(1942
[1905 ou 1906])
Se a finalidade do drama, como se supõe desde os tempos de
Aristóteles, consiste em
despertar “terror e comiseração”, em produzir uma “purgação
dos afetos”, pode-se descrever esse
propósito de maneira bem mais detalhada dizendo quese trata
de abrir fontes de prazer ou gozo
em nossa vida afetiva, assim como, no trabalho intelectual,
o chiste ou o cômico abrem fontes
similares, muitas das quais essa atividade tornara inacessíveis. Para tal finalidade, o fator
primordial é, indubitavelmente, o desabafodos afetos do espectador; o gozo daí
resultante
corresponde, de um lado, ao alívio proporcionado por uma
descarga ampla, e de outro, sem
dúvida, à excitação sexual concomitante que, como se pode
supor, aparece como um subproduto
todas as vezes que um afeto é despertado, e confereao homem
o tão desejado sentimento de
uma tensão crescente que eleva seu nível psíquico. Ser
espectador participante do jogo dramático
significa, para o adulto, o que representa o brincar para a criança,
que assim gratifica suas
expectativas hesitantes de se igualar aos adultos. O
espectador vivencia muito pouco, sentindo-se
como “um pobre coitado com quem não acontece nada”;faz tempo
que amorteceu seu orgulho,
que situava seu eu no centro da fábrica do universo, ou,
melhor dizendo, viu-se obrigado a
deslocá-lo: anseia por sentir, agir e criar tudo a seu bel-prazer - em suma, por ser um herói. E
o
autor-ator do drama lhe possibilita isso, permitindo-lhe
aidentificaçãocom um herói. Ao fazê-lo,
poupa-o também de algo, pois o espectador sabe que essa
promoção de sua pessoa ao heroísmo
seria impossível sem dores, sofrimentos e graves
tribulações, que quase anulariam o gozo. Ele
sabe perfeitamente que tem apenas uma vida, e que poderia
perdê-la num únicodesses combates
contra a adversidade. Por conseguinte, seu gozo tempor
premissa a ilusão, ou seja, seu
sofrimento é mitigado pela certeza de que, em primeiro
lugar, é um outro que está ali atuando e
sofrendo no palco, e em segundo, trata-se apenas deum jogo
teatral, que não ameaça sua
segurança pessoal com nenhum perigo. Nessas circunstâncias,
ele pode deleitar-se como um
“grande homem”, entregar-se sem temor a seus impulsos
sufocados, como a ânsia de liberdade
nos âmbitos religioso, político, social e sexual, edesabafar
em todos os sentidos em cada uma das
cenas grandiosas da vida representada no palco.
Mas essas precondições de gozo são comuns a diversas outras
formas de criação literária.
A poesia lírica presta-se sobretudo a dar vazão a uma
sensibilidade intensa e variada, como
acontece também com a dança; a poesia épica visa
principalmente a possibilitar o gozo do grande
personagem heróico em seu momento de triunfo, enquanto o
drama explora a fundo as
possibilidades afetivas, modela em gozo até os próprios
presságios de infortúnio e por isso retrata
o herói derrotado em sua luta, com uma satisfação quase
masoquista. Poder-se-ia caracterizar o
drama por essa relação com o sofrimento e o infortúnio, quer
apenas a inquietaçãoseja
despertada e depois aplacada, como na comédia, quero
sofrimento realmente se concretize, como
na tragédia. O fato de o drama ter-se originado nosritos
sacrificiais do culto dos deuses (cf. o bode
do sacrifício e o bode expiatório) não pode deixar de
relacionar-se com esse sentido do drama; ele
como que apazigua a revolta incipiente contra a ordem divina
do universo, que instaurou o
sofrimento. Os heróis são, acima de tudo, rebeldes que se
voltaram contra Deus ou contra alguma
divindade, e o sentimento de infortúnio que assaltao mais
fraco diante da potência divina está
fadado a gerar prazer, tanto pela satisfação masoquista
quanto pelo gozo direto de um
personagem cuja grandeza, apesar de tudo, é destacada. Eis
aí, portanto, o prometeísmo humano,
só que apequenado pela disposição de se deixar acalmar
temporariamente por uma satisfação
momentânea.
São tema do drama, portanto, todos os tipos de sofrimento, e
deles o espectador tem que
extrair algum prazer; daí resulta a primeira condição dessa
forma de criação artística: ela não deve
causar sofrimento ao espectador, mas saber compensar a
comiseração que desperta mediante as
satisfações que daí possam ser extraídas - uma regra que os
autores modernos têm infringido com
particular freqüência. Mas esse sofrimento restringe-se
desde logo ao anímico, pois o sofrimento
físiconão é desejado por ninguém que saiba quão depressaa
sensibilidade física assim alterada
põe termo a todo o gozo da psique. Quem está enfermo tem
apenas um desejo: sarar, livrar-se de
seu estado; que venham o médico e os medicamentos, para que se elimine a inibição do jogo da
fantasia, que nos mimou a ponto de fazer-nos extrair um gozo
até de nosso próprio sofrimento. Se
o espectador se coloca no lugar de alguém que sofrede um mal
físico, não encontra aí nenhum
gozo e nenhuma produtividade psíquica. Por isso, o indivíduo corporalmente enfermo só pode
figurar no palco como um requisito dramático, e nãocomo
herói, a menos que determinados
aspectos físicos de seu estado possibilitem o trabalho
psíquico - por exemplo, o desamparo do
doente em Filoctetesou a desesperança dos enfermos nas peças
que giramem tomo dos tísicos.
Mas as pessoas têm conhecimento do sofrimento anímico
principalmente em conexão com
as circunstancias que o provocam; por isso o drama precisa de uma ação que engendre o
sofrimento, e começa por introduzir-nos nela. Não passam de
exceções aparentes as peças que
nos apresentam sofrimentos anímicos já estabelecidos,
como Ajaxou Filoctetes; é que no drama
grego, por ser seu tema muito conhecido, a cortina sobe como
que no meio da peça. É fácil expor
exaustivamente as condições que regem a ação mencionada: ela
tem que pôr em jogo um conflito
e incluir um esforço da vontade e uma situação adversa. A
luta contra os deuses representou o
primeiro e mais grandioso cumprimento dessa condição. Já
dissemos que essa é uma tragédia de
rebelião, e nela o dramaturgo e a platéia tomam o partido
dos rebeldes. Depois, à medida que se
vai descrendo da divindade, mais importante se torna a
ordenação humana, que o discernimento
crescente passa a responsabilizar pelo sofrimento. Assim, a luta seguinte do herói é contra a
sociedade dos homens: temos aí a tragédia social. Outro cumprimento [da
precondição
mencionada] encontra-se na luta entre os seres humanos:
é a tragédia de caracteres; que exibe
todas as excitações do
agon[, conflito] e se desenrola com mais proveito entre
personalidades destacadas, libertas da servidão
dasinstituições humanas - ou seja, ela tem de
apresentar
doisheróis. Decerto são admissíveis as fusões dessas duas últimas
categorias,
exibindo a luta do herói contra instituições encarnadas em
personagens fortes. Falta à tragédia de
caracteres, em sua forma pura, a rebeldia como fonte de
gozo, mas esta ressurge, sem menor
força do que nas tragédias históricas dos clássicosgregos,
nos dramas sociais - por exemplo, em
Ibsen.
Se o drama religioso, o drama sociale o drama de
caracteresdiferem essencialmente pelo
terreno em que se desenrola a ação geradora do sofrimento,
já agora o drama nos leva para um
novo terreno em que se torna totalmente psicológico. Aqui, é
na própria alma do herói que se trava
a luta geradora do sofrimento: são os impulsos
desencontrados que se combatem, numa luta que
não culmina na derrota do herói, mas na extinção deum de
seus impulsos: tem que terminar na
renúncia a um deles. Claro está que são possíveis todas as
combinações entre essa precondição e
as que regem a tragédia social e a de caracteres; assim, as
próprias instituições podem ser a
causa do conflito interno. É aí que entram as tragédias do
amor, pois o sufocamento do amor pela
cultura social, pelas convenções humanas, ou o conflito
entre “amor e dever”, tão notório na ópera,
são ponto de partida de uma variedade quase infinita de
situações de conflito - tão infinita quanto
os devaneios eróticos dos seres humanos.
Mas a série de possibilidades se amplia, e o drama psicológico se converte em
psicopatológico, quando a fonte de sofrimento de que
deveríamos participar e extrair prazer já não
é o conflito entre duas moções dotadas de consciência quase
igual, mas entre um impulso
consciente e uma moção recalcada. Aqui, a condição do gozo é que o espectador também seja
neurótico. É que só ao neurótico pode advir prazer,e não
simples repugnância, da revelação e do
reconhecimento mais ou menos consciente da moção recalcada;
no não-neurótico, esse
reconhecimento deparará apenas com uma repugnância e o
predisporá prontamente a repetir o ato
de recalcamento [antes aplicado à moção]. É que, nessas
pessoas, esse ato se fez com êxito, e
um único dispêndio de recalcamento bastou para neutralizar
completamente a moção recalcada.
No neurótico, em contrapartida, o recalcamento estásempre à
beira do fracasso; é instável e
requer um gasto constantemente renovado - justamente o gasto
que lhe é poupado pelo
reconhecimento da moção. Somente no neurótico persiste uma
luta como a que pode ser tema
desse tipo de drama; nem mesmo nele, porém, o dramaturgo
provocará apenas um gozopela
liberação, mas despertará também uma resistência.
O primeiro desses dramas modernos é Hamlet. Seu tema é a maneira como um homem
até então normal torna-se neurótico devido à natureza
particular da tarefa com que se defronta, ou
seja, um homem em quem uma moção até ali recalcada com êxito
esforça-se por se impor. Hamlet
distingue-se por três características que parecem
importantes para a questão de que estamos
tratando: (1) O herói não é um psicopata, transformando-se
em tal apenas no decorrer da ação. (2)
A moção recalcada figura entre as que são igualmente
recalcadas em todos nós; seu recalcamento
faz parte das bases de nosso desenvolvimento pessoal, e é
justamente ele que a situação [da
peça] vem contestar. Essas duas características facilitam
que nos reconheçamos no herói; somos
susceptíveis ao mesmo conflito que ele, pois “quem não perde a razão em certas circunstâncias
não tem nenhuma razão a perder”. (3) Mas parece precondição
desse modelo artístico que a
moção que luta por chegar à consciência, por mais notória
que se revele, não seja chamada por
seu próprio nome; assim, o processo consuma-se de novo no
espectador, com sua atenção
distraída, e ele se torna presa de sentimentos, em vez de se
aperceber do que está acontecendo.
Poupa-se desse modo, sem dúvida, uma certa dose de
resistência, tal como a que encontramos no
trabalho analítico, onde os retornos do recalcado, por
provocarem uma resistência menor, chegam
à consciência, ao passo que o próprio recalcado nãoconsegue
fazê-lo. Em Hamlet,de fato, o
conflito está tão oculto que coube a mim desvendá-lo.
É possível que, por se desconsiderarem essas três
precondições, muitos outros
personagens psicopáticos sejam tão sem serventia nopalco
quanto o são na vida real. De fato,
não podemos penetrar no conflito do neurótico quando este já
o traz plenamente firmado dentro de
si. Inversamente, quando reconhecemos esse conflito,
esquecemos que se trata de um doente, da
mesma forma que ele, ao tomar conhecimento de seu conflito,
deixa de ser doente. A tarefa do
autor seria colocar-nos nessa mesma doença, e a melhor
maneira de consegui-lo é fazer com que
sigamos o curso de seu desenvolvimento junto com aquele que
adoece. Isso é particularmente
necessário nos casos em que o recalcamento não estájá dentro
de nós, mas precisa primeiro ser
instaurado, isso significa dar um passo além de Hamletna utilização da neurose no palco. Ao
sermos confrontados com uma neurose desconhecida e acabada, tendemosa chamar o médico
(como na vida real) e a julgar que o personagem é inadequado
para uma encenação teatral.
Esse erro parece ocorrer em Die Andere, de Bahr, além de um
outro implícito no problema
da peça: não nos é possível ter a convicção solidária de que
somente determinada pessoa tem o
privilégio de satisfazer a moça plenamente. Por isso não
podemos colocar-nos no lugar dela. E a
isso vem acrescentar-se um terceiro defeito: nada nos é
deixado para descobrirmos por nós
mesmos, e toda a nossa resistência é mobilizada contra esse
condicionamento prévio do amor,
que nos é inaceitável. Dentre as três condições formais que
vimos discutindo, a mais importante
me parece ser o desvio da atenção.
Talvez se possa dizer, de modo geral, que a labilidade
neurótica do público e a habilidade
do autor de evitar as resistências e propocionar
umpré-prazer sejam o único determinante dos
limites impostos ao emprego de personagens anormais[no
palco].
NOTA DO EDITOR INGLÊS
PSYCHOPATHISCHE PERSONEN AUF DER BÜHNE
(a)EDIÇÕES EM ALEMÃO:
(1905 ou 1906 Data provável da redação.)
1962 Neue Rundschau, 73, pp. 53-57.
(b)TRADUÇÃO PARA O INGLÊS:
“Psychophathic
Characters on the Stage”
1942 Psychoanal. Quart., 11 (4), outubro, pp. 459-464.
(Trat. de H.A. Bunker.)
Esta é uma nova tradução [inglesa] de James Strachey.
Num artigo publicado no Psychoanal. Quart., 11 (1942), p.
465, o Dr. Max Graf relata que
este ensaio foi redigido por Freud em 1904 e entregue a ele
pelo autor. Nunca foi publicado pelo
próprio Freud. Entretanto, deve haver um erro cm relação a
essa data (o manuscrito não está
datado), já que a peça
Die Andere, de Hermann Bahr, discutida na p. 326, foi encenada pela
primeira vez (em Munique e Leipzig) no início de novembro de
1905, tendo sua primeira
apresentação em Viena no dia 25 do mesmo mês. Só foi
publicada sob a forma de livro em 1906.
É provável, portanto, que o presente ensaio tenha sido
escrito no final de 1905 ou início de 1906.
Somos gratos ao Dr. Raymond Gosselin, editor do
Psychoanalytic Quarterly, por fornecer-nos uma
cópia fotostática do manuscrito original de Freud. Em alguns
pontos, a grafia é difícil de decifrar, o
que explica algumas divergências entre as duas traduções
inglesas.