a conexão entre os sintomas e as fantasias torna fácil chegar da psicanálise
dos primeiros a um conhecimento dos componentes dos instintos sexuais que
dominam o indivíduo. Em alguns casos, entretanto, uma investigação por esses
meios produz resultado inesperado. Mostra que há muitos sintomas onde a
exposição de uma fantasia sexual (ou de várias fantasias, uma das quais, a mais
significativa e primitiva, é de natureza sexual) não é suficiente para efetuar
a resolução dos sintomas. Para resolver isso é necessário ter duas fantasias
sexuais, uma de caráter feminino e outra de caráter masculino. Assim uma dessas
fantasias origina-se de um impulso homossexual. Essa nova descoberta não altera
nossa sétima fórmula. Continua sendo verdade que um sintoma histérico deve
necessariamente representar uma conciliação entre um impulso libidinal e um
impulso repressor, mas pode também representar a união de duas fantasias
libidinais de caráter sexual oposto.
Abster-me-ei
de apresentar exemplos para comprovar essa tese. A experiência ensinou-me que
análises curtas, condensadas em resumos, nunca possuem o efeito persuasório que
desejaríamos que produzissem; por outro lado, relatos de casos longamente
analisados devem ser deixados para outra ocasião.
Portanto,
contentar-me-ei em expor uma nova fórmula e em explicar sua significação.
(9) Os
sintomas histéricos são a expressão, por um lado, de uma fantasia sexual
inconsciente masculina e, por outro lado, de uma feminina.
Devo
ressalvar que não posso reivindicar para essa fórmula a mesma validade geral
que atribuí às outras. A meu ver, ela não se aplica a todos os sintomas de um
caso, nem a todos os casos. Ao contrário, não é difícil encontrar casos em que
os impulsos pertencentes a sexos opostos encontraram expressão sintomática
independente, de modo que os sintomas de heterossexualidade e os de
homossexualidade podem ser tão claramente diferenciados entre si como as
fantasias ocultas por trás deles. Entretanto, a situação descrita na nova
fórmula é bastante comum e suficientemente importante quando ocorre para
merecer uma ênfase especial. Parece-me constituir o mais alto grau de
complexidade que a determinação de um sintoma histérico pode atingir, e que só
esperaríamos encontrar numa neurose de longa duração e já muito organizada.
A
natureza bissexual dos sintomas histéricos, que pode ser demonstrada em
numerosos casos, constitui uma interessante confirmação da minha concepção de
que, na análise dos psiconeuróticos, se evidencia de modo especialmente claro a
pressuposta exigência de uma disposição bissexual inata no homem. Uma situação
exatamente análoga ocorre no mesmo campo quando uma pessoa que se masturba
tenta em suas fantasias conscientes ter tanto os sentimentos do homem quanto os
da mulher na situação por ela concebida. Encontraremos outros correlatos em
certos ataques histéricos nos quais o paciente desempenha simultaneamente ambos
os papéis na fantasia sexual subjacente. Em um caso que observei, por exemplo,
a paciente pressionava o vestido contra o corpo com uma das mãos (como mulher),
enquanto tentava arrancá-lo com a outra (como homem). Essa simultaneidade de
atos contraditórios serve, em grande parte, para obscurecer a situação, que por
outro lado é tão plasticamente retratada no ataque, estando assim em condições
de ocultar a fantasia inconsciente que está em ação.
No
tratamento psicanalítico é extremamente importante estar preparado para
encontrar sintomas com significado bissexual. Assim não ficaremos surpresos ou
confusos se um sintoma parece não diminuir, embora já tenhamos resolvido um dos
seus significados sexuais, pois ele ainda é mantido por um, talvez insuspeito,
que pertence ao sexo oposto. No tratamento de tais casos, além disso, podemos
observar como o paciente se utiliza, durante a análise de um dos significados
sexuais, da conveniente possibilidade de constantemente passar suas associações
para o campo do significado oposto, tal como para uma trilha paralela.
CARÁTER E
EROTISMO ANAL (1908)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
CHARAKTER
UND ANALEROTIK
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1908 Psychiat.-neurol. Wschr., 9 (52) [março],
465-7.
1909 S.K.S.N. 2, 132-7. (1912, 2ª ed.; 1921, 3ª
ed.)
1924 G.S., 5, 261-7.
1931 Sexualtheorie und Traumlehre, 62-8.
1941 G.W.,
7, 203-9.
(b)
TRADUÇÃO INGLESA:
‘Character and Anal Erotism’
1924 C.P., 2, 45-50. (Trad. de R.C. McWatters.)
A
presente tradução é uma versão modificada da publicada em 1924.
O tema
deste artigo já se tornou tão familiar que é difícil conceber a indignação e o
assombro que ele provocou quando de sua primeira publicação. Segundo Ernest
Jones (1955, 331-2), os três traços de caráter que são aqui associados ao
erotismo anal já haviam sido mencionados por Freud em sua carta a Jung de 2 de
outubro de 1906. Também os mencionou em algumas observações dirigidas à
Sociedade Psicanalítica de Viena a 6 de março de 1907. (Ver Minutes, 1.)
Em sua carta a Fliess de 22 de dezembro de 1897 (Freud, 1950a, Carta
79), associara dinheiro e avareza com fezes. Foi a análise do ‘Rat Man’ (1909d),
concluída pouco antes, que em parte, sem dúvida o estimulou a escrever este
artigo. Entretanto, só alguns anos mais tarde viria a examinar a conexão
especial entre o erotismo anal e a neurose obsessiva, em ‘A Disposição à
Neurose Obsessiva’ (1913i). Outro caso clínico, o do ‘Homem dos Lobos’
(1918b [1914]) levou a uma outra ampliação do tema aqui tratado - o
artigo ‘As Transformações do Instinto’ (1917c).
CARÁTER E EROTISMO ANAL
Entre
aqueles que tentamos ajudar com nossos esforços psicanalíticos, freqüentemente
encontramos um certo tipo de indivíduo que se distingue por possuir
determinados traços de caráter, e simultaneamente nossa atenção é atraída pelo
comportamento, em sua infância, de uma de suas funções corporais e pelo órgão
nela envolvido. Não posso agora precisar em que ocasião comecei a ter a
impressão de que havia uma conexão orgânica entre esse tipo de caráter e esse
comportamento de um órgão, mas posso assegurar ao leitor que nessa impressão
não pesou qualquer suposição teórica.
A
experiência acumulada fortaleceu de tal maneira minha crença na existência
dessa conexão que me aventuro agora a torná-la objeto de uma comunicação.
As
pessoas que passarei a descrever distinguem-se por uma combinação regular das três
características que se seguem. Elas são especialmente ordeiras,
parcimoniosas e obstinadas. Cada um desses vocábulos abrange, na
realidade, um pequeno grupo ou série de traços de caráter interligados.
‘Ordeiro’ tanto abrange a noção de esmero individual como o escrúpulo no
cumprimento de pequenos deveres e a fidedignidade. O contrário de ordeiro seria
‘descuidado’ e ‘desordenado’. A parcimônia pode aparecer de forma exagerada
como avareza, e a obstinação pode transformar-se em rebeldia, à qual podem facilmente
associar-se a cólera e os ímpetos vingativos. Essas duas últimas
características, a parcimônia e a obstinação, possuem entre si uma ligação mais
estreita do que com a primeira - a ordem. Elas constituem também o elemento
mais constante de todo o complexo. Parece-me, entretanto, que essas três
características estão indubitavelmente ligadas entre si.
É fácil
inferir da história da primeira infância desses indivíduos que os mesmos
dispenderam um tempo relativamente longo para superar sua incontinencia alvi
[incontinência fecal] infantil, e que na infância posterior sofreram falhas
isoladas nessa função. Quando bebês, parecem ter pertencido ao grupo que se
recusa a esvaziar os intestinos ao ser colocado no urinol, porque obtém um
prazer suplementar do ato de defecar, pois nos revelam que em anos posteriores
gostavam de reter as fezes, e se lembram - embora atribuam o fato mais
facilmente em relação a irmãos e irmãs do que a si mesmos - de ter feito toda
uma série de coisas indecorosas com suas fezes. Deduzimos de tais indicações
que essas pessoas nasceram com uma constituição sexual na qual o caráter
erógeno da zona anal é excepcionalmente forte. Mas como não há resquícios
dessas fraquezas e idiossincrasias após o término de suas infâncias, devemos
concluir que no decurso do seu desenvolvimento a zona anal perdeu sua
significação erógena. É de se suspeitar que a regularidade com que essa tríade
de propriedades apresenta-se no caráter dessas pessoas possa ser relacionada
com o desaparecimento do erotismo anal.
Sei que
ninguém está disposto a dar crédito a uma situação enquanto a mesma se afigura
ininteligível e não passível de explicação. Contudo, com a ajuda dos postulados
que expus em 1905 em meus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade,
podemos ao menos nos aproximar dos seus fatores básicos. Tentei demonstrar
nesses ensaios que o instinto sexual do homem é altamente complexo e resultante
da contribuição de numerosos constituintes e instintos componentes. A
‘excitação sexual’ recebe importantes contribuições das excitações periféricas
de determinadas partes do corpo (os genitais, a boca, o ânus, a uretra), que
assim merecem a designação especial de ‘zonas erógenas’. Mas as quantidades de
excitação que provêm dessas partes do corpo não sofrem as mesmas vicissitudes,
nem têm destino igual em todos os períodos da vida. De modo geral, só uma
parcela dela é utilizada na vida sexual; outra parte é defletida dos fins
sexuais e dirigida para outros - um processo que denominamos de ‘sublimação’.
Durante o período de vida que vai do final do quinto ano às primeiras
manifestações da puberdade (por volta dos onze anos) e que pode ser chamado de
período de ‘latência sexual’, criam-se na mente formações reativas, ou
contraforças, como a vergonha, a repugnância e a moralidade. Na verdade surgem
às expensas das excitações provenientes das zonas erógenas e erguem-se como
diques para opor-se às atividades posteriores dos instintos sexuais. Ora, o
erotismo anal é um dos componentes do instinto [sexual] que, no decurso do desenvolimento
e de acordo com a educação que a nossa atual civilização exige, se tornarão
inúteis para os fins sexuais. Portanto, é plausível a suposição de que esses
traços de caráter - a ordem, a parcimônia e a obstinação -, com freqüência
relevantes nos indivíduos que anteriormente eram anal-eróticos, sejam os
primeiros e mais constantes resultados da sublimação do erotismo anal. A
limpeza, a ordem e a fidedignidade dão exatamente a impressão de uma formação
reativa contra um interesse pela imundície perturbadora que não deveria
pertencer ao corpo. (‘Dirt is matter in the wrong place.’). Já não é fácil a
tarefa de relacionar a obstinação com um interesse pela defecação, mas devíamos
lembrar que até mesmo um bebê pode mostrar vontade própria quando se trata do
ato de defecar, como vimos acima (ver em [1]), e que é costume bastante
difundido na educação da criança administrar estímulos dolorosos à pele das
nádegas - ligada à zona erógena anal - para quebrar a obstinação da criança e
torná-la submissa. Ainda persiste hoje o convite a uma carícia na zona anal,
como expressão de desafio ou desprezo, convite esse que corresponde na
realidade a um ato de ternura que sucumbiu à repressão. A exibição das nádegas
representa um abrandamento em gesto desse convite verbal. No Götz von
Berlichingen de Goethe aparecem tanto as palavras como o gesto, em momento
apropriado, como expressão de desafio.
As
conexões entre os complexos do apego ao dinheiro e da defecação, aparentemente
tão diversos, afiguram-se as mais extensas. Todo médico que já praticou a
psicanálise sabe que os casos mais antigos e rebeldes daquilo que é descrito
como constipação podem ser curados em neuróticos por essa forma de tratamento,
fato menos surpreendente se recordarmos que essa função também se mostrou
tratável pela sugestão hipnótica. Mas só alcançaremos esse resultado com a
psicanálise se nos ocuparmos do complexo monetário dos pacientes e os
induzirmos a trazê-lo à consciência, como todas as suas conexões. Talvez a
neurose aqui apenas siga um indício fornecido pela linguagem popular, que
qualifica o indivíduo muito apegado ao seu dinheiro de ‘sujo’ ou ‘imundo’. Mas
essa explicação seria demasiadamente superficial. Na realidade, onde quer que
tenham predominado ou ainda persistam as formas arcaicas do pensamento - nas
antigas civilizações, nos mitos, nos contos de fadas e superstições, no
pensamento inconsciente, nos sonhos e nas neuroses - o dinheiro é intimamente
relacionado com a sujeira. Sabemos que o ouro entregue pelo diabo a seus
bem-amados converte-se em excremento após sua partida, e o diabo nada mais é do
que a personificação da vida instintual inconsciente reprimida. Também
conhecemos a superstição que liga a descoberta de um tesouro com a defecação, e
todos estão familiarizados com a figura do ‘cagador de ducados’ [Dukatenscheisser]’.
Na verdade, segundo as antigas doutrinas da Babilônia, o ouro são ‘as fezes do
Inferno’ (Mammon = ilu manman). Assim, aqui como em outras ocasiões, a
neurose, acompanhando os usos da linguagem, toma as palavras no seu sentido
original e significativo; parecendo utilizá-las em seu sentido figurado, está
na realidade simplesmente devolvendo a elas seu sentido primitivo.
É
possível que o contraste existente entre a substância mais preciosa que o homem
conhece e a mais desprezível, que eles rejeitam como matéria inútil (‘refugo’)
tenha levado a essa identificação específica do ouro com fezes.
Ainda
uma outra circunstância facilita essa equação no pensamento neurótico. Sabemos
que o interesse erótico original na defecação está destinado a extinguir-se em
anos posteriores. Nessa ocasião aparece o interesse pelo dinheiro, que não
existia na infância. Isso facilita a transferência da impulsão primitiva, que
estava em processo de perder seu objetivo, para o nosso objetivo emergente.
Se
houver realmente alguma base para a relação que aqui estabelecemos entre o
erotismo anal e essa tríade de traços de caráter, provavelmente não
encontraremos um acentuado grau de ‘caráter anal’ nos indivíduos que
conservaram na vida adulta o caráter erógeno da zona anal, como acontece, por
exemplo, com certos homossexuais. A menos que esteja enganado, a experiência
comprova amplamente essa conclusão.
Devíamos
apreciar se os outros complexos de caráter não revelam também uma conexão com a
excitação de zonas erógenas específicas. Atualmente só tenho conhecimento da
intensa e ‘ardente’ ambição de indivíduos que sofreram anteriormente de
enurese. De qualquer modo, podemos estabelecer uma fórmula para o modo como o
caráter, em sua configuração final, se forma a partir dos instintos
constituintes: os traços de caráter permanentes, são ou prolongamentos
inalterados dos instintos originais, ou sublimação desses instintos, ou
formações reativas contra os mesmos.
MORAL SEXUAL
CIVILIZADA E DOENÇA NERVOSA MODERNA (1908)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
DIE
‘KULTURELLE’ SEXUALMORAL UND DIE MODERNE NERVOSITÄT
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1908 Sexual-Probleme
4 (3) [março], 107-129.
1909 S.K.S.N., 2, 175-196. (1912, 2ª ed.; 1921,
3ª ed.)
1924 G.S., 5, 143-167.
1931 Sexualtheorie und Traumlehre, 17-42.
1941 G.W.,
7, 143-167.
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
‘Modern Sexual Morality and Modern Nervousness’
1915 Amer. J. Urol., 11, 391-405. (Incompleta.)
‘“Civilized“ Sexual Morality and Modern Nervousness’
1924 C.P.,
2, 76-99. (Trad. de E.B. Herford e E. C. Mayne.)
Uma
reimpressão da tradução de 1915 apareceu em forma de panfleto (organizado por
W. J. Robinson) publicado por Eugenics Publications, Nova Iorque, 1931. Ambas
omitem os dez primeiros parágrafos. A presente tradução, com um título
alterado, baseia-se na publicada em 1924.
Sexual-Probleme, o periódico em que apareceram este
artigo e o próximo (ver em [1]), foi o sucessor da revista Mutterschutz,
sob cujo título é às vezes catalogado. A numeração dos volumes não sofreu
interrupção apesar da mudança de título.
Embora
esta seja a primeira das longas exposições de Freud sobre o antagonismo entre
civilização e vida instintual, suas convicções sobre o assunto são muito
anteriores. Por exemplo, num memorando enviado a Fliess em 31 de maio de 1897,
ele escreve que ‘o incesto é anti-social e a civilização consiste na renúncia
progressiva ao mesmo’. (Freud, 1950a,Rascunho N.) Contudo, na verdade,
esse antagonismo estava implícito em toda a sua teoria do impacto do período de
latência sobre o desenvolvimento da sexualidade humana, e nas últimas páginas
dos seus Três Ensaios (1905d) ele mencionou a ‘relação inversa
que existe entre a civilização e o livre desenvolvimento da sexualidade’ (ver
em [1], 1972). O presente artigo é em grande parte um sumário das descobertas
do último trabalho mencionado, que fora publicado apenas três anos antes.
Os
aspectos sociológicos desse antagonismo constituem o tema principal deste
artigo, e Freud voltou freqüentemente ao assunto em seus escritos posteriores.
Sem determo-nos nas alusões passageiras, podemos mencionar as duas últimas
seções do seu segundo artigo sobre a psicologia do amor (1912d), ver a partir
de [2], 1970, as páginas iniciais de O Futuro de uma Ilusão (1927c)
e os parágrafos finais da carta aberta a Einstein, ‘Por que a Guerra?’ (1933b).
No entanto, sua exposição mais longa e mais elaborada do assunto está, sem
dúvida, em O Mal-Estar na Civilização (1930a).
O antigo
problema da tradução da palavra alemã ‘Kultur‘ por ‘cultura’ ou por
‘civilização’ foi resolvido aqui pela escolha ora de um termo ora de outro. Na
verdade os tradutores foram auxiliados por uma observação de Freud no terceiro
parágrafo de O Futuro de uma Ilusão: ‘desprezo ter que distinguir entre
cultura e civilização.’
MORAL SEXUAL CIVILIZADA E DOENÇA NERVOSA MODERNA
Em seu
livro recentemente publicado, Ética Sexual, Von Ehrenfels (1907)
discorre sobre a diferença entre a moral sexual ‘natural’ e a ‘civilizada’. Segundo
ele, devemos entender por moral sexual natural uma moral sexual sob cujo regime
um grupo humano é capaz de conservar sua saúde e eficiência, e por moral sexual
civilizada, uma obediência moral sexual àquilo que, por outro lado, estimula os
homens a uma intensa e produtiva atividade cultural. Esse contraste é mais bem
ilustrado, segundo ele, comparando-se o caráter inato de um povo com suas
realizações culturais. Remeterei o leitor que deseje deter-se no exame dessas
importantes proposições à obra de Von Ehrenfels, limitando-me a colher ali
somente o necessário para alicerçar minha própria contribuição ao assunto.
Não é
arriscado supor que sob o regime de uma moral sexual civilizada a saúde e a
eficiência dos indivíduos esteja sujeita a danos, e que tais prejuízos causados
pelos sacrifícios que lhes são exigidos terminem por atingir um grau tão
elevado, que indiretamente cheguem a colocar também em perigo os objetivos
culturais. Von Ehrenfels atribui, de fato, à moral sexual que hoje rege a nossa
sociedade ocidental numerosos prejuízos, pelos quais responsabiliza diretamente
essa moral; embora reconheça plenamente sua vigorosa influência no
desenvolvimento da civilização, não pode deixar de concluir da necessidade de
uma reforma. Em sua opinião, a singularidade da moral sexual civilizada a que
obedecemos é que as restrições feitas às mulheres por tal sistema são
estendidas à vida sexual masculina, sendo proibida toda relação sexual exceto
dentro do casamento monogâmico. No entanto, as diferenças naturais entre os
sexos impõem sanções menos severas às transgressões masculinas, tornando mesmo
necessário admitir uma moral dupla. Contudo, uma sociedade que aceita
essa moral ambígua não pode levar muito longe o ‘amor à verdade, à honestidade
e à humanidade’ (Von Ehrenfels, ibid., pág. 32 e segs.), e deverá induzir seus
membros à ocultação da verdade, a um falso otimismo, e a enganarem a si
próprios e aos demais. A moral sexual civilizada traz conseqüências ainda mais
graves, pois, glorificando a monogamia, impossibilita a seleção pela virilidade
- único fator que pode aperfeiçoar a constituição do homem, pois entre os povos
civilizados a seleção pela vitalidade foi reduzida a um mínimo pelos
princípios humanitários e pela higiene (ibid., 35).
Entre os
danos acima atribuídos a essa moral sexual civilizada, os médicos terão notado
a falta justamente daquele cuja significação examinaremos no presente artigo.
Refiro-me ao aumento, imputável a essa moral, da doença nervosa moderna, isto
é, da doença nervosa que se difunde rapidamente na sociedade contemporânea.
Ocasionalmente, um desses pacientes nervosos chamará, ele próprio, a atenção do
médico para o papel que o antagonismo existente entre a sua constituição e as
exigências da civilização desempenhou na gênese de sua enfermidade, dizendo:
‘Em nossa família todos tornamo-nos neuróticos porque queríamos ser melhores do
que, com nossa origem, somos capazes de ser.’ Os médicos também encontram
matéria para reflexão no fato de que os indivíduos vitimados por doenças nervosas
são, com freqüência, justamente os filhos de casais procedentes de rudes e
vigorosas famílias camponesas que viviam em condições simples e saudáveis, e
que, fixando-se em cidades, num curto espaço de tempo elevaram seus filhos a um
alto nível cultural. Os próprios neurologistas asseveram enfaticamente que
existe uma relação entre a ‘alta incidência da doença nervosa’ e a moderna vida
civilizada. As bases para tal afirmativa poderão ser encontradas nos
testemunhos de alguns eminentes observadores transcritos a seguir:
W. Erb
(1893): ‘O problema está em determinar se as causas da doença nervosa que lhes
foram expostas estão presentes na vida moderna num grau suficientemente elevado
para explicar o incremento dessa doença. A questão será respondida afirmativamente,
sem hesitações, se fizermos um rápido exame da nossa vida moderna e de seus
aspectos particulares.
‘A
simples enumeração de uma série de fatos gerais já demonstra claramente a nossa
proposição. As extraordinárias realizações dos tempos modernos, as descobertas
e as investigações em todos os setores e a manutenção do progresso, apesar de
crescente competição, só foram alcançados e só podem ser conservados por meio
de um grande esforço mental. Cresceram as exigências impostas à eficiência do
indivíduo, e só reunindo todos os seus poderes mentais ele pode atendê-las.
Simultaneamente, em todas as classes aumentam as necessidades individuais e a
ânsia de prazeres materiais; um luxo sem precedentes atingiu camadas da
população a que até então era totalmente estranho; a irreligiosidade, o
descontentamento e a cobiça intensificam-se em amplas esferas sociais. O
incremento das comunicações resultante da rede telegráfica e telefônica que
envolve o mundo alteraram completamente as condições do comércio. Tudo é pressa
e agitação. A noite é aproveitada para viajar, o dia para os negócios, e até
mesmo as ‘viagens de recreio’ colocam em tensão o sistema nervoso. As crises
políticas, industriais e financeiras atingem círculos muito mais amplos do que
anteriormente. Quase toda a população participa da vida política. Os conflitos
religiosos, sociais e políticos, a atividade partidária, a agitação eleitoral e
a grande expansão dos sindicalismos inflamam os espíritos, exigindo violentos
esforços da mente e roubando tempo à recreação, ao sono e ao lazer. A vida
urbana torna-se cada vez mais sofisticada e intranqüila. Os nervos exaustos
buscam refúgio em maiores estímulos e em prazeres intensos, caindo em ainda
maior exaustão. A literatura moderna ocupa-se de questões controvertidas, que
despertam paixões e encorajam a sensualidade, a fome de prazeres, o desprezo
por todos os princípios éticos e por todos os ideais, apresentando à mente do
leitor personagens patológicas, propondo-lhe problemas de sexualidade
psicopática, temas revolucionários e outros. Nossa audição é excitada e
superestimada por grandes doses de música ruidosa e insistente. As artes
cênicas cativam nossos sentidos com suas representações excitantes, enquanto as
artes plásticas se voltam de preferência para o repulsivo, o feio e o
estimulante, não hesitando em apresentar aos nossos olhos, com nauseante
realismo, as imagens mais horríveis que a vida pode oferecer.
‘Esse
quadro geral que nos indica os numerosos perigos inerentes à evolução da
civilização moderna pode ser completado com alguns detalhes.’
Binswanger
(1896): ‘Designa-se a neurastenia, em especial, como doença fundamentalmente
moderna. Beard, a quem devemos sua primeira descrição minuciosa, acreditava ter
descoberto uma nova doença nervosa oriunda do solo americano. Sem dúvida tal
suposição era errônea; entretanto, o fato de ter sido um médico americano
o primeiro a compreender e a expor os aspectos singulares dessa doença, devido
a uma vasta experiência clínica, revela certamente a íntima conexão entre essa
doença e a vida moderna, com sua desenfreada volúpia de bens materiais e seus
enormes progressos no campo da tecnologia, que destruíram todos os entraves
temporais ou espaciais à intercomunicação.’
Von
Krafft-Ebin (1895): ‘O modo de vida de um sem-número de povos civilizados da
atualidade apresenta uma grande quantidade de aspectos anti-higiênicos que
explicam o nocivo incremento de doenças nervosas, pois esses fatores atuam
primordialmente sobre o cérebro. As transformações ocorridas nas últimas
décadas nas condições políticas e sociais das nações civilizadas, especialmente
no comércio, na indústria e na agricultura, acarretaram grandes mudanças nas
atividades profissionais dos indivíduos, em sua posição social e na propriedade
- tudo isso à custa do sistema nervoso, que deve atender ao aumento das
exigências sociais e econômicas com um maior dispêndio de energia, do qual
freqüentemente tem insuficientes oportunidades de recuperar-se.’
A meu
ver, a deficiência destas e de outras teorias semelhantes está, não em sua
imprecisão, mas no fato de se revelarem insuficientes para explicar as
peculiaridades dos distúrbios nervosos, e de ignorarem justamente o fator
etiológico mais importante. Se deixarmos de lado as modalidades mais leves de
‘nervosismo’ e nos atermos às doenças nervosas propriamente ditas, veremos que
a influência prejudicial da civilização reduz-se principalmente à repressão
nociva da vida sexual dos povos (ou classes) civilizados através da moral
sexual ‘civilizada’ que os rege.
Tentei
expor a comprovação dessa minha afirmação em vários artigos técnicos. Não vou
reapresentá-la aqui, mas farei um resumo dos argumentos mais importantes que
resultaram de minhas investigações.
Cuidadosa
observação clínica permitiu-nos distinguir dois grupos de distúrbios nervosos:
as neuroses propriamente ditas e as psiconeuroses. Nas primeiras,
os distúrbios (sintomas), com efeitos seja no funcionamento somático, seja no
mental, parecem ser de natureza tóxica, comportando-se da mesma forma
que os fenômenos que acompanham o excesso ou a escassez de certos tóxicos
nervosos. Essas neuroses - comumente agrupadas sob a denominação de
‘neurastenia’ - podem resultar de influências nocivas na vida sexual, sem que
seja necessária a presença de taras hereditárias; na verdade, a forma da doença
corresponde à natureza desses males, de modo que, com freqüência, o fator
etiológico sexual pode ser deduzido do quadro clínico. Por outro lado, não
existe nenhuma correspondência entre as formas das doenças nervosas e as outras
influências nocivas da civilização assinaladas por aquelas autoridades.
Podemos, portanto, considerar o fator sexual como o fator básico na causação
das neuroses propriamente ditas.
Nas
psiconeuroses é mais evidente a influência da hereditariedade, e menos
transparente a causação. Entretanto, um método peculiar de investigação,
conhecido como psicanálise, possibilitou-nos perceber que os sintomas desses
distúrbios (histeria, neurose obsessiva, etc.) são psicogênicos e
dependem da atuação de complexos ideativos inconscientes (reprimidos). Esse
mesmo método revelou-nos a natureza desses complexos inconscientes, mostrando
que, de maneira geral, possuem um conteúdo sexual. Derivam das necessidades
sexuais de indivíduos insatisfeitos, representando para os mesmos uma espécie
de satisfação substitutiva. Portanto, todos os fatores que prejudicam a vida
sexual, suprimem sua atividade ou distorcem seus fins devem também ser visto
como fatores patogênicos das psiconeuroses.
Naturalmente
o valor da diferenciação teórica entre as neuroses tóxicas e as neuroses
psicogênicas não sofre restrição pelo fato de que podem ser observados
distúrbios provenientes de ambas as fontes na maior parte das pessoas que
sofrem de doenças nervosas.
O leitor
que está disposto a procurar comigo a etiologia das doenças nervosas,
principalmente em influências nocivas à vida sexual, também estará pronto a
acompanhar meus próximos argumentos, cujo fim é inserir num contexto mais amplo
o tema do aumento das doenças nervosas.
Nossa
civilização repousa, falando de modo geral, sobre a supressão dos instintos.
Cada indivíduo renuncia a uma parte dos seus atributos: a uma parcela do seu
sentimento de onipotência ou ainda das inclinações vingativas ou agressivas de
sua personalidade. Dessas contribuições resulta o acervo cultural comum de bens
materiais e ideais. Além das exigências da vida, foram sem dúvida os
sentimentos familiares derivados do erotismo que levaram o homem a fazer essa
renúncia, que tem progressivamente aumentado com a evolução da civilização.
Cada nova conquista foi sancionada pela religião, cada renúncia do indivíduo à
satisfação instintual foi oferecida à divindade como um sacrifício, e foi
declarado ‘santo’ o proveito assim obtido pela comunidade. Aquele que em conseqüência
de sua constituição indomável não consegue concordar com a supressão do
instinto, torna-se um ‘criminoso’, um ‘outlaw‘, diante da sociedade - a
menos que sua posição social ou suas capacidades excepcionais lhe permitam
impor-se como um grande homem, um ‘herói’.
O
instinto sexual - ou, mais corretamente, os instintos sexuais, pois a
investigação analítica nos ensina que o instinto sexual é formado por muitos
constituintes ou instintos componentes - apresenta-se provavelmente mais
vigorosamente desenvolvido no homem do que na maioria dos animais superiores,
sendo sem dúvida mais constante, desde que superou completamente a
periodicidade à qual é sujeito nos animais. Esse instinto coloca à disposição
da atividade civilizada uma extraordinária quantidade de energia, em virtude de
uma singular e marcante característica: sua capacidade de deslocar seus
objetivos sem restringir consideravelmente a sua intensidade. A essa capacidade
de trocar seu objetivo sexual original por outro, não mais sexual, mas psiquicamente
relacionado com o primeiro, chama-se capacidade de sublimação.
Contrastando com essa motilidade, na qual reside seu valor para a civilização,
o instinto sexual é passível também de fixar-se de uma forma particularmente
obstinada, que o inutiliza e o leva algumas vezes a degenerar-se até as
chamadas anormalidades. O vigor original do instinto sexual provavelmente varia
com o indivíduo, o que sem dúvida também acontece com a parcela do instinto
suscetível de sublimação. Parece-nos que a constituição inata de cada indivíduo
é que irá decidir primeiramente qual parte do seu instinto sexual será possível
sublimar e utilizar. Em acréscimo, os efeitos da experiência e das influências
intelectuais sobre seu aparelho mental conseguem provocar a sublimação de uma
outra parcela desse instinto. Entretanto, não é possível ampliar
indefinidamente esse processo de deslocamento, da mesma forma que em nossas
máquinas não é possível transformar todo o calor em energia mecânica. Para a
grande maioria das organizações parece ser indispensável uma certa quantidade
de satisfação sexual direta, e qualquer restrição dessa quantidade, que varia
de indivíduo para indivíduo, acarreta fenômenos que, devido aos prejuízos
funcionais e ao seu caráter subjetivo de desprazer, devem ser considerados como
uma doença.
Novas
perspectivas se nos oferecem ao considerarmos que no homem o instinto sexual
não serve originalmente aos propósitos da reprodução, mas à obtenção de
determinados tipos de prazer. Manifesta-se desse modo na infância do homem,
período em que atinge sua meta de obter prazer não só dos genitais, mas também
de outras partes do corpo (zonas erógenas), podendo portanto prescindir de
qualquer outro objeto menos cômodo. Chamamos a esse estádio de estádio de auto-erotismo,
e a nosso ver a educação da criança tem como tarefa restringi-lo, pois a
permanência nele tornaria o instinto sexual incontrolável, inutilizando-o
posteriormente. O desenvolvimento do instinto sexual passa, então, do
auto-erotismo ao amor objetal, e da autonomia das zonas erógenas à subordinação
destas à primazia dos genitais, postos a serviço da reprodução.
Durante
esse desenvolvimento, uma parte da excitação sexual fornecida pelo próprio
corpo do indivíduo inibe-se por ser inútil à função reprodutora, sendo sublimada
nos casos favoráveis. Assim, grande parte das forças suscetíveis de utilização
em atividades culturais são obtidas pela supressão dos chamados elementos pervertidos
da excitação sexual.
Considerando
essa evolução do instinto sexual, podemos distinguir três estádios de
civilização: um primeiro em que o instinto sexual pode manifestar-se livremente
sem que sejam consideradas as metas de reprodução; um segundo em que tudo do
instinto sexual é suprimido, exceto quando serve ao objetivo da reprodução; e
um terceiro no qual só a reprodução legítima é admitida como meta
sexual. A esse terceiro estádio corresponde a moral sexual ‘civilizada’ da
atualidade.
Mesmo se
tomarmos o segundo desses estádios como média, é preciso ressalvar que inúmeros
indivíduos não se acham, devido à sua organização, capacitados a satisfazer
suas exigências. Em toda uma série de pessoas o desenvolvimento do instinto
sexual, acima descrito, do auto-erotismo ao amor objetal com seu objetivo de
união dos genitais, não se realizou de forma perfeita e completa. Como
resultado desses distúrbios de desenvolvimento, surgem dois tipos de desvios
nocivos da sexualidade normal, isto é, da sexualidade que é útil à civilização
- desvio esses que possuem entre si uma relação quase de positivo para
negativo.
Em
primeiro lugar (deixando de lado os indivíduos cujo instinto sexual é exagerado
ou que resiste à inibição) estão diversas variedades de pervertidos, nos
quais uma fixação infantil a um objetivo sexual preliminar impediu o
estabelecimento da primazia da função reprodutora, e os homossexuais ou
invertidos, nos quais, de maneira ainda não compreendida, o objetivo sexual
foi defletido do sexo oposto. Se os efeitos nocivos desses dois gêneros de
distúrbios do desenvolvimento são menores do que seria de esperar, tal se deve
justamente à complexa constituição do instinto sexual, que possibilita à vida
sexual do indivíduo atingir uma forma final útil, mesmo que um ou mais
componentes do instinto tenham sido alijados do seu desenvolvimento. A constituição
das pessoas que sofrem de inversão - os homossexuais - distingue-se amiúde pela
especial aptidão do seu instinto sexual para a sublimação cultural.
As
formas mais acentuadas de perversão e de homossexualidade, especialmente quando
exclusivas, sem dúvida tornam o indivíduo socialmente inútil e infeliz, sendo
necessário reconhecer que as exigências culturais do segundo estádio constituem
uma fonte de sofrimentos para uma certa parcela da humanidade. O destino desses
indivíduos de constituição diversa da dos seus semelhantes é variável,
dependendo de terem nascido com um instinto sexual forte ou comparativamente
fraco, em relação a padrões absolutos. No segundo caso, quando o instinto
sexual é em geral fraco, os pervertidos conseguem suprimir totalmente as inclinações
que os colocam em conflito com as exigências morais do seu estádio de
civilização. Do ponto de vista ideal, essa é a sua única realização, pois para
reprimir seu instinto sexual, esgotam as forças que poderiam ser utilizadas em
atividades culturais. É como se esses indivíduos estivessem interiormente
inibidos e exteriormente paralisados. As apreciações que faremos mais adiante
sobre a abstinência exigida de homens e mulheres pelo terceiro estádio de
civilização aplicam-se também a esses indivíduos.
Quando o
instinto sexual é muito intenso, mas pervertido, existem dois desfechos
possíveis. No primeiro, que não examinaremos, o indivíduo afetado permanece
pervertido e sofre as conseqüências do seu desvio dos padrões de civilização.
No segundo, muito mais interessante, o sujeito consegue realmente, sob a
influência da educação, e das exigências sociais, suprimir seus instintos
pervertidos, mas essa supressão é falsa, ou melhor, frustrada. Os instintos
sexuais inibidos não são mais, é verdade, expressos como tais - e nisto
consiste o êxito do processo -, mas conseguem expressar-se de outras formas
igualmente nocivas para o sujeito, e que o tornam tão inútil para a sociedade
quanto o teria inutilizado a satisfação de seus instintos suprimidos. Aí reside
o malogro do processo, malogro que um cômputo final mais do que contrabalança a
sua parcela de êxito. Os fenômenos substitutivos surgidos em conseqüência da
supressão do instinto constituem o que chamamos de doenças nervosas ou, mais
precisamente, de psiconeuroses. Os neuróticos são uma classe de indivíduos que,
por possuírem uma organização recalcitrante, apenas conseguem sob o influxo de
exigências culturais efetuar uma supressão aparente de seus instintos,
supressão essa que se torna cada vez mais falha. Portanto, eles só conseguem
continuar a colaborar com as atividades culturais com um grande dispêndio de
energia e às expensas de um empobrecimento interno, sendo às vezes obrigados a
interromper sua colaboração e a adoecer. Defini as neuroses como o ‘negativo’
das perversões (ver em [1]) porque nas neuroses os impulsos pervertidos, após
terem sido reprimidos, manifestam-se a partir da parte inconsciente da mente -
porque as neuroses contêm as mesmas tendências, ainda que em estado de
‘repressão’, das perversões positivas.
A
experiência nos ensina que existe para a imensa maioria das pessoas um limite
além do qual suas constituições não podem atender às exigências da civilização.
Aqueles que desejam ser mais nobres do que suas constituições lhes permitem, são
vitimados pela neurose. Esses indivíduos teriam sido mais saudáveis se lhes
fosse possível ser menos bons. A descoberta de que as perversões e as neuroses
guardem entre si uma relação de positivo para negativo é, com freqüência,
confirmada inequivocamente pela observação de membros de uma mesma geração de
uma família. É comum a irmã de um pervertido sexual, a qual em sua condição de
mulher possui um instinto sexual mais débil, apresentar uma neurose cujos
sintomas expressam as mesmas inclinações das perversões do seu irmão, mais
ativo sexualmente. Correlatamente, em muitas famílias os homens são saudáveis,
embora do ponto de vista social sejam altamente imorais, enquanto as mulheres,
cultas e de elevados princípios, sucumbem a graves neuroses.
Uma das
óbvias injustiças sociais é que os padrões de civilização exigem de todos uma
idêntica conduta sexual, conduta esta que pode ser observada sem dificuldades
por alguns indivíduos, graças às suas organizações, mas que impõe a outros os
mais pesados sacrifícios psíquicos. Entretanto, na realidade, essa injustiça é
geralmente sanada pela desobediência às junções morais.
Até aqui
essas considerações referiram-se às exigências impostas pelo segundo dos
estádios de civilização por nós definidos, exigências que proíbem toda
atividade sexual descrita como pervertida, ao mesmo tempo que concedem ampla
liberdade às relações sexuais chamadas normais. Vemos que, mesmo quando o
limite entre a liberdade sexual e as restrições é assim fixado, um certo número
de indivíduos é marginalizado como pervertido, e outro grupo, que se esforça
para não ser pervertido, embora por constituição o devesse ser, é impelido às
doenças nervosas. É fácil prever as conseqüências de uma maior redução da
liberdade sexual, quando as exigências culturais se elevam ao terceiro estádio,
que proíbe toda atividade sexual fora do matrimônio legítimo. O número de
naturezas fortes que se colocará em franca oposição às exigências da
civilização aumentará extraordinariamente, como também crescerá o número de naturezas
mais débeis que, frente ao conflito entre as pressões culturais e a resistência
de suas constituições, fugirão para a neurose.
Tentemos
agora responder a três perguntas que aqui se apresentam:
(1) Que
deveres exige do indivíduo o terceiro estádio de civilização?
(2) A
satisfação sexual legítima permitida pode oferecer uma compensação aceitável
pela renúncia a todas as outras satisfações?
(3) Qual
a relação entre os possíveis efeitos nocivos dessa renúncia e seus proveitos no
campo cultural?
A resposta
à primeira pergunta envolve um problema que tem sido freqüentemente debatido e
que não pode ser tratado aqui de forma exaustiva: o problema da abstinência
sexual. O nosso terceiro estádio cultural exige dos indivíduos de ambos os
sexos a prática da abstinência até o casamento, obrigando os que não contraem
um casamento legítimo a permanecerem abstinentes por toda a sua vida. A
posição, grata a todas as autoridades, de que a abstinência sexual não é nociva
nem árdua também tem sido amplamente defendida pela classe médica. Entretanto,
podemos afirmar que a tarefa de dominar um instinto tão poderoso quanto o
instinto sexual, por outro meio que não a sua satisfação, é de tal monta que
consome todas as forças do indivíduo. O domínio do instinto pela sublimação,
defletindo as forças instintuais sexuais do seu objetivo sexual para fins
culturais mais elevados, só pode ser efetuado por uma minoria, e mesmo assim de
forma intermitente, sendo mais difícil no período ardente e vigoroso da
juventude. Os demais, tornam-se em grande maioria neuróticos, ou sofrem alguma
espécie de prejuízo. A experiência demonstra que a maior parte dos indivíduos
que constituem a nossa sociedade não possuem a constituição necessária para
enfrentar com êxito a tarefa de uma abstinência. Os que teriam já adoecido sob
restrições sexuais mais brandas, adoecem ainda mais rapidamente e com maior
gravidade ante as exigências de nossa moral sexual cultural contemporânea. A
meu ver, a satisfação sexual é a melhor proteção contra a ameaça que as disposições
inatas anormais ou os distúrbios do desenvolvimento constituem para uma vida
sexual normal. Quanto maior a disposição de um indivíduo para a neurose, menos
ele tolerará a abstinência. Os instintos cujo desenvolvimento normal foi
coibido, como vimos acima, tornam-se ainda mais indomáveis, e mesmo os
indivíduos que conservariam a saúde sob as exigências do segundo estádio
cultural mergulharão em grande número na neurose, pois o valor psíquico da
satisfação sexual cresce com a sua frustração. A libido represada torna-se
capaz de perceber os pontos fracos raramente ausentes da estrutura da vida
sexual, e por ali abre caminho obtendo uma satisfação substitutiva neurótica na
forma de sintomas patológicos. Quem penetrar nos determinantes das doenças nervosas
cedo ficará convencido de que o incremento dessas doenças em nossa sociedade
provém da intensificação das restrições sexuais.
Isso nos
leva ao problema de determinarmos se as relações sexuais no casamento legítimo
podem oferecer uma total compensação para as restrições impostas antes do
casamento. Existe tanto material a favor de uma resposta negativa que será
necessário expô-lo de forma muito condensada. Acima de tudo, não devemos
esquecer que a nossa moral sexual restringe as relações sexuais mesmo dentro do
casamento, pois em geral obriga o casal a contentar-se com uns poucos atos
procriadores. Em conseqüência desse fato, as relações sexuais no casamento só
são satisfatórias durante alguns poucos anos, e mesmo desse período é preciso
subtrair os intervalos de abstenção exigidos pela saúde da esposa. Após esses
três, quatro ou cinco anos, o casamento torna-se, pelo menos em relação à
satisfação das necessidades sexuais, um fracasso, já que todos os artifícios
até hoje inventados para impedir a concepção reduzem o prazer sexual, ferem a
sensibilidade de ambos os cônjuges e podem até causar doenças. O medo das
conseqüências do ato sexual acarreta, inicialmente, o término da afeição física
do casal e, mais tarde, como efeito retardado, em geral também destrói a
afinidade psíquica que os unia e que deveria substituir a paixão inicial A
desilusão espiritual e a privação física a que a maioria dos casamentos estão
então condenados recolocam os cônjuges na situação anterior ao casamento,
situação que é agora ainda mais penosa pela perda de uma ilusão, e na qual
devem mais uma vez apelar para suas energias a fim de subjugar e defletir seu
instinto sexual. Não é preciso que investiguemos o grau de êxito obtido pelos
homens, agora em sua maturidade, nessa tarefa. A experiência mostra que, com
muita freqüência, eles recorrem - embora com relutância e em segredo - à
parcela de liberdade sexual que lhes é concedica até mesmo pelo código sexual
mais severo. Essa moral sexual ‘dupla’ que é válida em nossa sociedade para os
homens é a melhor confissão de que a própria sociedade não acredita que seus
preceitos possam ser obedecidos. Mas a experiência também mostra que as
mulheres, em sua qualidade de verdadeiro instrumento dos interesses sexuais da
humanidade, só possuem em pequeno grau o dom de sublimar seus instintos, e que,
embora possam encontrar um substituto adequado do objeto sexual no filho que
amamentam, mas não nas crianças maiores - a experiência mostra, insisto, que as
mulheres ao sofrerem as desilusões do casamento contraem graves neuroses que
lançam sombras duradouras sobre suas vidas. Nas presentes condições culturais,
o casamento há muito deixou de ser uma panacéia para os distúrbios nervosos
femininos; embora nós médicos ainda aconselhemos o casamento em tais casos,
sabemos que, ao contrário, uma jovem precisa ser muito mais saudável para o
tolerar, e enfaticamente aconselhamos nossos pacientes masculinos a não se
casarem com moças que antes do casamento já sofriam de doenças nervosas. Ao
contrário, a cura das doenças nervosas decorrentes do casamento estaria na
infidelidade conjugal; porém, quanto mais severa houver sido a educação da
jovem e mais seriamente ela se submeter às exigências da civilização, mais
receará recorrer a essa saída; no conflito entre seus desejos e seu sentimento
de dever, mais uma vez se refugiará na neurose. Nada protegerá sua virtude tão
eficazmente quanto uma doença. Dessa forma o matrimônio, que é oferecido ao
instinto sexual do jovem civilizado como uma consolação, mostra-se inadequado
mesmo durante o seu decurso, não havendo sequer possibilidades de que possa
compensar as privações anteriores.
Admitindo-se
que a moral sexual civilizada cause danos, alguém poderia argumentar em
resposta à terceira pergunta (ver em [1]) que o proveito cultural decorrente de
tão ampla restrição da sexualidade compensa, provavelmente, esses sofrimentos,
os quais afinal de contas só afligem de forma severa uma minoria. Devo
confessar-me incapaz de contrapor corretamente os ganhos aos prejuízos, mas
poderia oferecer maiores argumentos à causa das perdas. Voltando ao assunto da
abstinência, devo insistir que a mesma acarreta também outros males além dos
inclusos nas neuroses, e que a importância dessas ainda não foi, em geral,
suficientemente apreciada.
A
retardação do desenvolvimento e da atividade sexual a que aspiram nossa
civilização e educação certamente não é nociva a princípio, parecendo até uma
necessidade quando consideramos quão tarde os jovens das classes instruídas
atingem a independência e são capazes de ganhar a vida. (Isso nos recorda a
íntima interligação de todas as nossas instituições culturais e as dificuldades
de alterar qualquer uma delas sem modificar o todo.) Mas a abstinência mantida
por um longo período depois dos vinte anos já apresenta perigo para o jovem, e
mesmo que não acarrete uma neurose, causa outros prejuízos. Costuma-se dizer
que a luta contra um instinto tão poderoso, com a acentuação de todas as forças
éticas e estéticas necessárias para tal, ‘enrijecem’ o caráter. Isso pode ser
verdadeiro no caso de algumas naturezas de organização muito favorável. Devemos
admitir também que a diferenciação do caráter individual, tão marcante hoje em
dia, só se tornou possível com a existência da restrição sexual. Contudo, na
imensa maioria dos casos, a luta contra a sexualidade consome toda a energia
disponível do caráter, justamente quando o jovem precisa de suas forças para
conquistar o seu quinhão e o seu lugar na sociedade. A relação entre a
quantidade de sublimação possível e a quantidade de atividade sexual necessária
varia muito, naturalmente, de indivíduo para indivíduo, e mesmo de profissão
para profissão. É difícil conceber um artista abstinente, mas certamente não é
nenhuma raridade um jovem savant abstinente. Este último consegue por
sua autodisciplina liberar energias para seus estudos, enquanto naquele
provavelmente as experiências sexuais estimulam as realizações artísticas. Em
geral não me ficou a impressão de que a abstinência sexual contribuía para
produzir homens de ação enérgicos e autoconfiantes, nem pensadores originais ou
libertadores e reformistas audazes. Com freqüência bem maior produz homens
fracos mas bem comportados, que mais tarde se perdem na multidão que tende a
seguir, de má-vontade, os caminhos apontados por indivíduos fortes.
O fato
de que, em geral, o instinto sexual se comporta de forma voluntariosa e
inflexível evidencia-se também nos resultados da luta pela abstinência. A
educação civilizada talvez apenas tencione suprimir temporariamente o instinto
até o casamento, com o propósito de então utilizá-lo, concedendo-lhe ampla
liberdade. Contudo, as medidas extremas são mais eficazes do que as tentativas
moderadoras; assim, a supressão vai com freqüência longe demais, com o
resultado indesejável de, quando o instinto é liberado, revelar danos
permanentes. Por esse motivo, a abstinência total na juventude não é, muitas
vezes, a melhor preparação para o casamento no caso do homem. As mulheres
apercebem-se disto, preferindo pretendentes que já provaram sua masculinidade
com outras mulheres. Os efeitos nocivos que as severas exigências da
abstinência antes do casamento produzem nas naturezas femininas são
especialmente evidentes. É óbvio que a educação não subestima as dificuldades
de suprimir a sensualidade da jovem até o casamento, pois utiliza medidas
drásticas. Não somente proíbe as relações sexuais e oferece altos prêmios à
preservação da castidade feminina, mas também protege a jovem da tentação
durante o seu desenvolvimento, conservando-a ignorante do papel que irá
desempenhar e não tolerando nela qualquer impulso amoroso que não possa
conduzir ao casamento. O resultado é que, quando a jovem recebe a súbita
autorização de seus guardiões para apaixonar-se, não está apta a essa
realização psíquica, e chega ao matrimônio insegura dos seus sentimentos. Em
conseqüência dessa retardação artificial de suas funções eróticas, ela nada tem
a oferecer além de desapontamentos ao homem que poupou todos os seus desejos
para ela. Seus sentimentos mentais permanecem presos aos seus genitores, cuja
autoridade acarretou a supressão de sua sexualidade, e em seu comportamento
físico revela-se frígida, privando o homem de um maior prazer sexual. Não sei
se esse tipo de mulher anestesiada aparece fora da educação civilizada, embora o
considere muito provável, mas certamente essa educação o produz, e essas
mulheres que concebem sem prazer mostram-se pouco dispostas a enfrentar as
dores de partos freqüentes. Assim, a própria preparação do casamento faz
malograr os seus desígnios. Quando mais tarde esse atraso do desenvolvimento da
esposa é superado e sua capacidade de amar é despertada no clímax de sua vida
de mulher, há muito se deteriorou sua relação com o marido; e, como recompensa
da docilidade anterior, resta-lhe a escolha entre o desejo insatisfeito, a
infidelidade ou uma neurose.
O
comportamento sexual de um ser humano freqüentemente constitui o protótipo
de suas demais reações ante a vida. Do homem que mostra firmeza na conquista do
seu objeto amoroso, podemos esperar que revele igual energia e constância na
luta pelos seus outros fins. Mas se, por toda uma série de motivos, ele
renuncia à satisfação de seus fortes instintos sexuais, seu comportamento em
outros setores da vida será, em vez de enérgico, conciliatório e resignado. No
sexo feminino percebemos facilmente um caso especial dessa tese de que a vida
sexual constitui um protótipo para o exercício de outras funções. A educação
das mulheres impede que se ocupem intelectualmente dos problemas sexuais,
embora o assunto lhes desperte uma extrema curiosidade, e as intimida
condenando tal curiosidade como pouco feminina e como indício de disposição
pecaminosa. Assim a educação as afasta de qualquer forma de pensar, e o
conhecimento perde para elas o valor. Essa interdição do pensamento estende-se
além do setor sexual, em parte através de associações inevitáveis, em parte
automaticamente, como a interdição do pensamento religioso ou a proibição de
idéias sobre a lealdade entre cidadãos fiéis. Não acredito que a ‘debilidade
mental fisiológica’ feminina seja conseqüência de um antagonismo biológico
entre o trabalho intelectual e a atividade sexual, como afirmou Moebius em sua
discutida obra. Acredito que a inegável inferioridade intelectual de muitas
mulheres pode antes ser atribuída à inibição do pensamento necessária à
supressão sexual.
Quanto à
questão da abstinência, é preciso estabelecer a abstenção de qualquer atividade
sexual e a abstenção de relações sexuais com o sexo oposto. Muitos indivíduos
que se vangloriam de ser abstinentes, só o conseguiram com o auxílio da
masturbação e satisfações análogas ligadas às atividades sexuais auto-eróticas
da primeira infância. Entretanto, esses meios substitutivos de satisfação
sexual não são em absoluto inofensivos, justamente devido a essa conexão, e
predispõem às numerosas formas de neurose e psicose que podem resultar na
involução da vida sexual a formas infantis. Tampouco a masturbação satisfaz as
exigências ideais da moral sexual civilizada, conseqüentemente levando os
jovens a travar com os ideais da educação aqueles mesmos conflitos que
procuravam evitar pela abstinência. Além disso, ela corrompe em mais de um
sentido o caráter, por meio da indulgência. Em primeiro lugar, acostuma
o indivíduo a atingir objetivos importantes sem esforço e pelos meios mais
fáceis, e não através de uma ação vigorosa, ou seja, obedece ao princípio de
que a sexualidade constitui o protótipo do comportamento (ver em [1]).
Em segundo lugar, nas fantasias que acompanham a satisfação o objeto sexual é levado
a níveis de perfeição dificilmente encontrados na realidade. Um espirituoso
escritor (Karl Kraus, no jornal vienense Die Fackel) expressou essa
mesma verdade, invertendo os seus termos, numa cínica observação: ‘A copulação
nada mais é do que um substituto insatisfatório da masturbação.’
A
severidade das exigências da civilização e as dificuldades da abstinência
converteram a proibição da união de genitais de sexos opostos no cerne do
problema da abstinência, favorecendo outros tipos de atividade sexual,
equivalentes, por assim dizer, a uma semi-obediência. Como o coito normal tem
sido tão implacavelmente perseguido pela moral e também pela higiene devido às
possibilidades de infecção, as práticas sexuais chamadas pervertidas, nas quais
outras partes do corpo assumem o papel de genitais, aumentaram sem dúvida sua
importância social. Entretanto, essas atividades não podem ser consideradas tão
inofensivas como outras extensões análogas [da meta sexual] nas relações
amorosas. São condenáveis do ponto de vista ético, pois degradam as relações
amorosas de dois seres humanos, rebaixando-as de uma questão fundamental a um
jogo cômodo, livre de riscos e sem nenhuma participação espiritual. Outra
conseqüência desse incremento das dificuldades da vida sexual normal é a
expansão da satisfação homossexual: àqueles que são homossexuais devido à sua
organização, e aos que passaram a sê-lo na infância, junta-se um grande número
de indivíduos em que a obstrução do curso principal de sua libido causou, em
anos posteriores, o alargamento do canal secundário da homossexualidade.
Todas
essas conseqüências inevitáveis e indesejadas do preceito da abstinência
convergem para um único resultado: o completo malogro da preparação para o
casamento, casamento esse que a moral sexual civilizada pensa ser o único
herdeiro das impulsões sexuais. Todo homem cuja libido, em conseqüência de
práticas sexuais masturbatórias ou pervertidas, acostumou-se a situações e
condições de satisfação anormais apresenta no casamento uma potência diminuída.
Também as mulheres que puderam preservar sua virgindade com o auxílio de
recursos análogos mostram-se anestesiadas às relações sexuais normais do
casamento, que assim tem início com ambos os cônjuges apresentando uma reduzida
capacidade erótica que irá sucumbir ao processo de dissolução com uma rapidez
maior do que os demais. Em conseqüência da fraca potência do marido, a mulher
não se satisfaz, permanecendo anestesiada mesmo nos casos onde uma poderosa
experiência sexual poderia ter superado sua predisposição para a frigidez
decorrente de sua educação. Tal casal encontrará maiores dificuldades para
impedir a concepção do que um casal saudável, pois a reduzida potência do
marido suporta mal o uso de anticoncepcionais. Nesse embaraço, sendo o ato
sexual a fonte de todas as suas dificuldades, logo o casal renuncia ao mesmo, e
com isso abre mão da base de sua vida conjugal.
As
pessoas bem informadas sabem que não exagero nessa descrição, e que muitos
casos igualmente desastrosos podem ser encontrados a cada momento. É difícil
para o não iniciado acreditar quão rara é a potência normal num marido e quão
freqüente é a frigidez feminina no casal que vive sob o império da nossa moral
sexual civilizada, que grau de renúncia exige freqüentemente de ambos os cônjuges
o casamento e a que limites estreitos fica reduzida a vida conjugal - aquela
felicidade tão ardentemente desejada. Já expliquei que nessas circunstâncias o
desenlace mais óbvio é a doença nervosa, mas é preciso também assinalar que
esse tipo de casamento continua a exercer sua influência sobre os poucos
filhos, ou o filho único, gerado pelo mesmo. À primeira vista, parece um caso
de hereditariedade, mas a um exame mais apurado comprova-se ser na realidade o
efeito de poderosas impressões infantis. Uma esposa neurótica, insatisfeita,
torna-se uma mãe excessivamente terna e ansiosa, transferindo para o filho sua
necessidade de amor. Dessa forma ela o desperta para a precocidade sexual. Além
disso, o mau relacionamento dos pais excita a vida emocional da criança,
fazendo-a sentir amor e ódio em graus muito elevados ainda em tenra idade. Sua
educação rígida, que não tolera qualquer atividade dessa vida sexual
precocemente despertada, vai em auxílio da força supressora e esse conflito, em
idade tão tenra, fornece todos os elementos necessários ao aparecimento de uma
doença nervosa que durará toda a vida.
Retorno
agora à minha afirmativa anterior (ver em [1]) de que em geral não se concede
às neuroses sua real importância. Não me refiro à subestimação desses estados
revelada no leviano menosprezo dos parentes e nas presunçosas afirmações dos
médicos de que algumas semanas de tratamento hidroterápico, ou alguns meses de
repouso e convalescença, produzirão a cura. Essas atitudes simplistas de leigos
e médicos ignorantes podem, no máximo, dar ao doente uma ilusória esperança. Já
é sabido, muito ao contrário, que uma neurose crônica, mesmo que não destrua
por completo a capacidade vital do indivíduo, representa em sua vida uma séria
desvantagem, talvez de grau idêntico a uma tuberculose ou um defeito cardíaco.
A situação poderia ser tolerável se as neuroses subtraíssem às atividades
civilizadas só um certo grupo de indivíduos mais débeis, permitindo aos demais
participar dessas atividades ao pequeno preço de alguns incômodos subjetivos.
Mas como a realidade é bem diversa, devo insistir em meu ponto de vista de que
as neuroses, quaisquer que sejam sua extensão e sua vítima, sempre conseguem
frustrar os objetivos da civilização, efetuando assim a obra das forças mentais
suprimidas que são hostis à civilização. Dessa forma, se uma sociedade paga
pela obediência a suas normas severas com um incremento de doenças nervosas,
essa sociedade não pode vangloriar-se de ter obtido lucros à custa de
sacrifícios; e nem ao menos pode falar em lucros. Consideremos, por exemplo, o
caso muito comum da esposa que não ama seu marido, pois as condições em que se
iniciou seu casamento não lhe deram motivos para estimá-lo. Ela, porém, deseja
intensamente amar esse marido, pois só isso corresponderia ao ideal de
casamento em que foi educada. Tal esposa suprimirá qualquer impulso que visasse
expressar aquela verdade e contrariar seu empenho para satisfazer seu ideal, e
fará intensos esforços para desempenhar o papel de uma esposa amante, terna e cuidadosa.
O resultado dessa auto-supressão será uma doença neurótica, e com essa neurose
em curto espaço de tempo desforrar-se-á do marido não amado, causando-lhe tanta
insatisfação e incômodo quanto lhe teria causado a franca admissão da verdade.
Este é um exemplo bem típico dos efeitos de uma neurose. A supressão dos
impulsos hostis à civilização que não são diretamente sexuais acarreta, também,
um fracasso semelhante na obtenção de compensação. Por exemplo, se um homem
tornou-se excessivamente bondoso em resultado de uma violenta supressão de uma
inclinação constitucional para a aspereza e a crueldade, freqüentemente perde
tanta energia ao realizar isso que não consegue fazer tudo que os seus impulsos
compensadores exigem, podendo, no final das contas, fazer pior do que teria
feito sem a supressão.
Acrescentemos
que a restrição da atividade sexual numa comunidade é, em geral, acompanhada de
uma intensificação do medo da morte e da ansiedade ante a vida que perturba a
capacidade do indivíduo para o prazer, assim como a disposição de enfrentar a
morte por uma causa. O resultado é uma redução no desejo de gerar filhos,
privando assim esse grupo ou comunidade de uma participação no futuro. Em vista
disso, é justo que indaguemos se a nossa moral sexual ‘civilizada’ vale o
sacrifício que nos impõe, já que estamos ainda tão escravizados ao hedonismo a
ponto de incluir entre os objetivos de nosso desenvolvimento cultural uma certa
dose de satisfação da felicidade individual. Certamente não é atribuição do
médico propor reformas, mas me pareceu que eu poderia defender a necessidade de
tais reformas se ampliasse a exposição de Von Ehrenfels sobre os efeitos
nocivos de nossa moral sexual ‘civilizada’, indicando o importante papel que
essa moral desempenha no incremento da doença nervosa moderna.
SOBRE AS
TEORIAS SEXUAIS DAS CRIANÇAS (1908)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
ÜBER
INFANTILE SEXUALTHEORIEN
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1908 Sexual-Probleme,
4 (12) [dezembro], 763-779.
1909 S.K.S.N. 2, 159-174. (1912, 2ª ed.; 1921,
3ª ed.)
1924 G.S. 5, 168-185.
1931 Sexualtheorie und Traumlehre, 43-61.
1941 G.K.,
7, 171-188.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘On the Sexual Theories of Children’
1924 C.P.,
2, 59-75. (Trad. de D. Bryan.)
A
presente tradução é uma versão modificada da publicada em 1924.
Este
artigo foi publicado pela primeira vez num número posterior do mesmo periódico
em que apareceu o artigo precedente (ver em [1]). Embora tenha vindo a público
de forma discreta, e embora contenha muito poucas surpresas para o leitor
moderno, na verdade apresentou ao mundo uma quantidade apreciável de idéias
novas. Esse paradoxo torna-se compreensível ao verificarmos que este artigo foi
publicado alguns meses antes do caso clínico do ‘Little Hands’ (1909b)
(embora, como revela em [1], esse trabalho já estivesse em revisão) e que a
seção dos Três Ensaios (1905d) sobre ‘As Pesquisas Sexuais da
Infância’ (ver a partir de [2], 1972) só tenha sido acrescentada a essa obra em
1915, oito anos depois da publicação deste artigo, do qual, na realidade,
aquela seção é apenas pouco mais que um resumo. É verdade que, num artigo
anterior sobre ‘O Esclarecimento Sexual das Crianças’ (1907c), Freud
transcreveu algum material do ‘Litle Hans’ (ver a partir de [1]) e fez um breve
exame da curiosidade infantil sobre o sexo, chegando a mencionar a existência
de ’teorias sexuais infantis’ (ver em [2]) sem discorrer entretanto sobre a sua
natureza.
Aqui os
primeiros leitores deste trabalho, quase sem uma preparação, defrontam-se com
as idéias da fertilização pela boca, do nascimento pelo ânus, das relações
sexuais dos pais como algo sádico e da posse de um pênis por membros de ambos
os sexos. Essa última noção envolveria as implicações mais extensas, também
mencionadas pela primeira vez nestas páginas: a importância do pênis para as
crianças dos dois sexos, os resultados da descoberta de que um dos sexos não o
possui, o aparecimento na menina da ‘inveja do pênis’ e nos meninos do conceito
da ‘mulher com um pênis’, e o papel desse conceito numa forma de homossexualidade.
Por fim, encontramos aqui a primeira menção e o primeiro exame explícito do
‘complexo de castração’, cujo único prenúncio fora uma obscura referência a uma
ameaça de castração em A Interpretação de Sonhos (1900a, ver em
[1], 1972).
O riquíssimo
material aqui exposto pode, sem dúvida, ser em grande parte atribuído às
descobertas da análise do ‘Little Hans’, cujo relato, recentemente terminado,
ilustrava e ampliava grande parte do conteúdo deste artigo.
SOBRE AS TEORIAS SEXUAIS DAS CRIANÇAS
O
material que serve de base a esta síntese procede de várias fontes. Em primeiro
lugar, da observação direta do que as crianças dizem e fazem; em segundo, do
que neuróticos adultos conscientemente lembram de sua infância e relatam
durante o tratamento psicanalítico; e, em terceiro lugar, das traduções e
conclusões, e das lembranças inconscientes traduzidas em material consciente,
que resultam da psicanálise de neuróticos.
O fato
de que a primeira dessas três fontes não tenha sido suficiente para fornecer todos
os elementos necessários para o esclarecimento do assunto deve-se à atitude do
adulto em relação à vida sexual das crianças. Não lhes atribuindo nenhuma
atividade sexual, o adulto não se esforça por observar seus indícios,
suprimindo, por outro lado, qualquer manifestação dessa atividade que lhe chame
a atenção. Conseqüentemente, são muito mais restritas as oportunidades de obter
informações dessa que seria a mais fértil e inequívoca das fontes. O que provém
das comunicações espontâneas dos adultos a respeito de suas lembranças infantis
conscientes está, na melhor das hipóteses, sujeito à suspeita de uma
adulteração no processo de rememoração; ademais, no seu exame deve ser levado
em conta que os informantes se tornaram neuróticos. Já o material procedente da
terceira fonte será objeto daquelas críticas usualmente dirigidas contra a
fidedignidade da psicanálise e de suas conclusões. Não me é possível tentar
aqui justificá-la; e posso apenas assegurar que os que conhecem e praticam a
técnica psicanalítica adquirem uma ampla confiança em suas descobertas.
Não
garanto ter alcançado resultados perfeitos, mas asseguro que empreguei o máximo
cuidado para chegar a eles.
Uma
questão difícil é determinar até que ponto se deve supor que as observações
aqui relatadas a respeito de algumas crianças seja verdade para todas as
crianças. As pressões da educação e a variável intensidade do instinto sexual
certamente permitem grandes variações individuais no comportamento sexual das
crianças, e sobretudo influenciam a época do aparecimento do interesse sexual
da criança. Por esse motivo não dividi minha apresentação do material de acordo
com os sucessivos períodos da infância, mas reuni numa única exposição fatos
que ocorrem ou mais cedo ou mais tarde em cada criança. Estou convicto de que
nenhuma criança - pelo menos nenhuma que seja mentalmente normal e menos ainda
as bem dotadas intelectualmente - pode evitar o interesse pelos problemas do
sexo nos anos anteriores à puberdade.
Não dou
valor à objeção de que os neuróticos constituem uma classe especial, marcada
por uma disposição inata ‘degenerada’, e de cuja vida infantil não podemos
tirar qualquer conclusão sobre a infância de outras pessoas. Os neuróticos são
muito semelhantes aos demais homens. Não se diferenciam acentuadamente das
pessoas normais, e na infância não é fácil distingui-los dos que permanecerão
sadios em sua vida posterior. Um dos resultados mais valiosos das investigações
psicanalíticas é a descoberta de que as neuroses de tais indivíduos não possuem
um conteúdo mental especial e peculiar, mas que, como Jung já analisou, eles
adoecem devido aos mesmos complexos com que nós, as pessoas sadias, lutamos. A
única diferença é que as sadias sabem superar esse complexos sem sofrer danos
graves e visíveis na vida prática, enquanto nos casos nervosos a supressão dos
complexos só obtém êxito à custa de dispendiosas formações substitutivas, isto
é, do ponto de vista prático trata-se de um fracasso Na infância, as pessoas
neuróticas e as normais estão naturalmente muito mais próximas do que
posteriormente, e assim não considero um erro de metodologia utilizar as
comunicações dos neuróticos a respeito de sua infância para delas inferir, por
analogia, conclusões sobre a vida infantil normal. Mas como aqueles que posteriormente
se tornam neuróticos com freqüência apresentam em sua constituição inata um
instinto sexual particularmente forte e uma tendência à precocidade e à
expressão prematura desse instinto, eles nos permitem perceber com maior
clareza e precisão uma quantidade maior da atividade sexual infantil do que
nossa embotada faculdade de observação poderia reconhecer em outras coisas. No
entanto, certamente só poderemos avaliar de forma correta essas comunicações de
adultos neuróticos quando, seguindo o exemplo de Havelock Ellis, consideramos
proveitoso recolher as lembranças infantis também de adultos saudáveis.
Em
conseqüência de circunstâncias desfavoráveis de natureza interna e externa, as
observações que se seguem aplicam-se principalmente ao desenvolvimento sexual
de apenas um sexo - isto é, o masculino. Entretanto, o valor de uma tal
compilação não deve ser puramente de natureza descritiva. O conhecimento das
teorias sexuais infantis, tais como as concebe a mente da criança, pode ter
interesse em mais de um sentido - até mesmo, surpreendentemente, para a
elucidação dos mitos e contos de fadas. Além disso, são indispensáveis para uma
compreensão das próprias neuroses, já que nestas ainda atuam as teorias
infantis, exercendo uma decisiva influência sobre a forma assumida pelos
sintomas.
Se
pudéssemos despojar-nos de nossa exigência corpórea e observar as coisas da
terra com uma nova perspectiva, como seres puramente pensantes, de outro
planeta por exemplo, talvez nada despertasse tanto a nossa atenção como o fato da
existência de dois sexos entre os seres humanos, que, embora tão semelhantes em
outros aspectos, assinalam suas diferenças com sinais externos muito óbvios. No
entanto, não me parece que as crianças também tomem esse fato fundamental como
ponto de partida de suas pesquisas sobre os problemas sexuais. Como suas
lembranças mais antigas já incluem um pai e uma mãe, aceitam a existência
destes como uma realidade indiscutível, e um menino adotará a mesma atitude em
relação a uma irmãzinha da qual o separam apenas um ou dois anos. O desejo da
criança por esse tipo de conhecimento não surge espontaneamente, em
conseqüência talvez de alguma necessidade inata de causas estabelecidas; surge
sob o aguilhão dos instintos egoístas que a dominam, quando é surpreendida -
talvez ao fim do seu segundo ano - pela chegada de um novo bebê. Também a
criança cuja família não aumentou pode colocar-se na mesma situação observando
os outros lares. A perda, realmente experimentada ou justamente temida, dos
carinhos dos pais e o pressentimento de que, de agora em diante, terá sempre de
compartilhar seus bens com o recém-chegado despertam suas emoções e aguçam sua
capacidade de pensamento. A criança mais velha expressa sua franca hostilidade
ao rival através de críticas inamistosas, esperando que ‘a cegonha o leve de
volta’, e às vezes até através de pequenas agressões à desamparada criatura que
está no berço. Quando a diferença de idades é maior, a expressão dessa
hostilidade primária é geralmente mais suave. Assim, em idade posterior, se não
apareceu um irmão ou uma irmã menores, o desejo da criança por um companheiro
de brinquedos, tal como viu em outras famílias, pode alcançar a primazia.
Sob a
instigação desses sentimentos e preocupações, a criança começa a refletir sobre
o primeiro grande problema da vida e pergunta a si mesma: ‘De onde vêm os
bebês?’ - indagação cuja forma original certamente era: ’De onde veio esse
bebê intrometido?’ Parece-nos que ouvimos os ecos desse primeiro enigma nos
inúmeros enigmas dos mitos e lendas. Essa pergunta é, como toda pesquisa, o
produto de uma exigência vital, como se ao pensamento fosse atribuída a tarefa
de impedir a repetição de eventos tão temidos. Suponhamos, entretanto, que o
pensamento infantil logo se torne independente dessa instigação e passe a
operar como um instinto auto-sustentado de pesquisa. Quando a criança não foi
demasiadamente intimidada, mais cedo ou mais tarde recorre ao método direto de
exigir uma resposta dos pais ou dos que cuidam dela, que representam a seus
olhos a fonte de todo o conhecimento. Esse método, entretanto, falha. A criança
recebe respostas evasivas, ou repreensões por sua curiosidade, ou ainda é
despedida com a explicação mitológica que, nos países germânicos, é a seguinte:
‘A cegonha traz os bebês; ela os retira da água.’ Tenho motivos para acreditar
que o número de crianças que não se satisfazem com essa solução, recebendo-a
com fortes dúvidas que entretanto não admitem abertamente, é bem maior do que
os pais supõem. Sei de um menino de três anos que, após receber essa
informação, desapareceu - para terror de sua ama. Foi encontrado à margem de um
grande lago que ficava perto da casa, para onde acorrera a fim de ver os bebês
que estavam dentro d’água.
Sei
também de outro menino que só conseguiu expressar sua dúvida retrucando
timidamente que não era uma cegonha que trazia os bebês, mas sim uma garça. De
um grande número de informações que reuni, deduzi que as crianças se recusam a
crer na teoria da cegonha e que, a partir dessa primeira decepção, começam a desconfiar
dos adultos e a suspeitar que estes lhe escondem algo proibido, passando como
resultado a manter em segredo suas investigações posteriores. Com isso,
entretanto, a criança experimenta o seu primeiro ‘conflito psíquico’, pois
certas concepções pelas quais sente uma preferência instintual não são
consideradas corretas pelos adultos e contrapõem-se a outras defendidas pela
autoridade dos mais velhos, as quais, entretanto, não lhe parecem aceitáveis.
Esse conflito psíquico logo pode transformar-se numa ‘dissociação psíquica’. O
conjunto de concepções consideradas ‘boas’, mas que resultam numa cessação da
reflexão, torna-se o conjunto das concepções dominantes e conscientes, enquanto
o outro conjunto, a favor do qual o trabalho de investigação infantil coligiu
novas provas, as quais entretanto não devem ser consideradas, torna-se o
conjunto das opiniões reprimidas e inconscientes. Está assim formado o complexo
nuclear de uma neurose.
Recentemente,
a análise de um menino de cinco anos, feita pelo pai e a mim confiada para
publicação, forneceu-me a confirmação irrefutável da correção de uma concepção
que há muito inferi da psicanálise de adultos. Sei agora que as alterações
sofridas pela mãe no decurso da gravidez não escapam aos olhos aguçados da
criança, e que esta é perfeitamente capaz de logo estabelecer uma relação entre
o aumento de volume materno e o aparecimento do bebê. No caso que citei acima,
o menino tinha três anos e meio quando nasceu a irmã, e quatro anos e nove
meses quando revelou o seu conhecimento por meio de claras alusões. Essa
descoberta precoce, entretanto, é sempre conservada em segredo e mais tarde
reprimida e esquecida, de acordo com as posteriores vicissitudes das pesquisas
sexuais da criança.
A
‘fábula da cegonha’, portanto, não é uma das teorias sexuais da criança. Sua
descrença nela é, ao contrário, fortalecida pela observação dos animais, que
tão pouco dissimulam sua vida sexual e aos quais ela se sente tão intimamente
ligada. Com o conhecimento de que os bebês crescem no interior do corpo da mãe,
conhecimento a que chegou por si só, a criança estaria no caminho certo para
solucionar o primeiro problema a que aplica suas energias mentais. No entanto,
seu progresso é inibido pela ignorância que não pode ser confirmada (ver a
partir de [1]) e pelas falsas teorias que lhe são impostas por sua própria
sexualidade.
Essas
teorias sexuais falsas, que agora examinei, possuem uma característica muito
curiosa: embora cometam equívocos grotescos, cada uma delas contém um fragmento
da verdade, no que se assemelham às tentativas dos adultos, que consideramos
geniais, para decifrar os problemas do universo, que são tão complexos para a
compreensão humana. A parte dessas teorias que é correta e atinge o alvo provém
dos componentes do instinto sexual que já atuam no organismo infantil. Não
surge de um ato mental arbitrário ou de impressões casuais, mas das
necessidades da constituição psicossexual da criança, motivo pelo qual podemos
falar de teorias sexuais infantis típicas, e pelo qual encontramos as mesmas
crenças errôneas em todas as crianças a cuja vida sexual temos acesso.
A
primeira dessas teorias deriva do desconhecimento das diferenças entre os sexos
a que me referi no início deste artigo (ver a partir de [1]) como uma
característica infantil. Consiste em atribuir a todos, inclusive às
mulheres, a posse de um pênis, tal como o menino sabe a partir de seu
próprio corpo. É justamente na constituição sexual que devemos encarar como
‘normal’ que, já na infância, o pênis é a principal zona erógena e o mais
importante objeto sexual auto-erótico. O alto valor que o menino lhe concede
reflete-se naturalmente em sua incapacidade de imaginar uma pessoa semelhante a
ele que seja desprovida desse constituinte essencial. As palavras de um menino
pequeno quando vê os genitais de sua irmãzinha demonstram que o seu preconceito
já é suficientemente forte para falsear uma percepção. Ele não se refere à
ausência do pênis, mas comenta invariavelmente, com intenção
consoladora: ‘O dela ainda é muito pequeno, mas vai aumentar quando ela
crescer.’ A idéia de uma mulher com pênis retorna mais tarde, nos sonhos dos
adultos; o indivíduo que sonha, num estado de excitação sexual noturna, subjuga
a mulher, despoja-a de suas vestes, mas quando vai realizar o coito vê no lugar
dos genitais femininos um pênis bem desenvolvido, e põe fim ao sonho e à
excitação. Os numerosos hermafroditas da Antigüidade clássica reproduzem
fielmente essa idéia generalizada na infância. Embora tais imagens não repugnem
à maioria das pessoas normais, os exemplos reais de hermafroditismo que ocorrem
na natureza despertam sempre o maior asco.
Se um
indivíduo na infância ‘fixa’ essa idéia da mulher com um pênis, tornar-se-á,
resistindo a todas as influências dos anos posteriores, incapaz de prescindir de
um pênis no seu objeto sexual, e, embora em outros aspectos tenha uma vida
sexual normal, está fadado a tornar-se um homossexual, indo procurar seu objeto
sexual entre os homens que, devido a características físicas e mentais, lembram
a mulher. Quando, mais tarde, vem a conhecer mulheres, elas já não podem mais
ser para ele objetos sexuais porque carecem da atração sexual básica; na
verdade, em conexão com uma outra impressão de sua vida infantil, elas podem
causar-lhe repugnância. O menino, no qual dominam principalmente as excitações
do pênis, costuma obter prazer estimulando esse órgão com a mão. Seus pais e
sua ama o surpreenderam nesse ato e o intimidam com a ameaça de cortar-lhe o
pênis. O efeito dessa ‘ameaça de castração’ é proporcional ao valor conferido
ao órgão, sendo extraordinariamente profundo e persistente. As lendas e os
mitos atestam o transtorno da vida emocional e todo o horror ligado ao complexo
de castração, complexo este que será subseqüentemente lembrado com grande
relutância pela consciência. Os genitais femininos, vistos mais tarde, são
encarados como um órgão mutilado e trazem à lembrança aquela ameaça,
despertando assim horror, em vez de prazer, no homossexual. Essa reação não
sofre nenhuma alteração quando o homossexual, através da ciência, vem a saber
que a suposição infantil que atribui um pênis à mulher não é assim tão errada.
A anatomia reconheceu no clitóris situado no interior da vulva feminina um
órgão homólogo ao pênis, e a fisiologia dos processos sexuais acrescenta que esse
pequeno pênis, que não aumenta de tamanho, comporta-se na realidade, durante a
infância, como um pênis genuíno - torna-se a sede de excitações que fazem com
que ele seja tocado, e a sua excitabilidade confere à atividade sexual da
menina um caráter masculino, sendo necessária uma vaga de repressão nos anos da
puberdade para que desapareça essa sexualidade masculina e surja a mulher. Como
a função sexual de muitas mulheres apresenta-se reduzida, seja por seu
obstinado apego a essa excitabilidade do clitóris, de modo a permanecerem
anestesiadas durante o coito, seja por uma repressão tão excessiva que seu
funcionamento é em parte substituído por formações compensatórias histéricas -
tudo isso parece mostrar que existe uma dose de verdade na teoria sexual infantil
de que as mulheres possuem, como os homens, um pênis.
Observa-se
com facilidade que as meninas compartilham plenamente a opinião que seus irmãos
têm do pênis. Elas desenvolvem um vivo interesse por essa parte do corpo
masculino, interesse que é logo seguido pela inveja. As meninas julgam-se
prejudicadas e tentam urinar na postura que é possível para os meninos porque
possuem um pênis grande; e quando uma delas declara que ‘preferiria ser um
menino’, já sabemos qual a deficiência que desejaria sanar.
Se as
crianças seguissem as pistas fornecidas pela excitação do pênis, chegariam bem
mais perto da solução do seu problema. Que o bebê se forma dentro do corpo da
mãe não é obviamente uma explicação suficiente. Como ele chega lá dentro? O que
provoca o seu desenvolvimento? Parece lógico que o pai tenha alguma coisa a ver
com isso, pois diz que o bebê também é dele. O pênis também desempenha
certamente algum papel nesses misteriosos acontecimentos, como comprova a
excitação desse órgão que acompanha tais atividades mentais da criança. A essa
excitação associam-se impulsões que a criança não consegue explicar, compulsões
obscuras a um ato violento, a esmagar ou romper qualquer coisa, a abrir um
buraco em algum lugar. Mas quando parecesse assim bem encaminhada para
descobrir a existência da vagina e inferir que a penetração do pênis paterno na
mãe foi o ato que gerou o bebê no corpo desta - nesse momento crítico, a
criança perplexa e impotente é obrigada a interromper sua investigação. O
obstáculo que impede que ela descubra a existência de uma cavidade que acolhe o
pênis é a sua própria teoria de que a mãe possui um pênis, como um homem. Não é
difícil concluir que o malogro de seus esforços intelectuais o faz rejeitá-los
e esquecê-los. Essas hesitações e dúvidas tornam-se, entretanto, o protótipo de
todo o seu trabalho intelectual posterior aplicado à solução de problemas,
tendo esse primeiro fracasso um efeito cerceante sobre todo o futuro da
criança.
A
ignorância da vagina também permite às crianças acreditar na segunda de suas
teorias sexuais. Se o bebê se desenvolve no corpo da mãe, sendo então retirado,
isto só pode acontecer através de um único caminho: a passagem anal. O bebê
precisa ser expelido como excremento, numa evacuação. Quando, na infância
posterior, a mesma questão é assunto de reflexão solitária ou de discussão
entre duas crianças, as explicações encontradas são de que o bebê sai pelo
umbigo, que se abre, ou através de um corte na barriga - que foi o que
aconteceu com o lobo na história do Chapeuzinho Vermelho. Essas teorias são
expressas em voz alta e depois lembradas conscientemente, pois nada contêm de
censurável. Essas mesmas crianças já esqueceram completamente que em anos
anteriores acreditaram em outra teoria do nascimento, agora obliterada pela
repressão, ocorrida nesse intervalo, dos componentes sexuais anais. Naquela
época a criança podia falar em evacuação sem envergonhar-se, não estando ainda
tão distanciada de suas inclinações coprófilas constitucionais. A idéia de vir
ao mundo como uma massa de fezes não era degradante, não tendo sido ainda
condenada por sentimentos de repugnância. A teoria cloacal, que afinal é válida
para tantos animais, era a teoria mais natural, a única que poderia parecer
provável à criança.
Sendo
assim, entretanto, era apenas lógico que a criança negasse às mulheres o
doloroso privilégio de dar à luz bebês. Se estes nascem pelo ânus, um homem
pode parir tão bem quanto uma mulher. Portanto, é possível que o menino imagine
que também ele tenha filhos, sem que por isto tenhamos de lhe atribuir
inclinações femininas. Com isso ele apenas revela o erotismo anal nele ainda
atuante.
Se a
teoria cloacal do nascimento é preservada na consciência nos anos posteriores
da infância, como às vezes sucede, a ela se associa uma solução, agora não mais
primária, da questão da origem dos bebês. Essa solução é semelhante à dos
contos de fadas: a ingestão de uma determinada comida ocasiona a concepção de
uma criança. Essa teoria infantil do nascimento é revivida em casos de
insanidade. Uma mulher maníaca, por exemplo, irá mostrar ao médico atendente as
fezes que defecara a um canto da cela e dizer-lhe com uma gargalhada: ‘eis o
bebê que tive hoje.’
A
terceira das teorias sexuais típicas surge nas crianças quando, por qualquer
circunstância doméstica, elas testemunham acidentalmente uma relação sexual
entre os pais. Sua percepção dos acontecimentos é fatalmente muito incompleta.
Quaisquer que tenham sido os detalhes que atraíram sua atenção - as posições
das duas pessoas, os ruídos ou qualquer circunstância acessória -, a criança
chega sempre à mesma conclusão, adotando o que se poderia chamar de uma concepção
sádica do coito. Ela o encara como um ato imposto violentamente pelo
participante mais forte ao mais fraco. No caso do menino, principalmente,
compara-o aos brinquedos violentos da infância, que lhe são tão familiares, e
dos quais não está ausente uma certa dose de excitação sexual. Não consegui
certificar-me se a criança vê, neste comportamento que testemunhou entre seus
pais, o elo que lhe faltava para solucionar o problema dos bebês. É bem
provável que não percebam essa conexão pelas simples razão de que interpretam o
ato de amor como sendo um ato de violência. No entanto, essa concepção dá a
impressão de um retorno ao obscuro impulso para um comportamento cruel que se
associou às excitações do pênis da criança no momento em que ela principiou a
refletir sobre a origem dos bebês (ver em [1]). Não podemos também excluir a
possibilidade de que esse impulso sádico prematuro, que quase levou à
descoberta do coito, emergiu sob a influência de lembranças extremamente
obscuras das relações sexuais dos pais, cujo material, não utilizado na época,
foi obtido pela criança em seus primeiros anos, quando ainda compartilhava do
quarto dos pais.
A teoria
sádica do coito, que tomada isoladamente é enganosa, quando poderia fornecer
provas corroborativas, é também a expressão de um dos componentes inatos do
instinto sexual, componentes que podem ser mais ou menos vigorosos segundo a
criança. Por esse motivo, a teoria é até certo ponto correta, pois adivinhou
parcialmente a natureza do ato sexual e da ‘batalha do sexo’ que o precede.
Algumas vezes a criança pode confirmar essa teoria por meio de observações
acidentais, que em parte compreende corretamente, mas em parte incorretamente,
e até mesmo no sentido inverso. Em muitos casamentos a esposa de fato resiste
ao abraço do marido, que não lhe causa prazer, mas sim o risco de uma nova
gravidez. E assim a criança que julgam adormecida (ou que se finge adormecida)
pode ficar com a impressão de que sua mãe se defendia de um ato de violência.
Outras vezes o casamento oferece à observadora criança o espetáculo de brigas
contínuas, expressas em palavras duras e gestos inamistosos. Assim, ela não se
surpreende se o conflito continua à noite, sendo por fim encerrado pelo método
que ela própria utiliza em sua relação com os irmãos e irmãs ou companheiros de
brinquedos.
Em
acréscimo, se a criança descobre manchas de sangue na cama da mãe ou em suas
roupas íntimas, considera-se como uma confirmação de suas concepções. Para ela
são provas de que o pai tornou a agredir a mãe à noite (ao passo que
interpretaríamos essas manchas como indício de uma interrupção temporária das
relações sexuais). Grande parte do ‘horror ao sangue’ dos neuróticos só é
explicável através dessa conexão. Uma vez mais, porém, o engano infantil contém
um fragmento da verdade, pois, em certas circunstâncias que nos são familiares,
os vestígios de sangue são na verdade interpretados como um sinal de iniciação
sexual.
Uma
outra questão indiretamente relacionada com o problema insolúvel da origem dos
bebês atrai também a atenção da criança: a questão da natureza e do conteúdo do
estado de casamento. Ela responderá de formas diversas a essa questão, conforme
os instintos nela ainda revestidos de prazer tenham coincidido com suas
percepções fortuitas dos pais. Contudo, todas essas respostas têm em comum o
fato de que a criança vê no casamento uma promessa de prazer e acredita que
esse prazer esteja relacionado com uma ausência de pudor. O conceito que
encontrei com maior freqüência foi que os casados urinam um em frente do
outro. Uma variação que parece incluir simbolicamente um maior conhecimento
é que o homem urina no urinol da mulher. Para outras crianças o
casamento significa que as duas pessoas mostram seus traseiros um ao
outro (sem sentir vergonha). Uma menina de quatorze anos, já menstruada, de
quem a educação conseguira afastar o conhecimento sexual, deduziu da leitura de
alguns livros que o casamento consistia na ‘mistura de sangue’; como sua
própria irmã ainda não iniciara seus períodos, a jovem tentou uma agressão
sexual a uma visitante que confessara estar menstruada no momento, para
forçá-la a participar dessa ‘mistura de sangue’.
As
teorias infantis a respeito do casamento, retidas com freqüência pela memória
consciente, têm grande significação na sintomatologia de doenças neuróticas
posteriores. A princípio elas são expressas pelos jogos infantis nos quais a
criança faz com uma outra aquilo que a seu ver constitui o casamento; mais
tarde, o desejo de ser casado pode expressar-se de uma forma infantil e
aparecer numa fobia, à primeira vista inexplicável, ou em algum sintoma
correlato.
Estas
parecem ser as mais importantes das teorias sexuais típicas concebidas
espontaneamente pela criança nos primeiros anos da infância, sob a única
influência dos componentes do instinto sexual. Sei que não consegui tornar seu
material completo, nem estabelecer uma relação contínua entre ele e o resto da
vida infantil. No entanto, devo acrescentar algumas observações suplementares
cuja ausência seria notada por pessoas bem informadas. Existe assim, por
exemplo, a importante teoria de que a criança é gerada num beijo - teoria que
obviamente revela a predominância da zona erógena da boca. Que eu saiba, essa
teoria é exclusivamente feminina e algumas vezes mostra-se patogênica em
meninas cujas pesquisas sexuais foram sujeitadas a inibições fortíssimas na infância.
Uma das minhas pacientes, por meio de uma observação fortuita, chegou à teoria
da ‘couvade’, que como se sabe é um costume generalizado entre alguns povos, e
cuja finalidade era provavelmente desfazer as dúvidas quanto à paternidade, que
nunca podem ser totalmente afastadas. Um tio dessa paciente, meio excêntrico,
costumava permanecer em casa por vários dias após os partos de sua mulher,
recebendo os visitantes de roupão, fato que a levou à conclusão de que tanto o
pai como a mãe participavam do nascimento da criança e precisavam repousar.
Mais ou
menos aos dez ou onze anos as crianças começam a ouvir falar de assuntos
sexuais. Uma criança que cresceu numa atmosfera social menos inibida, ou que
teve melhores oportunidades de observação, conta às outras aquilo que sabe,
pois isso a faz sentir-se amadurecida e superior. Os conhecimentos que as
crianças adquirem dessa forma são na maior parte corretos, isto é, elas
descobrem a existência da vagina e sua finalidade; no mais, porém, as
revelações que trocam entre si são freqüentemente mescladas com idéias falsas e
resíduos de teorias sexuais infantis anteriores. Essas revelações que nunca são
completas ou suficientes para resolver o problema básico. Agora é o
desconhecimento do sêmen, como era anteriormente o desconhecimento da vagina, o
obstáculo para a compreensão de todo o processo. A criança não pode adivinhar
que o órgão sexual masculino excreta outra substância que não a urina.
Ocasionalmente uma jovem ‘inocente’ ainda fica indignada na noite de núpcias pelo
fato de o marido ‘urinar dentro dela’. A essa informação adquirida nos anos
pré-puberdade seguem-se novas tentativas de investigação sexual por parte da
criança, mas as teorias que ela agora concebe não têm mais aquele caráter
típico e original das teorias primitivas dos primórdios da infância, quando os
componentes sexuais infantis podiam ser expressos sem inibições e sem
alterações. Os esforços intelectuais posteriores das crianças para decifrar os
enigmas do sexo não me parecem dignos de atenção, nem possuir alguma
significação patogênica. Sua variedade depende sem dúvida principalmente da
natureza do esclarecimento que a criança recebe, mas sua significação reside
antes no fato de despertarem os traços, que se tornaram inconscientes, do
primeiro período infantil de interesse sexual. Assim é freqüente que a essas
investigações se associe uma atividade sexual masturbatória e um certo grau de
afastamento emocional dos pais. Daí o juízo condenatório de alguns professores
de que o esclarecimento nessa idade ‘corrompe’ as crianças.
Vou
oferecer-lhes agora alguns exemplos que mostram quais os elementos que integram
essas especulações tardias das crianças sobre a vida sexual. Uma menina soubera
por seus colegas que o marido dá à esposa um ovo que ela choca no interior do
corpo. Um menino, ao ouvir a mesma história, identificou esse ovo com o
testículo, que [em alemão] é vulgarmente conhecido pela mesma palavra [Ei];
e empregou todos os esforços mentais para descobrir como o conteúdo do escroto
poderia ser constantemente renovado. A informação recebida raramente é
suficiente para prevenir o aparecimento de dúvidas importantes sobre os efeitos
sexuais. Assim, uma menina pode imaginar que o coito só ocorreu uma única vez,
durando entretanto muito tempo, vinte e quatro horas, e que todos os bebês do
casal provêm dessa única ocasião. Poder-se-ia supor que essa criança obteve
seus conhecimentos dos processos reprodutivos de certos insetos, mas essa
hipótese não se confirmou; a teoria emergira como uma criação espontânea.
Outras meninas ignoram a duração da gestação, a vida no útero, e supõem que o
bebê aparece imediatamente após a primeira noite das relações sexuais. Marcel
Prévost utilizou esse equívoco juvenil numa divertida história que aparece em
uma das suas ‘Lettres de femmes‘.As pesquisas sexuais posteriores de
crianças, ou de adolescentes que permaneceram no estádio infantil, oferecem um
tema quase inexaurível, que apresenta um certo interesse geral, mas que no
momento está um tanto fora do meu interesse. Devo ainda assinalar que nesse
setor as crianças produzem muitas idéias errôneas a fim de refutar conhecimento
mais antigo e mais preciso que se tornou inconsciente e reprimido.
O modo
pelo qual as crianças reagem à informação recebida também é significativo. Em
algumas a repressão sexual está tão adiantada que elas não dão ouvidos a nada;
essas crianças conseguem permanecer ignorantes mesmo na vida adulta - aparentemente
ignorantes, pelo menos - até que, na psicanálise de neuróticos, o conhecimento
originado na primeira infância vem à luz. Sei também de dois meninos entre dez
e treze anos que, ao receberem informações sexuais, rejeitaram-nas com as
seguintes palavras: ’Seu pai e outras pessoas podem fazer isso, mas
tenho certeza de que meu pai nunca o faria.’ Mas por mais diversas que
sejam as reações posteriores das crianças à satisfação de sua curiosidade
sexual, podemos supor que nos primeiros anos da infância sua atitude era
absolutamente uniforme, e ter a certeza de que nesse período todas elas
tentaram ansiosamente descobrir o que os pais faziam um com o outro para terem
bebês.
ALGUMAS
OBSERVAÇÕES GERAIS SOBRE ATAQUES HISTÉRICOS (1909 [1908])
NOTA DO EDITOR INGLÊS
ALLGEMEINES
ÜBER DEN HYSTERISCHEN ANFALL
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
(1908
Data provável da redação.)
1909 Z. Psychother. med. Psychol.,
1 (1) [Janeiro], 10-14.
1909 S.K.S.N.,
2, 146-150. (1912, 2ª ed.; 1921, 3ª ed.)
1924 G.S., 5, 255-260.
1941 G.W., 7, 235-240.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘General Remarks on Hysterical Attacks’
1924 C.P.,
2 100-104. (Trad. de D. Bryan.)
A
presente tradução, com um título ligeiramente alterado, é uma versão modificada
da publicada em 1924.
Freud
escreveu este artigo a pedido de Albert Moll para o primeiro número de um novo
periódico fundado pelo mesmo. Alguns meses antes, a 8 de abril de 1908, Freud
discorrera sobre o mesmo assunto numa reunião da Sociedade Psicanalítica de
Viena. A última vez em que o discutira fora na Seção IV da ‘Comunicação
Preliminar’ (1893a) de Breuer e Freud aos Estudos sobre a Histeria.
O presente artigo é uma dessas obras extremamente condensadas, quase
esquemáticas, em que podemos perceber as sementes de posteriores
desenvolvimentos. (Ver especialmente a Seção B). Só vinte anos mais tarde,
porém, Freud retornou ao tema dos ataques histéricos, ao examinar os ataques
‘epilépticos’ de Dostoievski (1928b).
ALGUMAS OBSERVAÇÕES GERAIS SOBRE ATAQUES HISTÉRICOS
Ao
empreendermos a psicanálise de uma paciente histérica cuja enfermidade
manifesta-se através de ataques, logo nos convencemos de que tais ataques não
passam de fantasias traduzidas para a esfera motora, projetadas sobre a
motilidade e representadas por meio de mímica. É verdade que as fantasias são
inconscientes, mas, com exceção desse detalhe, são da mesma natureza das fantasias
que podem ser observadas diretamente nos devaneios ou que podemos inferir da
interpretação dos sonhos noturnos. Muitas vezes um sonho pode substituir um
ataque, e ainda mais freqüentemente explicar o mesmo, já que a mesma fantasia
se expressa de formas diversas no sonho e no ataque. Poderíamos supor que, pela
observação de um ataque, viéssemos a descobrir a fantasia nele representada,
mais isso é raro. Via de regra, devido à influência da censura, a representação
mímica da fantasia sofre distorções idênticas às distorções alucinatórias do
sonho, de forma que ambas se tornam incompreensíveis tanto para a consciência
do indivíduo como para a compreensão do observador. O ataque histérico,
portanto, deve ser submetido à mesma revisão interpretativa que empregamos para
os sonhos noturnos, pois tanto as forças que dão origem à distorção, como a
finalidade dessa distorção e a técnica nela empregada são as mesmas que
deduzimos da interpretação dos sonhos.
(1) O
ataque torna-se ininteligível por representar simultaneamente várias fantasias
em um mesmo material, ou seja, através da condensação. Os elementos
comuns às duas (ou mais) fantasias constituem o núcleo da representação, como
sucede nos sonhos. As fantasias que assim coincidem são sempre de naturezas bem
diversas, podendo, por exemplo, consistir num desejo recente e numa reativação
de uma impressão infantil. As mesmas inervações servem então às duas
finalidades, muitas vezes de forma bastante engenhosa. Nos pacientes histéricos
que utilizam em alto grau a condensação, uma única forma de ataque pode ser
suficiente; outros expressam suas numerosas fantasias patogênicas através da
multiplicidade das formas de ataque.
(2) O
ataque torna-se obscuro pelo fato de o paciente tentar realizar as atividades
de ambas as figuras que aparecem na fantasia, ou seja, por meio de uma
identificação múltipla. Confira-se, por exemplo, o caso que mencionei em meu
artigo sobre ‘Fantasias Histéricas e sua Relação com a Bissexualidade’ (1908a),
no qual a paciente tentava despojar-se de suas vestes com uma das mãos (como
homem) enquanto as retinha com a outra (como mulher).
(3) Uma inversão
antagônica de inervações, processo análogo à transformação de um elemento
em seu oposto, comum no trabalho onírico, acarreta também uma distorção muito
ampla. Um abraço, por exemplo, pode ser representado no ataque pelo esticar
convulsivo dos braços para trás até que as mãos se tocam no plano da coluna
vertebral. É bem possível que o conhecido arc de cercle que ocorre nos ataques
histéricos graves seja apenas uma análoga e enérgica rejeição, através de uma
inervação antagônica, de uma postura do corpo adequada para a relação sexual.
(4)
Quase tão desorientadora e enganosa é a inversão da ordem cronológica na
fantasia que é representada, a qual também tem seu correspondente em certos
sonhos que começam com o final da ação e terminam com seu início. Vamos supor,
por exemplo, que uma mulher histérica tem uma fantasia de sedução na qual se
encontra sentada lendo num parque, com a saia ligeiramente erguida, de modo a
mostrar o pé. Um cavalheiro aproxima-se e dirige-lhe a palavra; os dois vão
para um lugar qualquer e se entregam a carícias amorosas. A atuação da fantasia
no ataque inicia-se com convulsões que correspondem ao coito. Em seguida a
mulher se levanta, dirige-se a um outro aposento, senta-se lendo um livro e
dali a pouco responde a uma observação imaginária dirigida a ela.
As duas
últimas formas de distorção acima descritas nos dão alguma idéia da intensidade
das resistências que o material reprimido precisa levar em conta mesmo quando
irrompe através de um ataque histérico.
O
desencadeamento de ataques histéricos segue leis de fácil compreensão. Como o
complexo reprimido consiste numa catexia libidinal e num conteúdo ideativo (a
fantasia), o ataque pode ser determinado (1) associativamente, quando o
conteúdo do complexo (se suficientemente catexizado) é atingido por um
acontecimento da vida consciente a ele ligado; (2) organicamente, quando
por razões somáticas internas resultantes de influências psíquicas externas a
catexia libidinal eleva-se acima de um determinado nível; (3) a serviço do objetivo
primário, como uma expressão da ‘fuga para a doença’, quando a realidade
torna-se penosa ou temível, isto é, como um consolo; (4) a serviço de objetivos
secundários aos quais a doença se alia para que através do ataque o
paciente atinja uma meta útil para ele. Neste último caso o ataque é endereçado
a determinados indivíduos, podendo ser adiado até que estes estejam presentes e
dando a impressão de ser conscientemente simulado.
A
investigação da história infantil de pacientes histéricos mostra que o ataque
histérico destina-se a substituir uma satisfação auto-érotica praticada
no passado e à qual o indivíduo renunciou. Num grande número de casos essa
satisfação (masturbação por contato ou por pressão das coxas, movimentos da
língua, etc.) repete-se durante o ataque, enquanto a consciência do indivíduo
está defletida. Ademais, o desencadeamento de um ataque que é devido a um
aumento da libido e que está a serviço do objeto primário - na qualidade de
consolo - repete exatamente as condições em que numa época anterior o paciente
procurava intencionalmente essa satisfação auto-erótica. A anamnese do paciente
revela os seguintes estádios: (a) satisfação auto-erótica, sem conteúdo
ideativo; b) a mesma satisfação, em conexão com uma fantasia que leva ao
ato de satisfação (c) renúncia ao ato, com a permanência da fantasia; (d)
repressão da fantasia, que então se manifesta através do ataque histérico, ou
em uma forma inalterada ou numa forma modificada e adaptada às novas impressões
do meio. Além disso, (e) a fantasia pode até restabelecer o ato de
satisfação ao qual se abdicara aparentemente. Eis aqui um ciclo típico de
atividade sexual infantil: repressão, malogro da repressão e retorno do
reprimido.
A
incontinência urinária certamente não é incompatível com o diagnóstico de
ataque histérico, já que não faz senão repetir uma forma infantil de polução
violenta. Em casos inequívocos de histeria também pode acontecer de o indivíduo
morder a língua, ato tão compatível com a histeria quanto com os jogos
amorosos, e que ocorre com maior freqüência quando o médico alerta o paciente
para as dificuldades de estabelecer um diagnóstico diferencial. Em ataques histéricos
(mais freqüentes entre homens) pode ocorrer um autoferimento que repete um
acidente da vida infantil - como, por exemplo, as conseqüências de um folguedo
violento.
A perda
de consciência num ataque histérico, a ‘absence‘, deriva-se do fugaz mas
inegável lapso de consciência que se observa no clímax de toda satisfação
sexual intensa, inclusive as auto-eróticas. Esse curso de desenvolvimento pode
ser delineado com mais certeza onde as absences histéricas surgem a
partir do desencadeamento de poluções em jovens do sexo feminino. Os chamados
‘estados hipnóides’ - absences durante os devaneios -, tão comuns entre
indivíduos histéricos, revelam a mesma origem. O mecanismo dessas absences
é comparativamente simples. Toda a atenção do indivíduo fica concentrada
inicialmente no curso do processo de satisfação; quando esta ocorre, toda essa
catexia de atenção é subitamente removida, daí resultando um momentâneo vazio
na consciência. Esse vazio, que se poderia qualificar de fisiológico,
amplia-se a serviço da repressão para tragar tudo aquilo que a instância
repressora rejeita.
É o
mecanismo reflexo do coito que mostra o caminho para a descarga motora da
libido reprimida em um ataque histérico - mecanismo este pronto a operar em
todos, inclusive nas mulheres, e que vemos em operação manifesta quando o
indivíduo se entrega sem restrições à atividade sexual. Já na Antiguidade o
coito era descrito como uma ‘pequena epilepsia’. Alterando isso um pouco,
podemos dizer que um ataque histérico convulsivo é equivalente de um coito. A
analogia com um ataque epiléptico é de pouca valia, pois a gênese deste é ainda
mais obscura do que a dos ataques histéricos.
Encarando
o conjunto, os ataques histéricos, assim como a histeria em geral, revivem uma
parcela da atividade sexual das mulheres que existiu durante sua infância e que
naquele período revelava um caráter essencialmente masculino. Podemos observar
com freqüência que aquelas jovens que mostravam natureza e tendências
masculinas nos anos anteriores à puberdade, são justamente as que se tornam
histéricas daí em diante. Em grande número de casos a neurose histérica
representa apenas uma intensificação excessiva daquele influxo típico de
repressão que, apagando a sexualidade masculina, permite o aparecimento da
mulher.
ROMANCES
FAMILIARES (1909 [1908])
NOTA DO EDITOR INGLÊS
DER FAMILIENROMAN DER
NEUROTIKER
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
(1908 Data provável de
redação.)
1909 Em O. Rank, Der Mythus von der Geburt des Helden,
64-8, Leipzig e Viena: Deuticke. (1922, 2ª ed., 82-6.)
1931 Neurosenlehre und Technik, 300-4.
1934 G.S., 12, 367-71.
1934 Psychoan. Päd., 8, 281-5.
1941 G.W., 7, 227-31.
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
1913 Em Rank, Myth
of the Birth of the Hero, J. Nerv. Ment. Dis. 40, 668-71, 718-19. (Trad. de
S. E.)
‘Family
Romances’
1914 A mesma, em formato de livro, 63-8. Nova
Iorque: Nervous and Mental Diseases Publishing Co.
‘Family Romances’
1950 C.P., 5, 74-8. (Trad. de James Strachey.)
A
presente tradução é uma reimpressão, ligeiramente modificada, da publicada em
1950.
Quando
este artigo foi publicado pela primeira vez, no livro de Rank, não tinha
qualquer título, nem formava uma seção separada. Foi simplesmente inserido no
correr do texto de Rank com algumas palavras de agradecimento. Só veio a
receber um título em alemão em sua primeira reimpressão. Como o prefácio ao
livro de Rank está datado ‘Natal, 1908’, é provável que a contribuição de Freud
tenha sido escrita nesse ano. Há muito Freud descobrira esses ‘romances familiares’,
como os designara, embora inicialmente os atribuísse especialmente aos
paranóicos. Ver suas cartas a Fliess de 24 de janeiro e 25 de maio de 1897 e de
20 de junho de 1898 (Freud, 1950a, Carta 57, Rascunho M, e Carta 91,
onde o termo é usado pela primeira vez).
ROMANCES FAMILIARES
Ao
crescer, o indivíduo liberta-se da autoridade dos pais, o que constitui um dos
mais necessários, ainda que mais dolorosos, resultados do curso do seu
desenvolvimento. Tal liberação é primordial e presume-se que todos os que
atingiram a normalidade lograram-na pelo menos em parte. Na verdade, todo o
progresso da sociedade repousa sobre a oposição entre as gerações sucessivas.
Existe, porém, uma classe de neuróticos cuja condição é determinada
visivelmente por terem falhado nessa tarefa.
Os pais
constituem para a criança pequena a autoridade única e a fonte de todos os
conhecimentos. O desejo mais intenso e mais importante da criança nesses
primeiros anos é igualar-se aos pais (isto é, ao progenitor do mesmo sexo), e
ser grande como seu pai e sua mãe. Contudo, ao desenvolver-se intelectualmente,
a criança acaba por descobrir gradualmente a categoria a que seus pais
pertencem. Vem a conhecer outros pais e os compara com os seus, adquirindo
assim o direito de pôr em dúvida as qualidades extraordinárias e incomparáveis
que lhes atribuíra. Os pequenos fatos da vida da criança que a tornam
descontente, fornece-lhe um pretexto para começar a criticar os pais; para
manter essa atitude crítica, utiliza seu novo conhecimento de que existem
outros pais que em certos aspectos são preferíveis aos seus. A psicologia das
neuroses nos ensina que, entre outros fatores, contribuem para esse resultado
os impulsos mais intensos da rivalidade sexual. O sentimento de estar sendo
negligenciado constitui obviamente o cerne de tais pretextos, pois existe sem
dúvida um grande número de ocasiões em que a criança é negligenciada, ou pelo
menos sente que é negligenciada, ou que não está recebendo todo o amor
dos pais, e principalmente em que lamenta ter de compartilhar esse amor com
seus irmãos e irmãs. Sua sensação de que sua afeição não está sendo retribuída
encontra abrigo na idéia, mais tarde lembrada conscientemente a partir da
infância inicial, de que é uma criança adotada, ou de que o pai ou a mãe não
passam de um padrasto ou de uma madrasta. Alguns indivíduos que não
desenvolveram neuroses se lembram com muita freqüência de ocasiões em que - em
geral em conseqüência de alguma leitura - interpretaram e responderam dessa
forma ao comportamento hostil dos pais. Mas já aqui evidencia-se a influência
do sexo, pois o menino tem maiores tendências a sentir impulsos hostis contra o
pai do que contra a mãe, tendo um desejo bem mais intenso de libertar-se dele
do que dela. A esse respeito a imaginação das meninas tende a revelar-se
muito mais fraca. Esses impulsos mentais da infância conscientemente lembrados
constituem o fator que nos permite entender a natureza dos mitos.
O
estádio seguinte no desenvolvimento do afastamento do neurótico de seus pais,
que assim teve início, pode ser descrito como o ‘romance familiar do
neurótico’, sendo raramente lembrado conscientemente, mas podendo quase sempre
ser revelado pela psicanálise, já que uma atividade imaginativa estranhamente
acentuada é uma das características essenciais dos neuróticos e também de todas
as pessoas relativamente bem dotadas. Essa atividade emerge inicialmente no
brincar das crianças e depois, mais ou menos a partir do período anterior à
puberdade, passa a ocupar-se das relações familiares. Um exemplo característico
dessa atividade imaginativa está nos devaneios que se prolongam até muito
depois da puberdade. Se examinarmos com cuidado esses devaneios, descobriremos
que constituem uma realização de desejos e uma retificação da vida real. Têm dois
objetivos principais: um erótico e um ambicioso - embora um objeto erótico
esteja comumente oculto sob o último. No período já mencionado a imaginação da
criança entrega-se à tarefa de libertar-se dos pais que desceram em sua estima,
e de substituí-los por outros, em geral de uma posição social mais elevada.
Nessa conexão ela lançará mão de quaisquer coincidências oportunas de sua
experiência real, tal como quando trava conhecimento com o senhor da Casa
Grande ou com o dono de alguma grande propriedade, se mora no campo, ou com
algum membro da aristocracia, se mora na cidade. Esses acontecimentos fortuitos
despertam a inveja da criança, que encontra expressão numa fantasia em que seus
pais são substituídos por outros de melhor linhagem. A técnica utilizada no
desenvolvimento dessas fantasias (que, naturalmente, são conscientes nesse
período) depende da inventividade e do material à disposição da criança. Há
também a questão de as fantasias serem desenvolvidas com maior ou menor esforço
para se obter verossimilhança. Esse estádio é alcançado numa época em que a
criança ainda ignora os determinantes sexuais da procriação.
Quando
finalmente a criança vem a conhecer a diferença entre os papéis desempenhados
pelos pais e pelas mães em suas relações sexuais, e compreende que ‘pater
semper incertus est‘, enquanto a mãe é ‘certissima’ o romance familiar
sofre uma curiosa restrição: contenta-se em exaltar o pai da criança, deixando
de lançar dúvidas sobre sua origem materna, que é encarada como fato
indiscutível. Esse segundo estádio (sexual) do romance familiar sofre o influxo
de um outro motivo que está ausente do primeiro estádio (assexual). A criança
que já conhece os processos sexuais tende a se imaginar em relações e situações
eróticas, cuja força motivadora é o desejo de colocar a mãe (objeto da mais
intensa curiosidade sexual) em situações de secreta infidelidade e em secretos
casos amorosos. Dessa forma, as fantasias da criança, que inicialmente eram
assexuais, elevam-se ao nível do seu conhecimento posterior.
Além
disso, o motivo da vingança e da retaliação, que estava em primeiro plano no
estádio inicial, também está presente no posterior. Via de regra, são
precisamente essas crianças neuróticas, que foram punidas pelos pais por
travessuras sexuais, que agora se vingam dos mesmos através de tais fantasias.
A
criança mais nova tende especialmente a utilizar essas histórias imaginativas
para despojar os irmãos mais velhos de suas prerrogativas - de uma maneira que
lembra as intrigas históricas; e com freqüência não hesita em atribuir à mãe
tantos casos de amor fictícios quantos são os seus competidores. Pode então
surgir uma interessante variação desses romances familiares, e um que o herói e
autor tem uma legitimidade reconhecida enquanto seus irmãos e irmãs são declarados
bastardos. Se estiverem operando também outros interesses, estes podem
determinar o curso do romance familiar, já que sua multiplicidade e amplitude
de formas permite-lhe satisfazer toda uma série de requisitos. Assim, por
exemplo, o jovem construtor de fantasias pode eliminar o grau proibitório de
parentesco que o une a uma irmã por quem se sente sexualmente atraído.
Se
alguém está inclinado a fugir horrorizado ante essa depravação do coração
infantil ou se sente até mesmo tentado a refutar a possibilidade de tais
coisas, deveria observar que nenhuma dessas obras de ficção, aparentemente
plenas de hostilidade, possui na realidade uma intenção tão má, e que ainda
conservam, sob um leve disfarce, a primitiva afeição da criança por seus pais.
A infidelidade e a ingratidão são apenas aparentes. Se examinarmos em detalhe o
mais comum desses romances imaginativos, a substituição dos pais, ou só do pai,
por pessoas de melhor situação, veremos que a criança atribui a esses novos e
aristocráticos pais qualidades que se originam das recordações reais dos pais
mais humildes e verdadeiros. Dessa forma a criança não está se descartando do
pai, mas enaltecendo-o. Na verdade, todo esse esforço para substituir o pai
verdadeiro por um que lhe é superior nada mais é do que a expressão da saudade
que a criança tem dos dias felizes do passado, quando o pai lhe parecia o mais
nobre e o mais forte dos homens, e a mãe a mais linda e amável das mulheres.
Ela dá as costas ao pai, tal como o conhece no presente, para voltar-se para
aquele pai em quem confiava nos primeiros anos de sua infância, e sua fantasia
é a expressão de um lamento pelos dias felizes que se foram. Assim volta a
manifestar-se nessas fantasias a supervalorização que caracteriza os primeiros
anos da criança. O estudo dos sonhos nos fornece uma contribuição interessante
ao assunto. Da interpretação dos mesmos concluímos que mesmo em anos
posteriores, se o Imperador e a Imperatriz aparecem em sonhos, tais nobres
personagens representam o pai e a mãe do sonhador. Assim, a supervalorização
dos pais pela criança sobrevive também nos sonhos de adultos normais.
BREVES
ESCRITOS (1903-1909)
RESPOSTA A UM QUESTIONÁRIO SOBRE LEITURA (1906)
Pedem-me
que faça uma relação de ‘dez bons livros’ sem a tal acrescentarem maiores
explicações. Cabe-me assim não somente a escolha dos livros, mas também a
interpretação do pedido. Como estou acostumado a dar atenção a pequenos sinais,
devo basear-me na forma como esse enigmático pedido foi expresso. Não me
solicitaram ‘os dez mais esplêndidos livros (da literatura mundial)’, quando eu
seria obrigado a responder, como tantos outros: Homero, as tragédias de
Sófocles, o Fausto de Goethe, o Hamlet e o Macbeth de
Shakespeare, etc. Nem me pediram ‘os dez livros mais significativos’, entre os
quais teriam de ser incluídas as realizações científicas de Copérnico, do velho
médico Johann Weier sobre a crença nas bruxas, a Descendência do Homem
de Darwin, e outros. Nem falaram em ‘livros favoritos’, entre os quais eu não
teria esquecido O Paraíso Perdido de Milton e o Lázaro de Heine.
Parece-me pairar uma ênfase especial sobre o adjetivo ‘bons’, em sua frase, e
com isso pretenderem os senhores designar aqueles livros que se assemelham a
‘bons’ amigos, aos quais devemos uma parcela do nosso conhecimento da vida e de
nossa visão do mundo - livros que nos deram prazer e que recomendamos de bom
grado a outros, mas que não nos despertam uma particular e tímida reverência,
nem uma sensação de pequenez diante de sua grandiosidade.
Indicarei,
portanto, dez ‘bons’ livros que me vieram à mente sem muita reflexão.
Multatuli,
Cartas e Obras. [Cf. pág. 138 n.]
Kipling, Jungle Book.
Anatole France, Sur la pierre blanche.
Zola, Fécondité.
Merezhkovsky,
Leonardo da Vinci.
G. Keller, Leute von Seldwyla.
C. F. Meyer, Huttens letzte Tage.
Macaulay, Essays.
Gomperz, Griechische Denker.
Mark
Twain, Sketches.
Não sei
o que pretendem fazer com essa lista. Até mesmo a mim ela parece estranha, e
não posso enviá-la sem algumas observações. Não me deterei nas razões desses
livros e não de outros igualmente ‘bons’. Só desejo examinar a relação entre o
autor e sua obra. Esse elo não é sempre tão firme como, por exemplo, no caso do
Jungle Book de Kipling. Na maior parte das vezes, eu poderia ter escolhido
outro livro do mesmo autor - como, no caso de Zola, o Docteur Pascal -,
e assim por diante. Com freqüência o mesmo homem que nos ofereceu um bom livro
produziu outras boas obras. No caso de Multatuli hesitei entre escolher as
‘Cartas de Amor’, em detrimento das cartas particulares, e rejeitar as
primeiras a favor das segundas, e assim escrevi: ‘Cartas e Obras’. Excluí dessa
lista obras realmente criativas de valor puramente poético, porque não parece
ser este exatamente o objetivo de sua solicitação: bons livros. Quanto a Hutten
de C. F. Meyer, coloco sua condição de ‘bom’ bem acima de suas qualidades
formais; nele procuramos ‘edificação’acima de prazer estético.
Com esse
pedido de ‘dez bons livros’ os senhores levantaram uma questão que poderia ser
estendida indefinidamente. E aqui concluo, para não me tornar em demasia
informativo.
Sinceramente
seu,
FREUD.
PROSPECTO PARA SCHRIFTEN ZUR ANGEWANDTEN SEELENKUNDE (1907)
Os Schriften
zur Angewandten Seelenkunde, cujo primeiro número acaba de ser publicado,
dirigem-se àquele amplo círculo de pessoas instruídas que, sem serem realmente
filósofos ou médicos, estimam as ciências da mente humana por sua importância
na compreensão e no aprimoramento de nossas vidas. Os artigos não serão
publicados numa ordem predeterminada, mas sempre apresentarão em cada caso um
único estudo sobre a aplicação de conhecimentos psicológicos a temas artísticos
e literários, à história das civilizações e religiões, e a outros setores
análogos. Esses trabalhos terão algumas vezes o caráter de investigações
exatas, outras vezes o de esforços especulativos, ora tentando abranger
questões mais amplas, ora tentando aprofundar-se num problema mais restrito.
Contudo, serão sempre realizações originais que evitarão se assemelhar a
simples resenhas ou compilações.
O
Organizador sente-se no dever de responder pela originalidade e valor dos
artigos a serem lançados nesta série. Quanto ao mais, não é sua intenção
interferir na independência de seus colaboradores, ou responsabilizar-se pelas
palavras dos mesmos. O fato de que os primeiros números da série aliam-se em
particular às teorias por ele defendidas no campo da ciência não irá
necessariamente caracterizar todo o empreendimento. Ao contrário, esta série
está aberta aos representantes de opiniões divergentes, e espera poder ser um
veículo para a expressão da multiplicidade de pontos de vista e princípios da
ciência contemporânea.
O EDITOR
O
ORGANIZADOR
PREFÁCIO A NERVOUS ANXIETY-STATES AND THEIR TREATMENT, DE
WILHELM STEKEL (1908)
Minhas
investigações sobre a etiologia e o mecanismo psíquico das doenças neuróticas,
que me ocupam desde 1893, de início passaram quase desapercebidas dos meus
colegas especialistas. Por fim, entretanto, essas investigações mereceram a
aprovação de vários pesquisadores médicos, chamando também a atenção para os
métodos psicanalíticos de exame e tratamento aos quais devo minhas descobertas.
O Dr. Wilhelm Stekel, um dos primeiros colegas com quem pude partilhar meus
conhecimentos de psicanálise, e que se familiarizou com essa técnica através de
muitos anos de prática, incumbiu-se de estudar um tópico dessas neuroses do
ponto de vista clínico, baseado em minhas concepções, e de oferecer aos
leitores médicos as experiências que obteve pelo método psicanalítico. Embora
de bom grado eu responda por este trabalho no sentido que acima indiquei, é
apenas justo que declare explicitamente que foi muito pequena a minha
influência sobre este volume a respeito dos estados nervosos de ansiedade. As
observações e todas as minuciosas opiniões e interpretações são inteiramente do
próprio autor. Minha participação limitou-se a propor ao autor o uso do termo
‘histeria de angústia’.
Acrescentarei
que o trabalho do Dr. Stekel fundamentou-se sobre uma rica experiência e deverá
estimular outros médicos a confirmarem por seus próprios esforços nossas
opiniões sobre a etiologia desses estados. Seu trabalho nos revela imagens
inesperadas das realidades da vida, tão freqüentemente ocultas sob os sintomas
neuróticos, e poderá convencer nossos colegas de que as atitudes que decidirem
adotar diante das indicações e explicações oferecidas nestas páginas não será
uma questão indiferente do ponto de vista tanto do seu discernimento como da
sua eficiência terapêutica.
VIENA,
março de 1908.
PREFÁCIO A PSYCHO-ANALYSIS: ESSAYS IN THE FIELD OF
PSYCHO-ANALYSIS, DE SANDOR FERENCZI (1910 [1909])
A
investigação psicanalítica das neuroses (as várias formas de doenças nervosas
com causação mental) empenhou-se em estabelecer sua conexão com a vida instintual
e as restrições a ela impostas pelas exigências da civilização, com as
atividades do indivíduo normal em fantasias e sonhos, e com as criações da
mente popular no campo das religiões, dos mitos e dos contos de fadas. O
tratamento psicanalítico de pacientes neuróticos, baseado nesse método de
investigação, exige muito mais do médico e do paciente que os métodos comumente
usados até aqui, que operam por meio de medicamentos, dieta, hidropatia e
sugestão; contudo, traz aos pacientes um alívio muito maior e um fortalecimento
permanente diante dos problemas da vida, de modo que não há motivo para
surpresa ante os contínuos progressos desse método terapêutico, apesar da
violenta oposição.
Conheço
bem de perto o autor destes ensaios, que está, como poucos, familiarizado com
as dificuldades das questões psicanalíticas, sendo o primeiro húngaro a
empreender a tarefa de despertar nos médicos e homens esclarecidos de seu país
o interesse pela psicanálise por meio de material escrito em sua língua
materna. Cordialmente desejamos que essa sua tentativa seja bem sucedida e
possa angariar para esse novo campo de trabalho novos adeptos entre seus
compatriotas.
COLABORAÇÕES PARA NEUE FREIE PRESSE
I
RESENHA
DE Im Kampfe Gegen Hirnbacillen, DE GEORG BIEDENKAPP
Oculto
sob um título pouco promissor, esse livro de um homem corajoso traz ao leitor
muitas considerações dignas de estudo. O subtítulo é mais revelador quanto ao
conteúdo: ‘Uma Filosofia de Pequenas Palavras’. Nele o autor combate o uso
daquelas ‘pequenas palavras e expressões que incluem ou excluem em demasia’,
que, quando usadas freqüentemente, revelam uma tendência para ‘julgamentos
exclusivos e superlativos’. É evidente - e nosso autor contestaria até mesmo
essa expressão - que sua luta não é contra essas palavras inofensivas, mas
contra a tendência do indivíduo a inebriar-se com as mesmas e a esquecer,
devido à representação exagerada assim expressa, as necessárias limitações de
nossas declarações e a inevitável relatividade de nossos julgamentos. É realmente
muito útil que as pessoas sejam advertidas de que grande parte do que era
considerado ‘evidente’ ou ‘disparatado’ por gerações anteriores, é hoje por nós
julgado, inversamente, ‘disparatado’ e ‘evidente’; é útil também que observem
através de uma série de exemplos bem escolhidos que até escritores importantes
são vítimas de um estreitamento de horizonte mental em conseqüência de um uso
incorreto de superlativos. A exortação a uma moderação de juízos e expressões é
apenas um ponto de partida do autor para um estudo ulterior de outros ‘erros de
pensamento’ dos seres humanos: sobre delírio central, fé, sobre moralidade
atéia, e outros. Em todas essas observações evidencia-se o honesto esforço do
autor para acatar as implicações da visão do mundo decorrente das descobertas
da ciência moderna, em particular da teoria da evolução. No texto encontraremos
muitas verdades psicológicas, e outras que, embora já ditas, nunca serão
suficientemente repetidas. O autor impõe-se a ingrata tarefa de ‘aprimorar e
converter os indivíduos’ através de uma influência moderadora, sem tentar
influenciá-los pelo riso ou pelo humor, ou arrebatá-los pela paixão.
Desejemos-lhe, portanto, muito sucesso.
II
RESENHA
DE The Mystery of Sleep, DE JOHN BIGELOW
Em vez
de reservar à ciência a solução do mistério do sono, o piedoso autor recorre a
argumentos bíblicos e causas teológicas. Segundo ele, por exemplo, seria
indigno da providência divina permitir que os seres humanos passassem um terço
de suas vidas espiritualmente inativos. O sono seria, portanto, um estado em
que a influência divina penetra mais efetiva e livremente na vida mental
humana. Apesar de todas as nossas objeções ao modo de pensar do autor, não
deixaremos de assinalar o elemento de verdade que existe nessa afirmação. Os estudos
científicos do estado da vida mental durante o sono obrigam-nos a rejeitar como
inadequada a nossa antiga teoria de que o sono reduz a um mínimo a atividade
mental. Não há interrupção dos importantes processos de atividade mental
inconsciente e mesmo intelectual - como demonstra a elucidação dos sonhos feita
por esse crítico -, mesmo durante o sono profundo. Essa atividade mental
inconsciente mereceria ser chamada de ‘demoníaca’, mas dificilmente de
‘divina’.
III
NECROLÓGIO
DO PROFESSOR S. HAMMERSCHLAG
S.
Hammerschlag, que há cerca de trinta anos encerrou suas atividades como
professor da religião judaica, era uma dessas personalidades que possuem o dom
de marcar indelevelmente o desenvolvimento de seu alunos. Possuía uma centelha
da mesma chama que iluminou os espíritos dos grandes videntes e profetas
judeus, centelha essa que só se extinguiu quando a idade avançada debilitou
suas forças. O lado passional de sua natureza, porém, era moderado pelo ideal
humanista do nosso período clássico alemão que o guiava, e seu método
pedagógico estava baseado nos fundamentos dos estudos clássicos e filológicos a
que devotara sua juventude. A instrução religiosa era para ele um meio de
despertar o amor das humanidades, e através da história judaica conseguia
desobstruir as fontes de entusiasmo ocultas nos corações jovens e fazê-las
fluir até ultrapassarem as limitações do nacionalismo ou do dogma. Aqueles
alunos seus que mais tarde puderam privar com o mestre o seu próprio lar, nele
encontraram um amigo paternal e solícito e descobriram a compassiva bondade que
era a característica fundamental de sua natureza. Em seu enterro, o Dr.
Friedjung, o historiador, expressou seus sentimentos de gratidão para o
venerável professor, sentimentos que várias décadas não conseguiram alterar.